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novembro 30, 2025

O Beijo da Mulher Aranha (2025)

 


Título original: Kiss of the Spider Woman
Direção: Bill Condon
Sinopse: Para sobreviver ao confinamento e à tortura, Molina usa a imaginação para contar a história de um musical hollywoodiano que o fascina. Ele narra a história de um personagem, a Mulher-Aranha, que mata suas vítimas com um beijo, o que se mistura com a realidade da prisão.


O Beijo da Mulher Aranha de Bill Condon chega à tela com ambição evidente: transformar o clássico literário de Manuel Puig — já revisitado pelo cinema e pelo teatro — em um musical de estúdio que tenta conciliar o áspero do drama carcerário com o verniz luxuoso do technicolor e das grandes divas hollywoodianas. A escolha de Bill Condon como autor de roteiro e direção tinha tudo para ser um acerto: cineasta com trânsito entre o melodrama clássico e a mise-en-scène funcional, ele parte da versão musical de 1992 para reinventar o filme-dentro-do-filme como ilha de fantasia e como contraponto político às cenas de cela. Essa decisão formal funciona às vezes como motor dramático — e outras tantas como artifício que distancia o espectador do núcleo humano que deveria comover. 

O elenco é, em teoria, o ponto mais atraente da proposta. Jennifer Lopez ocupa a sala de espelhos do filme: é a voz e a presença da diva Aurora/Ingrid/Mulher Aranha, uma figura que encarna tanto o ideal romântico quanto o fascínio letal que ronda Molina (Tonatiuh Elizarraraz). Diego Luna interpreta Valentín, o militante, e Tonatiuh dá corpo e canto a Molina, o prisioneiro que usa histórias e canções como escudo. Em cena, Lopez tem momentos de brilho genuíno — sabe mover-se sob os refletores com uma presença de palco inegável —, mas o seu estrelismo acaba por expor as fragilidades do conjunto: há cenas onde a encenação musical se impõe em detrimento da densidade psicológica da relação entre os dois homens. 

Tecnicamente, o filme tem acertos e deslizes. A fotografia de Tobias A. Schliessler é escorreita, faz bom uso de paletas contrastantes entre o escuro das celas e os dourados das sequências fantásticas, e em alguns momentos usa um enquadramento clássico que remete às grandes produções de estúdio — planos-contraplano longos que privilegiam a performance. A montagem de Brian A. Kates, no entanto, decide por uma dicotomia de ritmos que nem sempre se completa: as cenas musicais são, muitas vezes, longas demais para a intensidade emocional real que carregam, enquanto as passagens do drama realista perdem oxigenação pela construção expositiva. A mistura de formatos — mudança de aspecto para separar realidade e fantasia — é uma ideia visual interessante e mostra cuidado estético, mas não salva a sensação de que o filme teme, por vezes, sacrificar o íntimo em nome do espetáculo. 

A trilha sonora caminha no fio entre o repertório de Kander & Ebb e novas inserções compostas para a tela. Há momentos onde as canções funcionam como catapulta emocional — quando Molina canta sua versão idealizada do mundo do cinema, a música abre um espaço onírico que contrasta com a brutalidade exterior. Mas a concretização cinematográfica dessas passagens tem um problema: Condon privilegia a reprodução de grandes números com enquadramentos e coreografias que remetem ao musical clássico, e menos à subversão necessária para que a fantasia se integre organicamente ao universo carcerário. Assim, por mais que existam números tecnicamente bem resolvidos e que Lopez, vocalmente, imponha autoridade, a sensação final é de espetáculo parcialmente deslocado. 

No que toca ao trabalho de atores, Tonatiuh (Molina) é o que mais convence na tentativa de traduzir fragilidade e artifício ao mesmo tempo: seu Molina é astuto, vulnerável e, quando necessário, teatral — sem que isso signifique caricatura. Diego Luna traz a dureza necessária para Valentín, mas o roteiro nem sempre lhe concede camadas suficientes para que a transformação do militante pela convivência emocional se torne impossível de contestar. Jennifer Lopez, por mais que transborde uma atuação de diva, fica refém de um planejamento de cena que prefere o esplendor à penetração psicológica. O filme parece dividido entre reverência à figura icônica da Mulher Aranha e um desejo legítimo de explorar as implicações políticas e afetivas daquele encontro entre um homem político e um homem quebrado por uma sociedade que não aceita sua sexualidade. 

Em matéria de direção de arte e figurino, há uma certa vitória: a recriação dos números musicais — quando pensados como pequenos filmes dentro do filme — tem detalhes deliciosos (luz, maquiagem, cenografia em pequenos apêndices que lembram estúdios da era de ouro). Mas essa beleza pictórica acaba reforçando um efeito colateral: os itens de produção muitas vezes chamam mais atenção do que o núcleo dramático. Ou seja, O Beijo da Mulher Aranha se apresenta como um objeto de muito bom gosto plástico que, paradoxalmente, empobrece o que deveria ser o centro: a relação entre Molina e Valentín e o claro comentário sobre repressão, traição e sobrevivência emocional em tempos de violência política. 

Condon tenta um equilíbrio entre nostalgia e reescrita contemporânea — o que é louvável —, mas a aposta em longos números e numa estética clássica se choca com a urgência do tema. Há sequências onde a tensão política aparece de forma crua e eficaz (tortura, interrogatório, o silêncio dos companheiros), e quando isso acontece o filme acerta em cheio; porém, essas instâncias são intercaladas por interlúdios que soam como homenagens descontextualizadas ao musical de estúdio, distanciando o público do sofrimento narrado. A consequência é que o filme não consegue gerar a empatia necessária para que a virada emocional entre os personagens funcione com a contundência que o material original pede.

No plano discursivo, o filme tenta reafirmar a importância da história queer e latino-americana que Puig escreveu — e há mérito no esforço de reafirmar essas raízes no cinema moderno. Ainda assim, a adaptação padece de uma insegurança de tom: ora quer ser um veículo de estrela, ora um filme político, e quando tenta ser ambos simultaneamente perde coesão. O resultado é um híbrido que, embora admirável em ambição e em vários momentos técnicos, não convence plenamente como peça única e autônoma de cinema. 

Por fim, é preciso reconhecer o risco autoral de revisitar um texto tão carregado de história e expectativa. Condon faz escolhas viscerais — e algumas rendem imagens e performances bonitas —, mas essas escolhas não se somam de maneira suficiente a ponto de transformar o filme numa experiência emocionalmente vibrante e inevitável. O Beijo da Mulher Aranha é, portanto, uma obra cujo valor técnico e momentâneo está claro, mas cuja promessa dramática não se cumpre por inteiro: sobra beleza e falta, em resistidas fatias, profundidade. Para quem busca uma reinvenção do musical que dialogue forte com a urgência política do material, o filme oferece instantes memoráveis, porém não o salto integral que o tema e a história mereciam.

Hereditário (2018)

 


Título original: Hereditary
Direção: Ari Aster
Sinopse: Após a morte da reclusa avó, a família Graham começa a desvendar algumas coisas. Mesmo após a partida da matriarca, ela permanece como se fosse uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, por quem ela sempre manteve uma fascinação não usual. Com um crescente terror tomando conta da casa, a família explora lugares mais escuros para escapar do infeliz destino que herdaram.


Não há nada de positivo em Hereditário. Não há. O filme de Ari Aster se vende como uma grande obra de terror psicológico, mas, ao fim, tudo o que restou para mim foi tédio mal disfarçado e uma sensação de déjà-vu de todas as tentativas cinematográficas recentes de transformar mitologia sobrenatural em grande teatro familiar. O roteiro se esconde atrás de artifícios — culto, invocação demoníaca, rituais — como se jogar ingredientes clássicos do gênero numa tigela já bastasse para produzir medo verdadeiro. Aster escolhe o caminho óbvio: encenar o sobrenatural como destino inexorável e, com isso, perder qualquer interesse em verdade emocional ou coerência interna. 

Mais uma vez um filme de terror com coisas sobrenaturais, isso me cansa. Como não acredito em nada dessas coisas, passei o filme todo dando risada. Essa é a honestidade necessária: se a base do seu medo é uma mitologia que você já considera pueril, todo o aparato visual e sonoro vira apenas espetáculo vazio. Hereditário depende de sustos tectônicos — gritos, cortes bruscos, composição de quadro que quer impressionar — mas não constrói uma escada dramática que justifique o clímax. A estética é meticulosa — a casa como diorama, os enquadramentos que lembram uma casa de bonecas — mas isso vira decoração sobrecozida quando não há uma sustentação íntima que faça essas escolhas terem peso narrativo real. 

A montagem e a trilha sonora servem mais como muletas do que como ferramentas expressivas. Jennifer Lame (edição) e Colin Stetson (música) são nomes que, isoladamente, poderiam somar sensações incômodas; aqui, contudo, a montagem arrasta e a música tenta preencher lacunas narrativas, dispensando a construção de tensão orgânica — tudo muito performático, pouco consequente. O filme se proclama sobre “herança” e trauma familiar, mas trata essas ideias como pretexto para conduzir o roteiro na direção do folclore ocultista, sacrificando psicologia por espetáculo. 

A atuação de Toni Collette recebe elogios por parte da crítica mainstream, e há quem defenda Hereditário como um novo clássico contemporâneo; não sou desse time. Para mim, o tom geral do filme é histriônico: personagens que sobem e descem num registro emocional pensado mais para o close-up sensacionalista do que para a verdade de uma família arruinada. As reviravoltas finais — que giram em torno da figura de Paimon e da lógica do culto — parecem mais uma solução de roteiro pronta do que a conclusão necessária de uma narrativa bem traçada. Se a intenção era mesclar luto e possessão, falha: o luto vira apenas cenário para o demônio, e a possessão, por sua vez, vira justificativa para golpes fáceis de choque. 

A única coisa que causa terror é a feiura colossal da atriz que interpreta Charlie (Milly Shapiro). É horrenda. No início até achei que fosse maquiagem, mas quando pesquisei e vi que realmente a menina era assim na vida real, fiquei realmente enojado de ter que vê-la e bem feliz por ela ter morrido cedo no filme. Além de feia, a personagem é terrivelmente insuportável. Essa ideia é deliberada e calculada pelo filme: transformar uma criança estranha numa chave para o desconforto do espectador. Mas a escolha não é artística, é provocação barata. Atacar a aparência de um ator não costuma ser produtivo numa análise técnica, mas no caso específico — em que o filme aposta no desconforto físico e na repulsa visual como atalho para o horror — não há como não denunciar a perversidade dessa aposta. 

Tecnicamente, há competência: a direção de fotografia busca composições que prendem o olhar, a construção de produção investe na ambientação opressiva e a atuação em cenas isoladas (alguns momentos de Toni Collette, por exemplo) chegam a cortar pela intensidade. Mas tudo isso é usado para mascarar uma pobreza de ideias: quando a técnica funciona apenas para chocar e não para aprofundar, perde o propósito. A crítica que reverenciou o filme por vezes confundiu brutalidade com profundidade; há distância entre causar náusea e provocar reflexão. Hereditário escolhe a náusea e chama de arte. 

No desfecho, Ari Aster opta por fechar as pontas com a liturgia do ocultismo — um final que alguns interpretam como “feliz” para o culto interno da história, mas que para mim é apenas a consagração de um filme que prefere fechar seu universo num círculo de conveniências mitológicas do que explicar ou dialogar com o humano que prometeu investigar. Dizer que o filme é “sobre herança” soa mais como slogan publicitário do que insight narrativo. Em suma: Hereditário é uma peça de cenografia sombria que se acha profunda por ter imagens perturbadoras; eu, ao menos, vi aí uma conjunção de artifício e mau gosto que não merece empatia nem defesa. Não há um ponto positivo — insisto — e a sensação final é de perda de tempo e de paciência com o modelo atual do cinema de terror que confunde choque com significado.

novembro 29, 2025

Viagem de Risco (2025)

 


Título original: Fight or Flight
Direção: James Madigan
Sinopse: Um mercenário assume a tarefa de eliminar um alvo de alto valor em um voo, mas quando uma enxurrada de assassinos rivais aparece, ele percebe que eles terão que se unir para sobreviver.


Viagem de Risco é daqueles filmes que chegam sem pedir licença e transformam a sala da sua casa num parque de diversões cinematográfico. Há algo nele que pulsa desde os primeiros minutos, uma vibração ousada que mistura adrenalina, humor ácido e um prazer quase infantil de assistir um filme de ação que não teme parecer absurdo. Certamente um dos filmes mais gostosos e divertidos de se assistir que vi em muito tempo — e isso já diz muito para quem acompanha o ritmo atual das produções de ação hollywoodianas, que frequentemente se perdem na própria grandiosidade.

Dirigido por James Madigan, que até então era mais conhecido por sua trajetória sólida como supervisor de efeitos visuais em superproduções, o longa assume com confiança o espírito de um thriller aéreo, mas sem jamais se restringir às convenções do gênero. A trama acompanha um ex-agente interpretado por Josh Hartnett, encarregado de transportar um alvo misterioso, conhecido apenas como Ghost, em um voo transcontinental a bordo de um Airbus A380. A tecnologia, a proporção e o design do avião não são meros detalhes: Madigan transforma o gigante do ar em um labirinto de possibilidades cênicas, funcionando quase como um personagem vivo dentro da narrativa.

Ainda que o filme comece como um thriller mais contido, com toques de espionagem, rapidamente se percebe que a intenção não é seguir por um caminho sério demais. A sensação é de que Madigan flerta com o drama e a tensão apenas para, em seguida, subvertê-los com entusiasmo. Da metade para o fim, o roteiro deliberadamente chuta o balde e se transforma em uma grande celebração de exageros: confrontos coreografados de maneira quase utópica, sequências psicodélicas que brincam com cores e movimentos, e uma quantidade de sangue que lembra diretamente o estilo visual de Quentin Tarantino. Não de maneira imitativa, mas como um tributo escancarado à violência estilizada e catártica que fez escola. A sensação geral é a de estar testemunhando uma espécie de Kill Bill dentro de um avião, com o mesmo senso de humor sarcástico e a mesma liberdade estética.

Entre os elementos mais impressionantes da produção está a decisão de filmar muitas das cenas de luta sem cortes abruptos. As coreografias, desenvolvidas com evidente rigor técnico, ganham impacto justamente porque o espectador é convidado a acompanhá-las de forma contínua, sem a edição fragmentada que costuma mascarar movimentos. Com isso, cada golpe, cada queda, cada reviravolta dentro de um corredor estreito ou de uma cabine luxuosa entrega não só um espetáculo visual, mas também um senso físico de presença. É visceral, é dinâmico e, acima de tudo, é impressionante.

A fotografia de Matt Flannery contribui para esse efeito com luzes e sombras que ampliam a sensação de confinamento, ao mesmo tempo em que brincam com a geometria do avião de maneira engenhosa. A paleta varia entre o frio do aço e o neon de delírios cromáticos que surgem conforme a narrativa mergulha cada vez mais no exagero. A montagem de Ben Mills, mesmo quando opta por sequências mais vertiginosas, mantém a coerência espacial necessária para que o espectador entenda a geografia dos confrontos — algo que muitos filmes de ação contemporâneos simplesmente não conseguem entregar.

Outro elemento que merece destaque é a trilha sonora de Paul Saunderson. Em vez de apostar em músicas facilmente reconhecíveis ou em composições épicas previsíveis, o filme opta por uma seleção de faixas absurdamente aleatórias, que reforçam o aspecto humorístico e o absurdo visual do longa. Esse contraste entre som e imagem lembra imediatamente a irreverência das trilhas clássicas de Tarantino: há um humor involuntário, um charme deslocado que intensifica a experiência. Cada música parece surgir não para reforçar a emoção da cena, mas para contrariá-la — e justamente por isso funciona tão bem.

No centro desse caos planejado está Josh Hartnett, que entrega aqui uma das atuações mais divertidas e afiadas de sua carreira recente. Seu talento natural para o humor ácido reaparece com vigor, lembrando seu desempenho em Xeque-Mate (Lucky Number Slevin, 2006). Hartnett equilibra cinismo, senso de perigo e momentos de fragilidade de um jeito que torna seu personagem não apenas carismático, mas também funcional dentro da lógica exagerada da história. Ele sabe rir de si mesmo, sabe rir do filme, e sabe exatamente até onde pode levar o absurdo sem quebrar a suspensão de descrença do público. É uma performance que transcende o simples “herói de ação” e encontra personalidade dentro do caos.

É verdade que o filme não busca coerência absoluta e nem pretende parecer plausível — e ainda bem. A narrativa abre mão de explicações muito elaboradas, assume atalhos, brinca com clichês e, em alguns momentos, se entrega sem pudor a soluções mirabolantes. Mas tudo isso é parte intencional da brincadeira. Ele não quer ser contido, não quer ser sóbrio, não quer ser realista. Quer ser divertido, surpreendente, estiloso e exagerado — e cumpre essa proposta com uma convicção rara.

Ao final, Viagem de Risco oferece algo que às vezes parece estar desaparecendo do cinema de ação comercial: espontaneidade. Ele não se leva tão a sério quanto poderia, mas é justamente isso que o torna tão prazeroso. É um filme que pulsa, respira e se diverte com seu próprio excesso, sem nunca perder o controle sobre a própria estética.

Quando os créditos sobem, a sensação é clara: poucos filmes recentes entregaram tamanha mistura de energia, humor, violência estilizada e criatividade visual. É entretenimento puro, feito com técnica, personalidade e um sorriso malicioso no canto da boca. Um lembrete poderoso de que o cinema também existe para nos arrancar da rotina e nos jogar em viagens completamente insanas — e deliciosas.

A Mulher na Cabine 10 (2025)

 


Título original: The Woman in Cabin 10
Direção: Simon Stone
Sinopse: A bordo de um iate de luxo a trabalho, uma jornalista vê uma pessoa caindo no mar, mas ninguém acredita. Para descobrir a verdade, ela coloca a própria vida em risco.


Quando peguei o título da nova aposta da Netflix — A Mulher na Cabine 10 — pensei: será que a plataforma finalmente conseguiu combinar boa produção com um thriller eficiente? A resposta, triste e inescapável, é: não. Por mais que o filme tenha elementos técnicos de razoável qualidade — direção competente, fotografia limpa, produção de luxo — seu alicerce narrativo é torto, batido e cansativo.

A premissa, para começar, é o tipo de esquema que há décadas roda por aí: alguém — neste caso a jornalista Laura “Lo” Blacklock — afirma ter visto um crime, acredita ter testemunhado uma mulher sendo jogada ao mar dentro de um iate de luxo. Mas quando ela levanta o alarme, todos confirmam que a cabine “culpada” estava vazia, que nenhum passageiro sumiu, que ela “deve ter imaginado”. A partir daí: ela sozinha contra todo mundo. Pois é. Como pode uma premissa tão batida ainda ser colocada para produção no cinema? É inacreditavelmente comum, ruim. Ruim mesmo. E, pior que isso: destrói até mesmo a boa intenção e produção que cercam o filme. A Netflix cada vez parece se afundar mais e mais em filmes duvidosos — títulos com brilho visual, elenco conhecido, mas sem substância nem frescor.

Tecnicamente, dá para reconhecer alguns pontos: a ambientação do iate — um superiate filmado nas costas inglesas — tenta reproduzir com classe o luxo e o isolamento claustrofóbico necessários ao terror psicológico de alto-mar. A fotografia assina um mar acinzentado, vidro, corrimão cromado, quartos com interiores elegantes: tudo funciona para transmitir uma atmosfera de elegância obscura, de falso conforto prestes a ruir. A montagem eficiente tenta dar ritmo, e a trilha sonora — minimalista nos momentos de tensão — ajuda a construir momentos de angústia. O diretor Simon Stone, com a ajuda de seu time técnico (cinegrafista, editores, cenografia), imprime certo profissionalismo à obra: dá prazer técnico observar a ambientação, o uso das câmeras dentro de quartos apertados, os corredores do iate, o contraste entre festa de luxo e desespero psicológico.

Mas aí — e é aí que o filme se afunda — tudo o que poderia ter validade se esfarela. O enredo não convence. Os personagens não têm densidade. E o principal: a “verdade” que a protagonista sustenta não gera empatia, mas irritação.

No centro disso tudo, a escolha de Keira Knightley para viver Lo Blacklock. Honestamente? A atriz está terrivelmente mal. Há anos que o talento de Knightley me parece inflado, artificial — e aqui alcança níveis surpreendentemente maus. Sua interpretação é risível. Ao invés de transmitir vulnerabilidade, trauma, dúvida e paranoia convincentes, ela adota uma postura histriônica, excessiva, que transforma o que poderia ser suspense psicológico em teatro barato. Sua Laura é mais “histérica insistente” do que “sobrevivente traumatizada”. Inacreditável que alguém a leve a sério como protagonista de um thriller que depende da adesão emocional do espectador a um drama de dúvida.

O filme ainda insiste em colocar Lo numa posição de “jornalista heroica, destemida, dona da verdade”. E talvez aí resida um dos poucos méritos — se podemos chamar de mérito — da película: ela acaba servindo como uma caricatura da arrogância jornalística. Jornalistas que se acham donos da verdade, capazes de jogar a vida de todos ao redor no inferno por causa da pressão de ter “a matéria”, de provar algo a qualquer preço. O longa exagera, claro — e de forma grosseira —, mas faz essa crítica involuntária ao transformar Lo em uma presença irritante, incansável, invasiva, dramática demais. Em diversos momentos da narrativa ficamos torcendo não por sua vitória, mas por sua falência: torcendo para que a maré a leve embora, para que seu “combate pela verdade” a engula de uma vez por todas. A personagem Laura é terrivelmente irritante, e o espectador — pelo menos eu — sente mais alívio do que tensão a cada suspiro da protagonista.

Enquanto isso, o suposto mistério central — a “mulher na cabine 10” — perde qualquer força. As reviravoltas são pouco inteligentes, os “suspeitos” surgem e desaparecem sem peso dramático real, as pistas são adiantadas demais ou deixadas de lado sem consequência. A sensação é de déjà-vu: já vimos isso em dezenas de thrillers baratos, tanto livros quanto filmes, pior ainda quando o roteiro não tenta nem renovar o clichê.

O final, que poderia salvar tudo — com confrontos, revelações, exposição de conspiração — vira uma espécie de “clímax modesto”, previsível, com antagonistas maniqueístas e resolução rasa. Não há subtexto, não há ambiguidade: tudo é branco ou preto, culpa óbvia ou sanidade supostamente inabalável da protagonista. Quando o “grande segredo” se revela, ele não choca, não incomoda, não perturba — apenas conclui. E nos deixa com a impressão de que todo o resto foi tempo perdido.

Em resumo: A Mulher na Cabine 10 convence visualmente — superfície brilhante, cenários de luxo, atmosfera de iate em alto-mar —, mas se afoga por dentro. A construção dramática é frágil, o roteiro previsível, a protagonista irritante, e o suspense fraco. A aposta da Netflix num thriller moderno que revisita o clássico “só eu vi, ninguém acredita em mim” se mostra não apenas preguiçosa, mas até irresponsável do ponto de vista criativo.

Se há algo de valor, é talvez o alerta — consciente ou não — para como a noção de “verdade” e “credibilidade” pode ser usada (e abusada) em narrativas de poder, privilégio e paranoia. Mas esse resquício simbólico é soterrado por tantos defeitos que quase não resta nada depois de terminada a projeção.

Talvez o pior legado disso tudo seja a constatação: não basta ter iate, produção cara, elenco conhecido e “conceito de suspense” para fazer um bom thriller. É preciso sustância — e A Mulher na Cabine 10 brutalmente não tem. No fim, ele despeja toda sua maré de promessas ao mar.

E fica a pergunta: a que ponto a Netflix vai afundar antes de aprender que o brilho da superfície não salva um enredo podre?

novembro 28, 2025

Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor (2025)

 


Título original: The Threesome
Direção: Chad Hartigan
Sinopse: Em uma noite, tudo parece dar certo para Connor quando Olivia, sua paixão de longa data, os leva a um ménage à trois com a sedutora Jenny. O encontro dá início a um relacionamento entre Connor e Olivia, e o amor deles cresce rapidamente. O romance logo é destruído quando Jenny reaparece em suas vidas, lançando os três em uma jornada rumo à responsabilidade e à vida adulta.


Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor (no original The Threesome), de Chad Hartigan, chega como uma comédia romântica que se presta a desconstruir, com candura e algumas hesitações, aquilo que o cinema costuma chamar de “crescer”: a história acompanha Connor, Olivia e Jenny — personagens interpretados com compromisso pela trinca Zoey Deutch, Jonah Hauer-King e Ruby Cruz — e transforma uma noite impulsiva em um longo exercício sobre consequências, responsabilidade e o jeito desajeitado com que a vida adulta insiste em chegar. A trama, escrita por Ethan Ogilby, não tenta disfarçar sua ambição: partir de um ménage casual para tocar em temas como paternidade inesperada, amadurecimento emocional e a tensão entre desejo e compromisso é arriscado, e Hartigan dirige com uma mistura de leveza e nervo que ora funciona, ora se perde por tentativas de equilibrar comédia e drama de forma demasiadamente literal. O roteiro, curioso por costurar a narrativa em trimestres — uma escolha estrutural que imprime ritmo e contagem regressiva à crescente urgência dos eventos — constrói bons momentos de diálogo e pequenos ganchos emocionais, mas por vezes recai em personagens que parecem mais esboços simpáticos do que seres humanos plenamente contraditórios; ainda assim, há cenas em que a empatia surge com facilidade, sobretudo quando a câmera deixa espaço para as pequenas vergonhas e as falas nervosas de quem tenta, pela primeira vez, assumir responsabilidades reais. 

Tecnicamente o filme faz escolhas coerentes com sua proposta íntima: a fotografia de Sing Howe Yam aposta em enquadramentos próximos e paletas que alternam calor doméstico e frieza urbana, sustentando a sensação de que os personagens navegam constantemente entre conforto e desconforto; há uma estética de proximidade que favorece as performances, e que funciona bem nas cenas de diálogo estendido, embora em alguns momentos Hartigan pareça relutar em abrir o plano quando a cena pede detalhamento — e nisso o filme perde a oportunidade de transformar pequenos gestos em imagens memoráveis. A montagem de Autumn Dea, por sua vez, equilibra bem os saltos temporais e os cortes de humor, imprimindo um compasso que evita que a trama torne-se apenas uma sucessão de incidentes; há, porém, instantes em que a edição opta pelo atalho emocional, buscando resolver tensões com cortes que preferem a economia ao aprofundamento. A trilha de Keegan DeWitt está exatamente onde o filme precisa: discreta quando exige sensibilidade, sorridente nas passagens cômicas, e capaz de sublinhar sem manipular demais. 

As performances são o motor mais confiável da narrativa. Zoey Deutch constrói uma Olivia que mistura dureza e fragilidade com uma naturalidade muitas vezes cativante; há momentos em que sua personagem poderia virar caricatura, mas a atriz encontra sutilezas — gestos, inflexões, pequenos recuos — que a mantêm humana. Jonah Hauer-King dá corpo a Connor com uma ingenuidade simpática que funciona como antídoto para a autopiedade: seu personagem não é totalmente heroico, mas a entrega do ator faz com que sua falha — ou sua imaturidade inicial — não seja fatídica, e sim terreno para transformação. Ruby Cruz, por sua vez, oferece uma Jenny mais contida, cuja força reside na modulação emocional; o filme surpreende ao permitir que parte da carga dramática venha dessa discrição, e a atriz tira proveito disso ao mostrar que presença não precisa ser sinônimo de excessos. O elenco de apoio — entre eles Jaboukie Young-White, Josh Segarra e Julia Sweeney — contribui com notas de alívio cômico e humanidade que ajudam a tornar o universo ao redor do trio mais crível.

Narrativamente, Entre Nós se beneficia quando aceita o desconforto: as melhores sequências são as que deixam a situação permanecer estranha, onde o riso e a vergonha coexistem e o espectador é convidado a manter um pé em cada terreno — o do riso fácil e o do afeto complicado. Em contrapartida, o filme por vezes adere a um moralismo sutil que soa como um recuo: a premissa sexual é tratada com alguma condescendência, e há momentos em que o roteiro parece preferir punir ou redimir em vez de simplesmente observar. Essa ambivalência tonal é o que torna a obra menos coesa — o equilíbrio entre a comédia romântica à moda antiga e o drama contemporâneo é delicado, e nem sempre alcançado. Essa oscilação entre o afeto sincero e escolhas narrativas soa conveniente demais, e é justo dizer que o filme sai-se melhor quando aceita sua própria bagunça emocional do que quando tenta polir às pressas suas arestas. 

No balanço final, Entre Nós: Uma Dose Extra de Amor é um filme que vale sobretudo pelas interpretações e pela honestidade de algumas ideias — a ideia de que a “vida adulta” não chega de uma hora para outra, mas é forjada em encontros desajeitados e decisões improvisadas é tratada com humanidade —, mas que sente falta de uma voz mais firme para transformar suas intenções em algo completamente memorável. Chad Hartigan demonstra sensibilidade para as cenas de intimidade emocional e competência para extrair humor do embaraço, mas por vezes se esquiva de aprofundar a complexidade moral que a premissa exige. Ainda assim, para quem procura uma comédia romântica que não se entrega apenas ao riso fácil, que privilegia o trabalho com atores e que não tem medo de mostrar as consequências — mesmo que às custas de um ritmo irregular —, o filme entrega suficientes momentos de ternura e reflexão para justificar a sessão. É uma obra com falhas visíveis, mas também com achados sinceros: no fim, fica a impressão de uma comédia romântica do século XXI tentando lembrar-se de que o humor pode e deve conviver com as perguntas difíceis sobre amor, responsabilidade e os passos trêmulos de quem aprende a cuidar.

A Astronauta (2025)

 


Título original: The Astronaut
Direção: Jess Varley
Sinopse: Quando uma astronauta faz uma aterrissagem forçada na Terra, um general coloca-a em quarentena para reabilitação e testes. À medida que acontecimentos perturbadores se desenrolam, ela teme que algo extraterrestre a tenha seguido de volta para a Terra.


A Astronauta é um filme que se posiciona entre o suspense claustrofóbico e a fábula de transformação corporal — um híbrido de ficção científica e horror íntimo que tenta, com requintes de técnica e aparato, traduzir para a tela o terror daquilo que nos habita e nos corrói por dentro. A estreia como longa-metragem de Jess Varley revela ambição: roteiro próprio, direção centrada no ponto de vista de sua protagonista e escolhas estéticas que procuram fazer da casa isolada não apenas um cenário, mas um organismo hostil que reage à presença daquela que voltou do espaço. Com Kate Mara no centro, Laurence Fishburne em papel paternal de influência militar, com Gabriel Luna e Ivana Miličević completando o circuito familiar e científico — podemos entender que Varley apostou em intérpretes experientes para dar veracidade emocional às camadas mais fantásticas da trama.

O mérito imediato de A Astronauta está na construção sonora e na oscilação entre silêncio e ruído: silenciosas frequências industriais, ruídos de equipamentos hospitalares e uma mistura de visuais orgânicos que lembram a bioluminescência marinha — inspirou a concepção das criaturas do filme. Essa paisagem sonora é trabalhada como personagem, empurrando a tensão mesmo quando a câmera está imóvel. A direção de som e a partitura — compostas para sublinhar um desconforto visceral em vez de melodias redentoras — funcionam como o motor emocional da narrativa, fazendo o espectador acompanhar o avanço da aflição física da protagonista. 

Visualmente, o filme aposta em uma dicotomia elegante: fotografia de interiores polidos, geometria arquitetônica e luz dura contrastam com detalhes orgânicos e texturas que reaparecem conforme a transformação progride. O diretor de fotografia usa a casa moderna como microcosmo, com planos longos que enfatizam a presença humana diminuta diante de volumes arquitetônicos e enquadramentos que isolam o corpo. Essa escolha formal serve ao propósito temático — a alienação da protagonista em relação ao seu próprio corpo e à família —, mas ao mesmo tempo gera certa frieza estética que, por vezes, diminui a empatia plena necessária para o desfecho emocional. A fotografia e a direção de arte são precisas e muitas vezes belas; o problema é quando a beleza técnica entra em conflito com a necessidade de intensidade dramática. 

Do ponto de vista da construção dramática, Varley sabe dosar o mistério inicial: temos um acidente, uma quarentena, exames em trajes de proteção e a sensação de vigilância constante que transforma a casa em um aquário. Kate Mara lidera com uma contenção que evita melodrama fácil; seus gestos mínimos comunicam dor, confusão e um crescente distanciamento do mundo humano — uma interpretação que equilibra frieza clínica e impulso maternal em momentos precisos. Laurence Fishburne empresta humanidade ao núcleo de autoridade militar, funcionando tanto como catalisador das tensões políticas (o aparato estatal que instrumentaliza o corpo) quanto como figura emocional que tenta proteger, mas acaba por instrumentalizar. Há trabalho de elenco consistente, com cenas familiares funcionando como âncoras afetivas antes que a narrativa as volatilize.

A edição, porém, é um terreno ambivalente: a montagem cria fases muito bem demarcadas — quarentena, isolamento, transgressão corporal — mas esbarra em problemas de ritmo. O filme começa com uma cadência medida e ganha densidade; na metade, contudo, o foco se estreita tanto no micro-horror que o tempo dramático parece estagnar, dependendo de jump-scares e imagens de efeito mais do que de uma progressão psicológica sólida. Já o final acelera na explicação dos acontecimentos, comprimindo reviravoltas que pediriam mais espaço para respirar. Essa escolha deixa uma sensação de descompasso: a construção longa e atmosférica que precede o clímax promete uma resolução igualmente trabalhada, mas acaba optando pela síntese — o que pode frustrar espectadores que esperavam uma revelação mais trabalhada emocionalmente. 

Quanto ao imaginário das criaturas e das transformações corporais, Varley acerta ao evitar o excesso de bobagens tecnológicas: a origem e a natureza do fenômeno mantêm-se parcialmente ambíguas, o que ajuda a preservar o horror metafórico — uma metáfora sobre alienação, perda de identidade e a política do corpo no contexto militar e científico. Ainda assim, a tentativa de dar explicação na reta final passa do enigmático ao expositivo, reduzindo um pouco o mistério. É um filme que ganha quando se entrega ao incômodo sensorial e à imagem forte — as cenas de insetos, a pele que se modifica, os sinais de um corpo que "não pertence" mais — e perde quando tenta amarrar tudo com uma lógica narrativa completa. 

No balanço final, A Astronauta é uma estreia que impressiona mais pelo vocabulário visual e sonoro do que pela coerência dramática perfeita. É cinema de sensações: há vigor na aposta estética, segurança no trabalho de direção de atores e momentos de horror corporal que ficam na retina. Ainda assim, a obra tropeça em escolhas de ritmo e numa conclusão que, por ser demasiadamente apressada, não entrega totalmente o potencial emocional do material. Para quem gosta de ficção científica que funciona como fábula corporal e de filmes de horror intimistas que privilegiam atmosfera sobre explicação, é uma experiência recompensadora; para espectadores que buscam resolução narrativa e profundidade emocional equilibradas do início ao fim, ela pode parecer incompleta.

Em outras palavras: A Astronauta nos leva a um lugar bonito e inquietante — e isso por si só já é mérito —, mas pede, em retorno, uma paciência que nem sempre é recompensada por uma catarse plenamente satisfatória. É um filme que respira e palpita; sua potência está nas imagens e no som, e seu limite está na pressa de explicá-las.

novembro 27, 2025

Bugonia (2025)

 


Título original: Bugonia
Direção: Yorgos Lanthimos
Sinopse: Dois jovens obcecados por teorias da conspiração sequestram a poderosa CEO de uma grande empresa, convencidos de que ela é uma alienígena com a intenção de destruir o planeta Terra.


Desde os primeiros minutos, Bugonia impõe seu estilo grotesco com força: a premissa de dois conspiracionistas sequestrando uma poderosa CEO — Emma Stone como Michelle Fuller — porque acreditam que ela é uma alienígena prestes a destruir a Terra já indica que não estamos diante de entretenimento leve. A atmosfera construída por Lanthimos flerta com o absurdo, a paranoia e a crítica social — e, em tese, há semente para algo contundente. O problema é que, no esforço de unir sátira, horror psicológico, denúncia de desigualdades e loucura moderna, o filme acaba tropeçando tanto em suas pretensões quanto em seu ritmo e coerência temática.

Lanthimos, com o apoio da fotografia de Robbie Ryan, acerta em parte da ambientação e estética: o contraste visual entre a vida ordenada e estéril da CEO e o submundo degradado dos sequestradores dá ao filme uma tensão imediata, quase claustrofóbica. As cenas no porão — onde Michelle é mantida — usam enquadramentos deliberados: ele filma Teddy (Jesse Plemons) de baixo para cima, conferindo-lhe poder e domínio, enquanto Stone é registrada de cima, vulnerável, lembrando, em sua impassibilidade soturna e olhar atentíssimo, imagens de filmes clássicos de aflição. Essa escolha de linguagem visual, quando funciona, mostra que Lanthimos ainda domina a composição de cena: consegue transmitir alienação, desespero e repulsa apenas pela conjugação entre luz, ângulo e corpos.

A trilha sonora de Jerskin Fendrix — colaborador recorrente de Lanthimos — parece, em alguns momentos, uma personagem à parte: claustrofóbica, estranha, dissonante, reforça o desconforto. Isso agrega à limpidez do horror psicológico e existencial que o filme busca evocar. 

E os atores? Stone e Plemons são, de fato, os pontos altos da película. Ele mergulha de corpo e alma no delírio de Teddy: há momentos em que seu desespero, convicção paranoica e fervor de justiceiro (ou messias da conspiração) dão ao personagem uma carga quase hipnótica — e repulsiva. Stone, por sua vez, equilibra postura fria e contida de executiva com flashes de vulnerabilidade e medo — mesmo muitas vezes reduzida ao espaço físico limitado do porão, ela consegue imprimir empatia e humanidade, fornecendo ao espectador um ponto de identificação talvez consciente. 

Entretanto, nenhum desses acertos sobrevive ao peso de uma construção narrativa que parece, por vezes, mais interessada no estilo do que no conteúdo. Bugonia parece vítima da própria ambição: a ideia de usar horror, sci-fi, sátira social e crítica à cultura de conspirações poderia render um filme denso e relevante — mas o roteiro de Will Tracy (responsável também por séries e thrillers recentes) falha em sustentar a coesão dessas camadas. 

Há momentos de cena forte, de tensão palpável, de horror que incomoda. Mas em outros, o filme se perde: a conversão entre crítica social e espetáculo grotesco soa no fim como uma panfletagem ou como um exercício de choque sem profundidade. O desenrolar da narrativa — especialmente na reta final — levanta questões que nunca chegam a ser respondidas com clareza: a ambiguidade entre quem é o monstro (a CEO? os sequestradores? a sociedade?) termina parecendo menos propositalmente inquietante e mais confusamente indecisa. A provocação moral que poderia surgir se dilui num emaranhado de violência gráfica, simbolismo forçado e decisões narrativas abertamente contraditórias. 

Há também uma sensação de repetição: após os sucessos anteriores da parceria entre Lanthimos e Stone, espera-se um frescor — um atrevimento novo, uma surpresa. Mas Bugonia recai com mais força sobre uma familiaridade estilística, como se Lanthimos recalibrasse sua fórmula para um público que já conhece seu trabalho. Em vez de expandir seus horizontes criativos, o filme parece se contentar em revisitar velhas táticas de choque, surpresas visuais e humor negro. 

Por fim, o impacto emocional — que poderia ser o pulso vital de Bugonia — se desfaz. O horror, a angústia e o desconforto existencial que o filme promete não se consolidam em algo memorável, duradouro. Restam cenas fortes, visuais interessantes, atuações competentes — mas o todo se mostra moralmente confuso, narrativamente torto e dramaticamente fraco.

Para quem aprecia o trabalho de Lanthimos, Bugonia oferece lampejos do autor que a gente conhece: a estética perturbadora, a frieza satírica, a desconstrução dos discursos de poder. Mas aqui o autor parece caminhar com pés de chumbo, dividido entre querer chocar, querer comentar, querer espetacularizar. O resultado é uma obra desequilibrada — não por medo de ousar, mas por medo de se comprometer com aquilo que ousa.

No fim, Bugonia não consegue se tornar nada além de um exercício de estilo que, por mais que atinja alguns acertos isolados, falha em construir a tensão moral e existencial que sua premissa carregava. Fica a sensação de desperdício de potencial. Um filme de impressões fortes — mas de essência frágil.

GOAT (2025)

 


Título original: HIM
Direção: Justin Tipping
Sinopse: Um atleta promissor é convidado a treinar com a estrela da equipe que está prestes a se aposentar.


O novo filme de Justin Tipping inaugura um território tênue e perigoso: o encontro entre o universo esportivo — com toda a sua carga de suor, ambição e sacrifício — e o horror psicológico e simbólico. GOAT tenta transpor o glamour e o suor do futebol americano para uma fábula sombria, em que a busca pela excelência física, idolatria e a obsessão pela glória se transformam em ritual de autoaniquilação. A premissa é potente: o jovem quarterback Cameron “Cam” Cade — interpretado por Tyriq Withers —, traçado pela ambição desde menino, sofre uma lesão traumática. Sob a tutela do lendário ex-quarterback Isaiah White, vivido por Marlon Wayans, Cam aceita o desafio de treinar numa espécie de refúgio isolado. O que começa como reabilitação e promessa de sucesso se transforma numa espiral de horror, delírio e sacrifício — e o filme não hesita em mergulhar o espectador num pesadelo sensorial. 

Visualmente, GOAT consegue ser ao mesmo tempo sedutor e atordoante. A fotografia de Kira Kelly aposta em contrastes dramáticos: os campos de treino e salas iluminadas artificialmente evocam a crueza do esporte profissional, enquanto a propriedade isolada, no deserto, ganha tons de sonho febril — claustrofobia cromática que denuncia o quanto a aspiração à glória está enraizada em sacrifício.  A montagem de Taylor Joy Mason reforça essa oscilação entre corpo e mente, marcando o ritmo com cortes secos nos treinos físicos, transições difusas nas visões e um crescendo crescente de tensão, especialmente nos momentos de lesão ou colapso. A trilha sonora de Bobby Krlic complementa essa ambiência com texturas densas e graves — batidas que se assemelham a batimentos cardíacos, drones orquestrais que parecem estremecer ossos —, evocando a sensação de que o corpo não é apenas veículo, mas campo de batalha, matriz de dor e sacrifício. 

O diretor opta por transformar o futebol não em esporte-palco, mas em rito: o treinamento, os exercícios, a repetição de dores, lesões, o culto ao ídolo — tudo é ritualizado. Muitas imagens evocam iconografia religiosa e sacrificial, como se a glória esportiva fosse promissora de transcendência — algo que a pele do atleta deveria pagar com sofrimento. Mas a ambição simbólica do filme escorrega ocasionalmente: o horror místico, as alucinações, os traços de fanatismo misturam-se de tal forma que o espectador fica sem certeza se tudo aquilo é real, internalização da dor ou delírio pós-trauma. O terror, quando sai do campo físico e invade o mental, torna-se ardiloso — e ao mesmo tempo, por vezes, confuso. Muitos dos símbolos usados soam mais como adereços de horror do que como estratégia dramática consistente. 

É aqui que as atuações se tornam centrais: Tyriq Withers e Marlon Wayans carregam nas costas o peso da ambição do filme — e conseguem, com mérito, sustentar grande parte da tensão. Withers entrega um Cam marcado por vulnerabilidade, desejo e ambivalência: ele não é o herói idealizado, mas um jovem deformado pela pressão, pela idolatria e pela ferida interna — física e existencial. Wayans, numa guinada de imagem, abandona o tom cômico que lhe marcou a carreira e assume um papel sombrio, hipnótico e ameaçador como Isaiah White; é a presença dele — imponente, magnética e saturada de vaidade — que transforma parte da obra em algo inquietante e imprevisível. 

Com tudo isso, o filme jamais se permite ser confortável. Há momentos de incômodo, de estranhamento — e isso é uma escolha narrativa: GOAT não busca o aplauso fácil, não quer ser mais do mesmo. A mistura de esporte, horror corporal, trauma psicológico e culto ao ídolo se torna um espelho distorcido da obsessão moderna pela performance, pela superação a qualquer custo, pela mania de grandeza embalada em glória e sangue. Porém, essa ambição estética e simbólica vem acompanhada de erros estruturais. A proposta de horror simbólico e catártico perde força quando o filme opta por imagens chocantes desconectadas da construção dramática; há trechos em que o ritmo cai, personagens secundários pouco contribuem, e o terror psicológico perde sustentação — restando, por vezes, uma sucessão de cenas visuais fortes, mas vazias de impacto narrativo. 

Mesmo com seus problemas, GOAT reserva uma virada que transforma o desespero do filme em algo visceralmente memorável: a sequência final. Num desfecho carregado de violência estilizada, horror quase operístico e embates simbólicos entre idolatria e destruição, o filme libera todo o seu aparato visual e atmosférico — e, por alguns minutos, atinge um grau de intensidade que beira o incandescente. As cenas finais funcionam como um clímax ritualístico de sangue e redenção, subvertendo a trajetória de ascensão esportiva para medo, culpa e renascimento. Há nesse trecho um delírio formal que parece referenciar o cinema de horror extremo ou de horror corporal, mas com consciência estética: é o momento em que a violência e o horror fazem sentido narrativo e simbólico em conjunto. Quando isso acontece, o filme alcança sua melhor versão — perturbadora, impactante, inesquecível.

Mas a experiência global permanece desigual. GOAT é um filme de ideias — e de devaneios —, que se arrisca e brinca com a sensação de transgressão: corpo, sangue, suor, glória, culto, medo, trauma. Para quem entra disposto a aceitar essa oscilação, há muito a extrair: metáforas sobre o corpo como mercadoria, crítica à idolatria esportiva, horror psicológico e físico, tensão existencial. Mas para quem espera coerência dramática, construção equilibrada de personagens e sutileza simbólica, o saldo tende a incomodar: as intenções dramáticas às vezes são esmagadas por aspirações visuais; o estilo muitas vezes suplanta a substância.

No fim, GOAT parece um experimento ambicioso e falho — uma obra que se joga num limiar entre o culto, o horror e a tragédia atlética. É um filme que ergue grandes cenários íntimos de dor e sacrifício, mas que não consegue sustentar todos os pilares que ergue. Ainda assim, não é um filme desprezível: em seus melhores instantes, ele vibra com força, rejeita a suavidade e impõe um desconforto necessário sobre a glória, o corpo e a idolatria.

Se fosse para fechar com uma impressão pessoal: GOAT não é um filme redondo — ele é um filme de arranha-céu: ambicioso, vertiginoso, com falhas estruturais visíveis, mas com uma impressionante intenção estética e simbólica. É obra de risco, de choque, de corpo. Não um filme para todos — talvez por isso seja fascinante para quem aceita ser sacudido.

novembro 26, 2025

A Grande Viagem da Sua Vida (2025)

 


Título original: A Big Bold Beautiful Journey
Direção: Kogonada
Sinopse: E se você pudesse abrir uma porta e atravessá-la para reviver um momento marcante do seu passado? Sarah e David acabam se conhecendo no casamento de um amigo em comum e, por uma reviravolta surpreendente do destino, se veem em uma jornada grandiosa, ousada e bela – uma aventura divertida, fantástica e arrebatadora, na qual revivem momentos importantes de seus respectivos passados, revelando como chegaram aonde estão no presente e possivelmente tendo a chance de mudarem seus futuros.


Normalmente detesto filmes de romance e nem assisto — a previsibilidade das fórmulas, os truques sentimentais gratuitos, o apelo fácil ao chororô sem substância me afastam. Dei uma chance a A Grande Viagem da Sua Vida por sua parte ilusória, pela proposta fantástica que prometia mais do que um encontro previsível entre dois corações solitários, e terminei o longa com a agradável surpresa de quem foi enganado na melhor das maneiras: o filme usa o verniz do romance para abrir fendas na memória, na culpa e no desejo, e é aí que encontra sua força. A trajetória do diretor Kogonada — vindo de uma carreira de filmes contemplativos sobre espaço, memória e tecnologia — já indicava que a aposta viraria algo menos confortável e mais artesanal, e é justamente essa tensão entre o engano formal do gênero e o projeto autoral que torna o longa interessante e, muitas vezes, comovente.

No centro do filme está David, papel de Colin Farrell, e Sarah, por Margot Robbie: duas presenças aparentemente opostas que se cruzam numa espécie de road movie onírico que os leva a revisitar grandes momentos de suas vidas através de portais poéticos. Kogonada, com seu olhar quase cartesiano para a mise-en-scène, transforma paisagens urbanas e interiores domésticos em mapas afetivos — portas, corredores e fachadas ganham o peso de memórias. A fotografia de Benjamin Loeb é fundamental nesse processo: trabalha luz difusa e composições que lembram estéticas pictóricas, enquadrando personagens como se fossem figuras deslocadas em paisagens íntimas, onde cada plano parece pensado para comportar tanto o gesto mínimo quanto um sentimento subjacente. O uso de profundidade de campo e partículas suspensas na luz confere ao filme um ar que oscila entre a nostalgia e uma estranheza quase mágica.

Colin Farrell merece um parágrafo à parte. Este é o ano dele — e não é retórica: em A Grande Viagem da Sua Vida Farrell entrega uma interpretação que equilibra humor autodepreciativo, fragilidade e uma presença física surpreendentemente contida, até explodir em momentos de puro teatro. Desde os microgestos — o olhar que desvia, a mão que hesita — até o número musical imponente no segundo ato, Farrell mostra uma gama que reconcilia o ator popular com o ator de composição. A sequência do musical, comentada em entrevistas com o elenco e a equipe como algo “mortificante” para o próprio ator, funciona como uma catarse: o constrangimento cênico do personagem transforma-se em redenção emocional e, ao mesmo tempo, em riso genuíno. Para quem acompanhou a carreira dele em papéis mais ásperos, como em Balada de Um Jogador, essa nova faceta confirma que Farrell não é um intérprete de uma só nota, mas um ator capaz de modular sua voz de acordo com a partitura do filme — de repente elegante, de repente ridículo, sempre humano. 

A direção de elenco acerta ao não transformar a relação entre David e Sarah numa cartilha romântica: Margot Robbie oferece uma performance que contrapõe leveza e vertigem — sua Sarah não é um ideal, é alguém feito de ossos e contradições, com humor seco que atravessa as cenas mais etéreas e impede que o filme deslize para a patetice. O elenco de apoio (Kevin Kline, Phoebe Waller-Bridge, nomes que ocupam pequenas cenas com grande efeito) alimenta as camadas afetivas sem sobrecarregar a narrativa. Kogonada se mostra interessado em fôlego emocional mais do que em viradas de trama; sua mão é segura quando escolhe retenções emocionais e não quando busca choques fáceis: o roteiro de Seth Reiss estrutura as viagens no tempo de forma quase episódica, como um livro de memórias dividido em pequenas parábolas — algumas mais eficazes que outras, mas raramente desinteressantes.

Tecnicamente, o filme é um objeto bem acabado. A montagem, assinada por Susan E. Kim e Jonathan Alberts, maneja o ritmo com delicadeza — alternando elipses sutis e cortes que parecem respirações, a edição sustenta o equilíbrio entre o espectro onírico e os ancoramentos domésticos. O design de som acopla efeitos cotidianos a texturas musicais, o que reforça a ideia de que lembrança e presente respiram no mesmo espaço. A escolha de Joe Hisaishi para assinar a trilha original é uma jogada de mestre: a partitura une melodia simples e ornamentos tímbricos que evocam, ora uma fábula, ora uma elegia íntima; a presença de canções contemporâneas — com nomes como Laufey e Mitski na coletânea — compõe um painel musical que dialoga bem com o tom do filme, pontuando cenas com uma doçura que não se torna açucarada. A trilha, tanto a original quanto a coletânea, é muito agradável e cumpre sua função narrativa e emocional de maneira exemplar. 

Se há problemas, residem menos na ambição temática e mais em algumas escolhas de ritmo e no desejo de agradar a diferentes públicos. Em certos momentos, o filme se demora em digressões que não contribuem significativamente para o arco central e que fazem o terceiro ato perder parte de seu ímpeto. Há também uma tendência — quase inevitável em filmes que tentam ser “universais” — de explicar demais o simbolismo para uma audiência que poderia muito bem aceitar o mistério. Ainda assim, essas são falhas de alcance e não de projeto: prefere-se um filme ambicioso que tropece do que um exercício frio e seguro que não arrisca nada.

No campo simbólico, A Grande Viagem da Sua Vida acerta ao tratar a memória como território e não como narrativa linear. As “portas” que conectam passado e presente funcionam como metáforas cinematográficas consistentes e o roteiro evita a armadilha de transformar tudo em mera catarse romanticona. Há honestidade na forma como o longa lida com culpa, arrependimento e a possibilidade — sempre imperfeita — de recomeço. O que o filme realmente propõe é menos uma receita para o amor e mais um manual para conviver com a própria história: reconhecer falhas, rir das pequenas humilhações, dançar mesmo quando o corpo reclama.

Em resumo: não é um filme perfeito, mas é um filme sincero e tecnicamente refinado, onde a união entre direção sensível, fotografia pictórica, montagem contida e especialmente a entrega de Colin Farrell resultam numa experiência que vale a pena. Terminei de assistir ao filme menos arredio ao romance convencional e com a sensação de que Kogonada encontrou, com algum risco e muita delicadeza, um caminho pessoal dentro de um gênero que costuma matar o autor. Se você aceita o jogo de ilusões do filme — e eu, que normalmente rejeito romances, aceitei — encontrará aqui uma viagem que compensa seu tempo com momentos de pura emoção e inteligência formal.

Aos Pedaços (2025)

 


Título original: Aos Pedaços
Direção: Ruy Guerra
Sinopse: Um homem vive secretamente com duas mulheres, ambas chamadas Ana, em países diferentes mas em casas idênticas, separadas por um oceano. Sua paz acaba quando ele recebe um bilhete com uma ameaça, assinado A., o que deflagra uma suspeita sobre seus dois amores.


Dizer que Aos Pedaços fracassa é pouco: aqui temos um filme que parece ter sido erguido a partir de vaidade formal e justificativas autorais, e não a partir de uma necessidade dramática. A tal “narrativa fragmentada” virou pretexto para um exercício masturbatório sobre si mesma — um objeto que finge profundidade por multiplicar imagens e monólogos, quando na verdade está vazio por dentro. A montagem fragmentária, tão proclamada em sinopses e notas de produção, deixa de construir para apenas fragmentar por fricção; a sensação que fica é a de assistir a uma demonstração técnica sem propósito, um catálogo de soluções estéticas que recusam servir a qualquer tensão dramática legítima. 

O pior problema é o tom: Aos Pedaços se monta como se a justificativa fosse “estamos na mente de alguém”, e essa desculpa narrativa aparece como um escudo para artifícios muito óbvios. Quando a direção recorre ao recurso da “mente” para explicar incoerências, saltos lógicos e exageros de encenação, o que temos é preguiça intelectual disfarçada de ousadia. Filmes que trabalham com subjetividade precisam ter uma precisão clínica na construção daquilo que é mental e daquilo que é real; aqui, a imprecisão é celebrada como se fosse profundidade. O resultado é cansativo: cada vez que o roteiro quer nos convencer de que estamos diante de um delírio interior, notamos apenas a mão que empilha artifícios para esconder a falta de dramaturgia. 

A artificialidade da encenação transforma cenas que poderiam ganhar densidade em pequenos espetáculos de má atuação e declamação. Em vez de cinema — que exige construção de espaço, respiração de interpretação e coragem de silêncios —, testemunhamos uma peça de teatro exagerada filmada, com atores que muitas vezes parecem declamar texto em riste, como se o plano fosse sempre um palco frontal. A câmera, que poderia enquadrar a ruína íntima do personagem, prefere enquadramentos que anunciam: “vejam a composição”. Composições que, isoladamente, poderiam ser admiradas, tornam-se aqui uma armadilha estética: o filme vive do enquadro e morre na sequência. 

O roteiro é igualmente problemático: abusa de monólogos que estejam ali para explicar o que deveria ser mostrado. Quando um filme opta por monólogos expositivos — especialmente neste tom teórico e pretensioso —, ele assume o risco de transformar espectadores em leitores de placa. Aos Pedaços cai nesse erro repetidas vezes; fala demais sobre paranoia e quase nada através de ação ou decisão dramática convincente. Em muitos trechos, a sensação é de que o longa não teve coragem de confiar no cinema como linguagem, preferindo explicar e racionalizar em vez de permitir que a imagem e o ator façam o trabalho. Isso gera um cansaço acumulado: o espectador é levado a peregrinar por longas passagens de discurso sem ar, audição passiva que não engaja intelectualmente nem emocionalmente. 

Tecnicamente, há acertos que só servem para reforçar a injustiça: se a fotografia às vezes oferece quadros de grande contraste e a direção de arte tenta imprimir uma unidade simbólica entre as duas casas, mas tudo isso fica refém do tom autorreferente. Ou seja, a técnica existe, mas não para contar; existe para enfeitar. Quando a forma deixa de ser instrumento para virar vitrine, perde autoridade moral: assistir a Aos Pedaços é ver esforço técnico transformado em verniz sobre uma narrativa que não sustenta o próprio peso. A trilha, os planos fixos, o gosto por sombras e sombras sobre sombras — tudo isso vira máscara, e a máscara aqui é desconfortavelmente impermeável à verdade dramática. 

O ritmo é outra falha monumental: o filme se arrasta, enuncia e repete. Em vez de usar o tempo para criar escalada de tensão, Guerra e os roteiristas parecem contentes em prolongar a sensação de redundância até que qualquer expectativa do público se apague por completo. Não se trata apenas de “filme lento” — existe diferença entre paciência narrativa e imobilidade preguiçosa; Aos Pedaços está no segundo lado desse abismo. Cada minuto extra parece uma tentativa de legitimar a obra pelo seu próprio comprimento, como se a duração fosse prova de profundidade. Não é: é tédio revestido de pretensão. 

Quanto às interpretações, prefiro não sequer amenizar: a direção de atores oscila entre a declamação e o vazio. Há momentos em que a atuação soa tão maquinal que rouba da cena qualquer possibilidade de empatia. Julgando estritamente pelo efeito em tela, a expressão corporal e vocal dos protagonistas muitas vezes parece coordenada para transmitir "significado", mas sem a alma necessária para que esse significado exista como experiência. Isso é particularmente irritante num filme que se vende como íntimo e febril: se tudo é interior, por que nada interioriza de verdade? O descompasso entre intenção e execução aqui é simplesmente assombroso.

Por fim, resta a questão do propósito: para quem foi feito Aos Pedaços? Para festivais, para um público que celebra o jogo formal pela sua própria existência, ou para espectadores que buscam envolvimento? Se a intenção era provocar, o filme acaba provocando apenas a sensação de perda de tempo. Se a intenção era incomodar, nos incomoda pela frustração e pelo sentimento de que o cinema foi usado como câmara de eco para egos. E no balanço final, a obra não sustenta nem a estética que promove, nem o discurso que investe — resta apenas uma sucessão de artifícios cansativos que tornam a experiência estafante, irritante e, acima de tudo, inútil.

Em suma: Aos Pedaços não é apenas um filme ruim; é uma operação estética que transforma a audácia em tédio, a subjetividade em desculpa e o cinema em teatro filmado sem compromisso com a verdade emotiva. Sai-se da sala com a sensação de ter testemunhado um esforço longo e vão, um espetáculo onde o vazio se traveste de profundidade. Não há aqui redenção formal nem moral: só resta o desconforto de assistir a um filme que podia, e deveria, ter ficado apenas no rascunho.