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novembro 26, 2025

A Grande Viagem da Sua Vida (2025)

 


Título original: A Big Bold Beautiful Journey
Direção: Kogonada
Sinopse: E se você pudesse abrir uma porta e atravessá-la para reviver um momento marcante do seu passado? Sarah e David acabam se conhecendo no casamento de um amigo em comum e, por uma reviravolta surpreendente do destino, se veem em uma jornada grandiosa, ousada e bela – uma aventura divertida, fantástica e arrebatadora, na qual revivem momentos importantes de seus respectivos passados, revelando como chegaram aonde estão no presente e possivelmente tendo a chance de mudarem seus futuros.


Normalmente detesto filmes de romance e nem assisto — a previsibilidade das fórmulas, os truques sentimentais gratuitos, o apelo fácil ao chororô sem substância me afastam. Dei uma chance a A Grande Viagem da Sua Vida por sua parte ilusória, pela proposta fantástica que prometia mais do que um encontro previsível entre dois corações solitários, e terminei o longa com a agradável surpresa de quem foi enganado na melhor das maneiras: o filme usa o verniz do romance para abrir fendas na memória, na culpa e no desejo, e é aí que encontra sua força. A trajetória do diretor Kogonada — vindo de uma carreira de filmes contemplativos sobre espaço, memória e tecnologia — já indicava que a aposta viraria algo menos confortável e mais artesanal, e é justamente essa tensão entre o engano formal do gênero e o projeto autoral que torna o longa interessante e, muitas vezes, comovente.

No centro do filme está David, papel de Colin Farrell, e Sarah, por Margot Robbie: duas presenças aparentemente opostas que se cruzam numa espécie de road movie onírico que os leva a revisitar grandes momentos de suas vidas através de portais poéticos. Kogonada, com seu olhar quase cartesiano para a mise-en-scène, transforma paisagens urbanas e interiores domésticos em mapas afetivos — portas, corredores e fachadas ganham o peso de memórias. A fotografia de Benjamin Loeb é fundamental nesse processo: trabalha luz difusa e composições que lembram estéticas pictóricas, enquadrando personagens como se fossem figuras deslocadas em paisagens íntimas, onde cada plano parece pensado para comportar tanto o gesto mínimo quanto um sentimento subjacente. O uso de profundidade de campo e partículas suspensas na luz confere ao filme um ar que oscila entre a nostalgia e uma estranheza quase mágica.

Colin Farrell merece um parágrafo à parte. Este é o ano dele — e não é retórica: em A Grande Viagem da Sua Vida Farrell entrega uma interpretação que equilibra humor autodepreciativo, fragilidade e uma presença física surpreendentemente contida, até explodir em momentos de puro teatro. Desde os microgestos — o olhar que desvia, a mão que hesita — até o número musical imponente no segundo ato, Farrell mostra uma gama que reconcilia o ator popular com o ator de composição. A sequência do musical, comentada em entrevistas com o elenco e a equipe como algo “mortificante” para o próprio ator, funciona como uma catarse: o constrangimento cênico do personagem transforma-se em redenção emocional e, ao mesmo tempo, em riso genuíno. Para quem acompanhou a carreira dele em papéis mais ásperos, como em Balada de Um Jogador, essa nova faceta confirma que Farrell não é um intérprete de uma só nota, mas um ator capaz de modular sua voz de acordo com a partitura do filme — de repente elegante, de repente ridículo, sempre humano. 

A direção de elenco acerta ao não transformar a relação entre David e Sarah numa cartilha romântica: Margot Robbie oferece uma performance que contrapõe leveza e vertigem — sua Sarah não é um ideal, é alguém feito de ossos e contradições, com humor seco que atravessa as cenas mais etéreas e impede que o filme deslize para a patetice. O elenco de apoio (Kevin Kline, Phoebe Waller-Bridge, nomes que ocupam pequenas cenas com grande efeito) alimenta as camadas afetivas sem sobrecarregar a narrativa. Kogonada se mostra interessado em fôlego emocional mais do que em viradas de trama; sua mão é segura quando escolhe retenções emocionais e não quando busca choques fáceis: o roteiro de Seth Reiss estrutura as viagens no tempo de forma quase episódica, como um livro de memórias dividido em pequenas parábolas — algumas mais eficazes que outras, mas raramente desinteressantes.

Tecnicamente, o filme é um objeto bem acabado. A montagem, assinada por Susan E. Kim e Jonathan Alberts, maneja o ritmo com delicadeza — alternando elipses sutis e cortes que parecem respirações, a edição sustenta o equilíbrio entre o espectro onírico e os ancoramentos domésticos. O design de som acopla efeitos cotidianos a texturas musicais, o que reforça a ideia de que lembrança e presente respiram no mesmo espaço. A escolha de Joe Hisaishi para assinar a trilha original é uma jogada de mestre: a partitura une melodia simples e ornamentos tímbricos que evocam, ora uma fábula, ora uma elegia íntima; a presença de canções contemporâneas — com nomes como Laufey e Mitski na coletânea — compõe um painel musical que dialoga bem com o tom do filme, pontuando cenas com uma doçura que não se torna açucarada. A trilha, tanto a original quanto a coletânea, é muito agradável e cumpre sua função narrativa e emocional de maneira exemplar. 

Se há problemas, residem menos na ambição temática e mais em algumas escolhas de ritmo e no desejo de agradar a diferentes públicos. Em certos momentos, o filme se demora em digressões que não contribuem significativamente para o arco central e que fazem o terceiro ato perder parte de seu ímpeto. Há também uma tendência — quase inevitável em filmes que tentam ser “universais” — de explicar demais o simbolismo para uma audiência que poderia muito bem aceitar o mistério. Ainda assim, essas são falhas de alcance e não de projeto: prefere-se um filme ambicioso que tropece do que um exercício frio e seguro que não arrisca nada.

No campo simbólico, A Grande Viagem da Sua Vida acerta ao tratar a memória como território e não como narrativa linear. As “portas” que conectam passado e presente funcionam como metáforas cinematográficas consistentes e o roteiro evita a armadilha de transformar tudo em mera catarse romanticona. Há honestidade na forma como o longa lida com culpa, arrependimento e a possibilidade — sempre imperfeita — de recomeço. O que o filme realmente propõe é menos uma receita para o amor e mais um manual para conviver com a própria história: reconhecer falhas, rir das pequenas humilhações, dançar mesmo quando o corpo reclama.

Em resumo: não é um filme perfeito, mas é um filme sincero e tecnicamente refinado, onde a união entre direção sensível, fotografia pictórica, montagem contida e especialmente a entrega de Colin Farrell resultam numa experiência que vale a pena. Terminei de assistir ao filme menos arredio ao romance convencional e com a sensação de que Kogonada encontrou, com algum risco e muita delicadeza, um caminho pessoal dentro de um gênero que costuma matar o autor. Se você aceita o jogo de ilusões do filme — e eu, que normalmente rejeito romances, aceitei — encontrará aqui uma viagem que compensa seu tempo com momentos de pura emoção e inteligência formal.