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novembro 26, 2025

Aos Pedaços (2025)

 


Título original: Aos Pedaços
Direção: Ruy Guerra
Sinopse: Um homem vive secretamente com duas mulheres, ambas chamadas Ana, em países diferentes mas em casas idênticas, separadas por um oceano. Sua paz acaba quando ele recebe um bilhete com uma ameaça, assinado A., o que deflagra uma suspeita sobre seus dois amores.


Dizer que Aos Pedaços fracassa é pouco: aqui temos um filme que parece ter sido erguido a partir de vaidade formal e justificativas autorais, e não a partir de uma necessidade dramática. A tal “narrativa fragmentada” virou pretexto para um exercício masturbatório sobre si mesma — um objeto que finge profundidade por multiplicar imagens e monólogos, quando na verdade está vazio por dentro. A montagem fragmentária, tão proclamada em sinopses e notas de produção, deixa de construir para apenas fragmentar por fricção; a sensação que fica é a de assistir a uma demonstração técnica sem propósito, um catálogo de soluções estéticas que recusam servir a qualquer tensão dramática legítima. 

O pior problema é o tom: Aos Pedaços se monta como se a justificativa fosse “estamos na mente de alguém”, e essa desculpa narrativa aparece como um escudo para artifícios muito óbvios. Quando a direção recorre ao recurso da “mente” para explicar incoerências, saltos lógicos e exageros de encenação, o que temos é preguiça intelectual disfarçada de ousadia. Filmes que trabalham com subjetividade precisam ter uma precisão clínica na construção daquilo que é mental e daquilo que é real; aqui, a imprecisão é celebrada como se fosse profundidade. O resultado é cansativo: cada vez que o roteiro quer nos convencer de que estamos diante de um delírio interior, notamos apenas a mão que empilha artifícios para esconder a falta de dramaturgia. 

A artificialidade da encenação transforma cenas que poderiam ganhar densidade em pequenos espetáculos de má atuação e declamação. Em vez de cinema — que exige construção de espaço, respiração de interpretação e coragem de silêncios —, testemunhamos uma peça de teatro exagerada filmada, com atores que muitas vezes parecem declamar texto em riste, como se o plano fosse sempre um palco frontal. A câmera, que poderia enquadrar a ruína íntima do personagem, prefere enquadramentos que anunciam: “vejam a composição”. Composições que, isoladamente, poderiam ser admiradas, tornam-se aqui uma armadilha estética: o filme vive do enquadro e morre na sequência. 

O roteiro é igualmente problemático: abusa de monólogos que estejam ali para explicar o que deveria ser mostrado. Quando um filme opta por monólogos expositivos — especialmente neste tom teórico e pretensioso —, ele assume o risco de transformar espectadores em leitores de placa. Aos Pedaços cai nesse erro repetidas vezes; fala demais sobre paranoia e quase nada através de ação ou decisão dramática convincente. Em muitos trechos, a sensação é de que o longa não teve coragem de confiar no cinema como linguagem, preferindo explicar e racionalizar em vez de permitir que a imagem e o ator façam o trabalho. Isso gera um cansaço acumulado: o espectador é levado a peregrinar por longas passagens de discurso sem ar, audição passiva que não engaja intelectualmente nem emocionalmente. 

Tecnicamente, há acertos que só servem para reforçar a injustiça: se a fotografia às vezes oferece quadros de grande contraste e a direção de arte tenta imprimir uma unidade simbólica entre as duas casas, mas tudo isso fica refém do tom autorreferente. Ou seja, a técnica existe, mas não para contar; existe para enfeitar. Quando a forma deixa de ser instrumento para virar vitrine, perde autoridade moral: assistir a Aos Pedaços é ver esforço técnico transformado em verniz sobre uma narrativa que não sustenta o próprio peso. A trilha, os planos fixos, o gosto por sombras e sombras sobre sombras — tudo isso vira máscara, e a máscara aqui é desconfortavelmente impermeável à verdade dramática. 

O ritmo é outra falha monumental: o filme se arrasta, enuncia e repete. Em vez de usar o tempo para criar escalada de tensão, Guerra e os roteiristas parecem contentes em prolongar a sensação de redundância até que qualquer expectativa do público se apague por completo. Não se trata apenas de “filme lento” — existe diferença entre paciência narrativa e imobilidade preguiçosa; Aos Pedaços está no segundo lado desse abismo. Cada minuto extra parece uma tentativa de legitimar a obra pelo seu próprio comprimento, como se a duração fosse prova de profundidade. Não é: é tédio revestido de pretensão. 

Quanto às interpretações, prefiro não sequer amenizar: a direção de atores oscila entre a declamação e o vazio. Há momentos em que a atuação soa tão maquinal que rouba da cena qualquer possibilidade de empatia. Julgando estritamente pelo efeito em tela, a expressão corporal e vocal dos protagonistas muitas vezes parece coordenada para transmitir "significado", mas sem a alma necessária para que esse significado exista como experiência. Isso é particularmente irritante num filme que se vende como íntimo e febril: se tudo é interior, por que nada interioriza de verdade? O descompasso entre intenção e execução aqui é simplesmente assombroso.

Por fim, resta a questão do propósito: para quem foi feito Aos Pedaços? Para festivais, para um público que celebra o jogo formal pela sua própria existência, ou para espectadores que buscam envolvimento? Se a intenção era provocar, o filme acaba provocando apenas a sensação de perda de tempo. Se a intenção era incomodar, nos incomoda pela frustração e pelo sentimento de que o cinema foi usado como câmara de eco para egos. E no balanço final, a obra não sustenta nem a estética que promove, nem o discurso que investe — resta apenas uma sucessão de artifícios cansativos que tornam a experiência estafante, irritante e, acima de tudo, inútil.

Em suma: Aos Pedaços não é apenas um filme ruim; é uma operação estética que transforma a audácia em tédio, a subjetividade em desculpa e o cinema em teatro filmado sem compromisso com a verdade emotiva. Sai-se da sala com a sensação de ter testemunhado um esforço longo e vão, um espetáculo onde o vazio se traveste de profundidade. Não há aqui redenção formal nem moral: só resta o desconforto de assistir a um filme que podia, e deveria, ter ficado apenas no rascunho.