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novembro 29, 2025

Viagem de Risco (2025)

 


Título original: Fight or Flight
Direção: James Madigan
Sinopse: Um mercenário assume a tarefa de eliminar um alvo de alto valor em um voo, mas quando uma enxurrada de assassinos rivais aparece, ele percebe que eles terão que se unir para sobreviver.


Viagem de Risco é daqueles filmes que chegam sem pedir licença e transformam a sala da sua casa num parque de diversões cinematográfico. Há algo nele que pulsa desde os primeiros minutos, uma vibração ousada que mistura adrenalina, humor ácido e um prazer quase infantil de assistir um filme de ação que não teme parecer absurdo. Certamente um dos filmes mais gostosos e divertidos de se assistir que vi em muito tempo — e isso já diz muito para quem acompanha o ritmo atual das produções de ação hollywoodianas, que frequentemente se perdem na própria grandiosidade.

Dirigido por James Madigan, que até então era mais conhecido por sua trajetória sólida como supervisor de efeitos visuais em superproduções, o longa assume com confiança o espírito de um thriller aéreo, mas sem jamais se restringir às convenções do gênero. A trama acompanha um ex-agente interpretado por Josh Hartnett, encarregado de transportar um alvo misterioso, conhecido apenas como Ghost, em um voo transcontinental a bordo de um Airbus A380. A tecnologia, a proporção e o design do avião não são meros detalhes: Madigan transforma o gigante do ar em um labirinto de possibilidades cênicas, funcionando quase como um personagem vivo dentro da narrativa.

Ainda que o filme comece como um thriller mais contido, com toques de espionagem, rapidamente se percebe que a intenção não é seguir por um caminho sério demais. A sensação é de que Madigan flerta com o drama e a tensão apenas para, em seguida, subvertê-los com entusiasmo. Da metade para o fim, o roteiro deliberadamente chuta o balde e se transforma em uma grande celebração de exageros: confrontos coreografados de maneira quase utópica, sequências psicodélicas que brincam com cores e movimentos, e uma quantidade de sangue que lembra diretamente o estilo visual de Quentin Tarantino. Não de maneira imitativa, mas como um tributo escancarado à violência estilizada e catártica que fez escola. A sensação geral é a de estar testemunhando uma espécie de Kill Bill dentro de um avião, com o mesmo senso de humor sarcástico e a mesma liberdade estética.

Entre os elementos mais impressionantes da produção está a decisão de filmar muitas das cenas de luta sem cortes abruptos. As coreografias, desenvolvidas com evidente rigor técnico, ganham impacto justamente porque o espectador é convidado a acompanhá-las de forma contínua, sem a edição fragmentada que costuma mascarar movimentos. Com isso, cada golpe, cada queda, cada reviravolta dentro de um corredor estreito ou de uma cabine luxuosa entrega não só um espetáculo visual, mas também um senso físico de presença. É visceral, é dinâmico e, acima de tudo, é impressionante.

A fotografia de Matt Flannery contribui para esse efeito com luzes e sombras que ampliam a sensação de confinamento, ao mesmo tempo em que brincam com a geometria do avião de maneira engenhosa. A paleta varia entre o frio do aço e o neon de delírios cromáticos que surgem conforme a narrativa mergulha cada vez mais no exagero. A montagem de Ben Mills, mesmo quando opta por sequências mais vertiginosas, mantém a coerência espacial necessária para que o espectador entenda a geografia dos confrontos — algo que muitos filmes de ação contemporâneos simplesmente não conseguem entregar.

Outro elemento que merece destaque é a trilha sonora de Paul Saunderson. Em vez de apostar em músicas facilmente reconhecíveis ou em composições épicas previsíveis, o filme opta por uma seleção de faixas absurdamente aleatórias, que reforçam o aspecto humorístico e o absurdo visual do longa. Esse contraste entre som e imagem lembra imediatamente a irreverência das trilhas clássicas de Tarantino: há um humor involuntário, um charme deslocado que intensifica a experiência. Cada música parece surgir não para reforçar a emoção da cena, mas para contrariá-la — e justamente por isso funciona tão bem.

No centro desse caos planejado está Josh Hartnett, que entrega aqui uma das atuações mais divertidas e afiadas de sua carreira recente. Seu talento natural para o humor ácido reaparece com vigor, lembrando seu desempenho em Xeque-Mate (Lucky Number Slevin, 2006). Hartnett equilibra cinismo, senso de perigo e momentos de fragilidade de um jeito que torna seu personagem não apenas carismático, mas também funcional dentro da lógica exagerada da história. Ele sabe rir de si mesmo, sabe rir do filme, e sabe exatamente até onde pode levar o absurdo sem quebrar a suspensão de descrença do público. É uma performance que transcende o simples “herói de ação” e encontra personalidade dentro do caos.

É verdade que o filme não busca coerência absoluta e nem pretende parecer plausível — e ainda bem. A narrativa abre mão de explicações muito elaboradas, assume atalhos, brinca com clichês e, em alguns momentos, se entrega sem pudor a soluções mirabolantes. Mas tudo isso é parte intencional da brincadeira. Ele não quer ser contido, não quer ser sóbrio, não quer ser realista. Quer ser divertido, surpreendente, estiloso e exagerado — e cumpre essa proposta com uma convicção rara.

Ao final, Viagem de Risco oferece algo que às vezes parece estar desaparecendo do cinema de ação comercial: espontaneidade. Ele não se leva tão a sério quanto poderia, mas é justamente isso que o torna tão prazeroso. É um filme que pulsa, respira e se diverte com seu próprio excesso, sem nunca perder o controle sobre a própria estética.

Quando os créditos sobem, a sensação é clara: poucos filmes recentes entregaram tamanha mistura de energia, humor, violência estilizada e criatividade visual. É entretenimento puro, feito com técnica, personalidade e um sorriso malicioso no canto da boca. Um lembrete poderoso de que o cinema também existe para nos arrancar da rotina e nos jogar em viagens completamente insanas — e deliciosas.