O Beijo da Mulher Aranha de Bill Condon chega à tela com ambição evidente: transformar o clássico literário de Manuel Puig — já revisitado pelo cinema e pelo teatro — em um musical de estúdio que tenta conciliar o áspero do drama carcerário com o verniz luxuoso do technicolor e das grandes divas hollywoodianas. A escolha de Bill Condon como autor de roteiro e direção tinha tudo para ser um acerto: cineasta com trânsito entre o melodrama clássico e a mise-en-scène funcional, ele parte da versão musical de 1992 para reinventar o filme-dentro-do-filme como ilha de fantasia e como contraponto político às cenas de cela. Essa decisão formal funciona às vezes como motor dramático — e outras tantas como artifício que distancia o espectador do núcleo humano que deveria comover.
O elenco é, em teoria, o ponto mais atraente da proposta. Jennifer Lopez ocupa a sala de espelhos do filme: é a voz e a presença da diva Aurora/Ingrid/Mulher Aranha, uma figura que encarna tanto o ideal romântico quanto o fascínio letal que ronda Molina (Tonatiuh Elizarraraz). Diego Luna interpreta Valentín, o militante, e Tonatiuh dá corpo e canto a Molina, o prisioneiro que usa histórias e canções como escudo. Em cena, Lopez tem momentos de brilho genuíno — sabe mover-se sob os refletores com uma presença de palco inegável —, mas o seu estrelismo acaba por expor as fragilidades do conjunto: há cenas onde a encenação musical se impõe em detrimento da densidade psicológica da relação entre os dois homens.
Tecnicamente, o filme tem acertos e deslizes. A fotografia de Tobias A. Schliessler é escorreita, faz bom uso de paletas contrastantes entre o escuro das celas e os dourados das sequências fantásticas, e em alguns momentos usa um enquadramento clássico que remete às grandes produções de estúdio — planos-contraplano longos que privilegiam a performance. A montagem de Brian A. Kates, no entanto, decide por uma dicotomia de ritmos que nem sempre se completa: as cenas musicais são, muitas vezes, longas demais para a intensidade emocional real que carregam, enquanto as passagens do drama realista perdem oxigenação pela construção expositiva. A mistura de formatos — mudança de aspecto para separar realidade e fantasia — é uma ideia visual interessante e mostra cuidado estético, mas não salva a sensação de que o filme teme, por vezes, sacrificar o íntimo em nome do espetáculo.
A trilha sonora caminha no fio entre o repertório de Kander & Ebb e novas inserções compostas para a tela. Há momentos onde as canções funcionam como catapulta emocional — quando Molina canta sua versão idealizada do mundo do cinema, a música abre um espaço onírico que contrasta com a brutalidade exterior. Mas a concretização cinematográfica dessas passagens tem um problema: Condon privilegia a reprodução de grandes números com enquadramentos e coreografias que remetem ao musical clássico, e menos à subversão necessária para que a fantasia se integre organicamente ao universo carcerário. Assim, por mais que existam números tecnicamente bem resolvidos e que Lopez, vocalmente, imponha autoridade, a sensação final é de espetáculo parcialmente deslocado.
No que toca ao trabalho de atores, Tonatiuh (Molina) é o que mais convence na tentativa de traduzir fragilidade e artifício ao mesmo tempo: seu Molina é astuto, vulnerável e, quando necessário, teatral — sem que isso signifique caricatura. Diego Luna traz a dureza necessária para Valentín, mas o roteiro nem sempre lhe concede camadas suficientes para que a transformação do militante pela convivência emocional se torne impossível de contestar. Jennifer Lopez, por mais que transborde uma atuação de diva, fica refém de um planejamento de cena que prefere o esplendor à penetração psicológica. O filme parece dividido entre reverência à figura icônica da Mulher Aranha e um desejo legítimo de explorar as implicações políticas e afetivas daquele encontro entre um homem político e um homem quebrado por uma sociedade que não aceita sua sexualidade.
Em matéria de direção de arte e figurino, há uma certa vitória: a recriação dos números musicais — quando pensados como pequenos filmes dentro do filme — tem detalhes deliciosos (luz, maquiagem, cenografia em pequenos apêndices que lembram estúdios da era de ouro). Mas essa beleza pictórica acaba reforçando um efeito colateral: os itens de produção muitas vezes chamam mais atenção do que o núcleo dramático. Ou seja, O Beijo da Mulher Aranha se apresenta como um objeto de muito bom gosto plástico que, paradoxalmente, empobrece o que deveria ser o centro: a relação entre Molina e Valentín e o claro comentário sobre repressão, traição e sobrevivência emocional em tempos de violência política.
Condon tenta um equilíbrio entre nostalgia e reescrita contemporânea — o que é louvável —, mas a aposta em longos números e numa estética clássica se choca com a urgência do tema. Há sequências onde a tensão política aparece de forma crua e eficaz (tortura, interrogatório, o silêncio dos companheiros), e quando isso acontece o filme acerta em cheio; porém, essas instâncias são intercaladas por interlúdios que soam como homenagens descontextualizadas ao musical de estúdio, distanciando o público do sofrimento narrado. A consequência é que o filme não consegue gerar a empatia necessária para que a virada emocional entre os personagens funcione com a contundência que o material original pede.
No plano discursivo, o filme tenta reafirmar a importância da história queer e latino-americana que Puig escreveu — e há mérito no esforço de reafirmar essas raízes no cinema moderno. Ainda assim, a adaptação padece de uma insegurança de tom: ora quer ser um veículo de estrela, ora um filme político, e quando tenta ser ambos simultaneamente perde coesão. O resultado é um híbrido que, embora admirável em ambição e em vários momentos técnicos, não convence plenamente como peça única e autônoma de cinema.
Por fim, é preciso reconhecer o risco autoral de revisitar um texto tão carregado de história e expectativa. Condon faz escolhas viscerais — e algumas rendem imagens e performances bonitas —, mas essas escolhas não se somam de maneira suficiente a ponto de transformar o filme numa experiência emocionalmente vibrante e inevitável. O Beijo da Mulher Aranha é, portanto, uma obra cujo valor técnico e momentâneo está claro, mas cuja promessa dramática não se cumpre por inteiro: sobra beleza e falta, em resistidas fatias, profundidade. Para quem busca uma reinvenção do musical que dialogue forte com a urgência política do material, o filme oferece instantes memoráveis, porém não o salto integral que o tema e a história mereciam.
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