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setembro 27, 2025

Os Malditos (2025)

 


Título original: The Damned
Direção: Þórður Pálsson
Sinopse: Uma viúva do século XIX é encarregada de fazer uma escolha impossível quando, durante um inverno especialmente cruel, um navio afunda na costa de sua empobrecida vila de pescadores islandesa. Qualquer tentativa de resgatar sobreviventes corre o risco de esgotar ainda mais os suprimentos dos moradores famintos.


Estou realmente farto desses filmes de mistério, terror e coisas do tipo que se passam na Islândia, sempre com os mesmos cenários (especialmente da praia de Vík, onde estive inúmeras vezes), que não transmitem mais nenhum tipo de mistério pelo esgotamento do cenário das últimas duas décadas que se transformou a Islândia. Com essa declaração já na primeira linha, é preciso encarar Os Malditos (The Damned, 2025), de Þórður Pálsson, como mais um exemplar dessa safra que aposta tudo na paisagem e muito pouco na invenção narrativa. O filme se apresenta, à primeira vista, como um conto de vingança folclórica e horror moral situado numa estação de pesca do século XIX: a premissa — um naufrágio, a decisão de não ajudar os sobreviventes e as consequências sobrenaturais/psicológicas que se seguem — foi explorada com competência técnica em alguns momentos, mas cai na repetição e na inércia dramática. 

Pálsson demonstra um bom gosto estético: a fotografia de Eli Arenson empilha horizontes gélidos, neves e céus baixos em composições que lembram, em pulseadas visuais, o cinema folk-horror contemporâneo. Há enquadramentos que funcionam como pequenas lâminas cortantes — horizontes que se rompem com um corpo na praia, mãos que emergem do gelo, close-ups que respiram claustrofobia — e a mixagem de som frequentemente sustenta a cena melhor do que o roteiro. Esses acertos técnicos, porém, não salvam a estrutura frágil do texto adaptado por Jamie Hannigan: a narrativa hesita entre a fábula moral e o pastiche de câmara, e as elipses não criam mistério — criam frustração. 

O elenco entrega trabalho digno: Odessa Young carrega a película com uma presença física e uma tensão contida que, em instantes, tornam verossímil o medo e a culpa que corroem sua protagonista. Joe Cole e Rory McCann oferecem perícias rudes que combinam com o ambiente de dureza econômica e moral da comunidade; ainda assim, a construção dos personagens é esparsa, e suas motivações nunca recebem o cuidado necessário para que as escolhas extremas do filme ecoem com força. É como se Pálsson preferisse que os atores servissem de marionetes para uma atmosfera já conhecida — bonita, mas previsível — em vez de cristalizá-los como sujeitos complexos. Isso compromete o impacto das cenas-chave, porque quando o roteiro finalmente tenta forçar uma alegoria sobre culpa e sobrevivência, falta substrato dramático para que a alegoria funcione plenamente. 

O som e a edição, por outro lado, são dois componentes que merecem menção: há momentos de montagem que alcançam tensão verdadeira, cortes que traduzem o pânico e a fragmentação mental; e a textura sonora — passos no gelo, rangidos de cordas, o bater distante do mar — cria um ambiente físico quase palpável. Mas esses recursos são usados de forma episódica, pontual, e não sustentam o todo. O filme parece correr atrás de set pieces atmosféricas em vez de desenvolver uma progressão dramática coerente. O descompasso entre intenção e execução é nítido: Pálsson sabe formular imagens memoráveis, porém não sabe ampliar essas imagens para uma narrativa cujo crescendo emocional convença. 

E aqui preciso ser direto: filme arrastado que não traz nada de novo, nenhum susto, nada. Entediante. A lentidão nunca é uma virtude por si só — ela só é justificável quando revela camadas novas do texto ou quando instala um terror que gradual e inexoravelmente corrói o espectador. Em Os Malditos, a lentidão se transforma em preguiça de invenção. Os sustos são previsíveis ou preguiçosos, a mitologia nórdica (os draugr, a crença na vingança dos mortos) é mais referida do que aprofundada, e o resultado é um filme que repete fórmulas que já vimos — e vimos com mais inteligência — em obras como A Bruxa ou O Farol (ambos de Robert Eggers, também de Nosferatu). Quando o clímax chega, há uma sensação de déjà-vu e de oportunidade perdida: a moral ambígua poderia ter virado uma reflexão corrosiva sobre sobrevivência e culpa, mas se contenta com um final esteticamente arrumado que não repara as lacunas do percurso. 

Do ponto de vista técnico, portanto, Os Malditos é um acerto parcial: a direção de fotografia e a direção de arte constroem uma ilha visual convincente; a performance de Odessa Young é, em momentos, comovente; a sonoplastia beira o exemplar. Mas o roteiro e o ritmo minam essas virtudes, e o filme, no balanço final, revela-se uma peça decorativa — bonita para se olhar, pobre para se sentir. Há também um problema de contexto cultural: filmar repetidamente a Islândia como palco de mistério fácil já cansou o público que conhece o lugar, e transforma a paisagem em clichê narrativo. Essa saturação geográfica rouba o que poderia ser o principal diferencial de uma obra assim — o enrugamento autêntico entre território e trauma — e transforma a paisagem em cenário de catálogo turístico sombrio, o que soa falso quando se pretende invocar o folclore como coisa viva. 

Como crítica final: admiro o talento técnico de alguns colaboradores e reconheço vontade autoral em Pálsson de criar uma fábula de culpa e retribuição, mas a ambição se choca com a pobreza do tratamento narrativo. Os Malditos é um filme que tem atmosfera, mas não tem argumento que a sustente; tem beleza plástica, mas não sabe transformar essa beleza em significado duradouro. Ao terminar a sessão, resta a sensação de que viu-se mais um exercício de estilo do que um filme que realmente perturba, inquieta ou amplia o gênero. É cinema que decora o horror em vez de o reinventar — e em 2025, depois de tanta repetição, isso já não basta. A última imagem permanece bonita, mas vazia: e essa vacuidade, por fim, é talvez a sua maior maldição.

setembro 25, 2025

O Grupo (2022)

 


Título original: The Group
Direção: William Higo
Sinopse: Um grupo de apoio a viciados é cercado por um misterioso atirador, com a intenção de puni-los por uma tragédia passada. Todos com algo a esconder, o grupo deve confrontar o seu passado comum para descobrir a verdade e permanecer vivo.


A sala onde se desenrola O Grupo funciona quase como um organismo – um espaço pequeno, já gasto pelo uso comunitário, que o diretor William Higo transforma em palco e campo de batalha emocional. A premissa é explícita e econômica: uma reunião de ajuda para dependentes é invadida por um homem à margem, cuja presença obriga os presentes a encarar segredos e culpas partilhadas. A economia de meios é o primeiro traço que define o filme: roteiro e mise-en-scène concentram-se no mínimo necessário para acender máximas tensões. Essa aposta no “bottle film” é ao mesmo tempo virtude e limitação; há momentos em que o confinamento cria uma claustrofobia dramática potente, e outros em que o próprio espaço se torna repetitivo, levando a um terceiro ato que, por vezes, parece resolver-se por via de digressões que não amplificam tudo aquilo que o filme prometera inicialmente. 

Tecnicamente, O Grupo merece atenção. A fotografia de Andrew Litt privilegia enquadramentos próximos e uma paleta dessaturada que corresponde ao tema: rostos e mãos marcadas pela vida, luz dura de plafons e janelas que mal aquecem a cena, sombras que comprimem o que os personagens não dizem. Litt evita ostentação e, nesse sentido, acerta ao sustentar o sentimento de ‘lugar real’ — é um cinema íntimo, quase documental em sua textura, que usa longas tomadas e movimentos contidos para construir tensão. A câmera, muitas vezes, não procura espetacularizar o horror da situação; prefere perscrutar micro-expressões, pequenos desvios no olhar; é uma escolha que valoriza o ator e o texto mais do que o truque formal. Essa decisão ajuda a convencer o espectador de que a ameaça não está apenas na arma empunhada, mas nas histórias não ditas que se acumulam na sala. 

O trabalho de montagem, assinado por Ylva Garnert, acompanha essa sensibilidade. A edição opta por cortes que mantêm a continuidade da sufocação emocional: há retenção de silêncios, pausas que pesam mais do que qualquer diálogo explicativo. Em momentos de confronto, a montagem acelera, comprimindo respirações e dando urgência aos atos, mas nunca exagera em artifícios sonoros ou jump cuts que poderiam artificiar a crueza do confronto. Em outras palavras, a montagem ajuda a preservar o realismo dramático; ao mesmo tempo, essa mesma contenção reduz o impacto catártico de algumas reviravoltas — são escolhas que realçam a densidade dos personagens, porém também tolhem o espetáculo que o thriller poderia oferecer. 

No elenco, Evangelina Burton impõe o centro emocional do filme como Kara; sua interpretação alterna resignação, raiva e, em lampejos, uma lucidez fria que rende as melhores sequências do filme. Ao seu lado, Jennifer Aries, Anwen Bull e Mike Kelson constroem pequenos arquétipos com nuances: não são figuras planas, e Higo arrisca-se a manter uma ambiguidade moral inquietante — ninguém é inocente por completo, ninguém é vilão sem história. Dylan Baldwin, como o intruso Jack, entrega uma presença que mistura ameaça física e moral; há ali uma intenção de transformar o antagonista em espelho punitivo dos protagonistas, e Baldwin o faz sem cair na caricatura. No entanto, o texto nem sempre se esforça para equilibrar o tempo de cena entre os rostos; alguns arcos ficam subdesenvolvidos, e isso reduz o peso de certas revelações que deveriam sacudir a plateia com mais eficácia. 

O roteiro de Higo é, em boa medida, o centro do debate: deseja falar sobre culpa, recuperação, responsabilidade coletiva e a violência simbólica que se reproduz mesmo em espaços de cura. A escolha por diálogos que soam por vezes confessionais funciona para revelar camadas — memórias fragmentadas, contradições—mas, em outros pontos, o filme peca por explicitar demais ou por recorrer a soluções de trama que antecipam reviravoltas que poderiam ser mais surpreendentes se tivessem mais subtexto. Há mérito, porém, na maneira como a narrativa costura violência real e violência psicológica: o armamento é o detonador, mas a verdadeira escalada vem das palavras e do passado que prende os personagens uns aos outros. Essa ambivalência moral é um ponto forte do filme, porque evita maniqueísmos fáceis e força o espectador a uma posição desconfortável de julgamento.

O som e a trilha têm papel contido — e talvez por isso eficaz. A música assume um perfil econômico, quase fungindo como sublinhado atmosférico: momentos de respiração musical são curtos e pontuais, permitindo ao ruído do ambiente (um ventilador, passos, portas) ocupar espaço e criar tensão. Em várias críticas, observou-se que o score sublinha sem manipular, e essa moderação ajuda o filme a manter seu tom seco e tenso, sem cair no melodrama fácil. Ainda assim, para quem busca um clímax sonoro que amplifique o desfecho, a opção por sutileza pode desapontar. 

Do ponto de vista formal, Higo demonstra segura mão de diretor em seu primeiro longa — ou, no mínimo, em uma obra que soa como estreia promissora: ele controla o ritmo, extrai boas performances do elenco e sabe modular a intimidade e a ameaça. Mesmo assim, há oscilações de tom ao longo do filme: transições entre drama íntimo, thriller e, por vezes, franzidas de humor negro, geram uma instabilidade que alguns espectadores acharão estimulante e outros, desalinhadora. Em renda de montagem e direção de atores, o filme brilha; em densidade de argumentação dramática e na manutenção de suspense até o fim, perde pontos em consequência de suas escolhas minimalistas. 

Importa também colocar O Grupo em seu circuito: exibido em festivais como o FrightFest e vindo a público através de VOD e plataformas digitais, o filme encontrou na curta duração (71 minutos) e no formato conciso um caminho apropriado para circulação no mercado independente. Essa brevidade é vantagem — evita inflar o dispositivo — mas parte do público pode ficar com a sensação de que certas questões ficaram por resolver. Ainda assim, para quem aprecia filmes que apostam na tensão contida, na câmera observadora e nas performances de conjunto, o filme entrega mais do que promete em muitos momentos.

Há, por fim, um mérito ético-temático que convém destacar: Higo não trata a dependência como mera cor local ou como desculpa fácil para a ruindade de personagens. A adição de camadas de culpa coletiva e de consequências inesperadas faz com que o filme se coloque ao lado de debates sobre responsabilidade social e sobre como comunidades, mesmo as destinadas à cura, podem reproduzir padrões de condenação. Essa leitura moral torna O Grupo um thriller com consciência sociológica — nem sempre perfeito, mas sincero em suas intenções. Ao priorizar a crueza humana sobre os truques de gênero, Higo alcança um resultado onde o desconforto do espectador é proposital: somos convidados a assistir não só a um crime, mas a um tribunal íntimo, e sai-se da sessão sabendo que a violência ali testemunhada não é apenas física, é também um efeito de falhas coletivas preexistentes. 

Em resumo, O Grupo é um filme que respira mais por suas intenções do que por soluções plenamente realizadas: direção segura, fotografia que privilegia o íntimo, elenco que sustenta a fragilidade e a agressividade moral dos personagens, e um roteiro que navega com ambição entre denúncia social e thriller de sobrevivência. As escolhas de contenção formal — longas tomadas, montagem deliberada, trilha parcimoniosa — rendem sequências de alto impacto psicológico, embora também limitem o fulgor de um terceiro ato que poderia ter sido mais incisivo. Ainda assim, trata-se de uma obra que confirma William Higo como diretor a observar: tem falhas naturais de uma produção econômica, mas possui uma voz clara e um pulso cinematográfico que merecem ser acompanhados. Ao final, fica a sensação de um filme honesto, inquietante, que prefere ferir o espectador no silêncio do que no estrondo fácil — e essa opção, por vezes frustrante, é também a sua qualidade mais perene.

Snoopy Apresenta: Um Musical de Verão (2025)

 


Título original: Snoopy Presents: A Summer Musical
Direção: Erik Wiese
Sinopse: Música e alegria estão no ar! Charlie Brown e a turminha vão acampar. Por ser sua primeira vez, Sally não vê muita graça. Mas com o risco de fecharem o acampamento, todos se reúnem para ajudar e permitir que outras crianças criem memórias ali.


Há filmes que chegam como um afago e outros que chegam como uma promessa de continuidade — Snoopy Apresenta: Um Musical de Verão pertence à segunda categoria: não apenas um afago nostálgico para quem cresceu com as tirinhas de Charles Schulz, mas um exercício consciente de transmissão geracional. Dirigido por Erik Wiese e concebido por Craig Schulz, Bryan Schulz e Cornelius Uliano, o especial de 40 minutos consegue a proeza rara de ser ao mesmo tempo fiel ao traço original e ligeiramente moderno nas suas ambições musicais e narrativas, oferecendo momentos que efetivamente ampliam o universo dos personagens sem traí-los. 

O ponto de partida é simples — um acampamento de verão ameaçado de fechamento, a ansiedade de Sally diante do desconhecido, a obstinação doce de Charlie Brown e a subtrama rocambolesca de Snoopy e Woodstock descobrindo um mapa do tesouro — mas são as escolhas de linguagem que elevam essa matéria-prima. Erik Wiese opta por um ritmo que respeita o público infantil sem subestimar a capacidade emocional do adulto; há respirações, pausas para olhar o céu, e cortes que deixam a melodia respirar. O design de produção busca uma textura entre a tela plana das tirinhas e uma profundidade sutil — sombra, camadas de cenografia, pequenos efeitos de parallax — que tornam cenas como o ônibus rumo ao acampamento ou a montagem do concerto finais visualmente mais ricos do que poderíamos esperar de um especial televisivo. Essa atualização estética foi conseguida mantendo-se a gramática formal de Schulz, algo que produtores e supervisores de arte deixaram claro nas notas de produção. 

Musicalmente, a aposta é o que mais distingue o especial: Ben Folds assina três das canções centrais e Jeff Morrow (junto a Alan Zachary e Michael Weiner em outros números) contribui para uma trilha que dialoga com o universo emocional dos personagens sem virar pastiche adulto. As canções — há números de grupo, duetos íntimos e baladas de caráter reflexivo — atuam como leitmotifs emocionais; por exemplo, a peça que acompanha o conflito interno de Sally sobre ficar no acampamento transforma o medo (um tema comum nas histórias da gangue) em canção de aceitação, sem apelar para soluções fáceis. O arranjo de Folds, ora melancólico, ora esperançoso, funciona como um personagem adicional, e as versões alternativas presentes no álbum (incluindo versões do próprio Folds) reforçam a qualidade melódica das composições. 

O roteiro de Craig e Bryan Schulz com Cornelius Uliano é criativo ao colocar a preservação do espaço — o acampamento — como um núcleo dramático que reverbera com a ideia de legado: o que queremos conservar, e por que? Essa preocupação dá ao especial uma densidade temática inesperada para 40 minutos de conversa com o público infantil. Em vez de cair no didatismo, o especial prefere sugerir: as conversas entre adultos (sempre reduzidas a “wah wah” na tradição Peanuts) e as pequenas iniciativas das crianças fundem-se num argumento que valoriza ação comunitária, criatividade coletiva e responsabilidade. Há, também, sutilezas de caracterização — um Charlie Brown mais resoluto e alegre do que o ar habitual de derrota, uma Sally vulnerável que encontra coragem em cena, e Snoopy liderando escapadas que lembram a antiga tradição de aventuras do beagle — sem que nenhum desses traços pareça deslocado. 

Tecnicamente, a animação merece atenção: produzida pela WildBrain em parceria com a Apple TV+, a especial utiliza ferramentas modernas (como Toon Boom) para recriar o traço de Schulz com fidelidade enquanto permite movimentos e composições cinematográficas que a tira original não poderia comportar. O equilíbrio entre simplicidade e sofisticação técnica é acertado: não há excesso de “polimento” que anule o charme do desenho à mão; o resultado é uma imagem que toca a nostalgia sem parecer retrógrada. A paleta é quente nos exteriores do acampamento e mais contida nas cenas noturnas, o que ajuda na leitura emocional das canções e nas transições entre sequência de humor e momento íntimo. Em termos de edição e montagem, o especial maneja bem a alternância entre o slapstick visual de Snoopy e as cenas contemplativas do grupo — uma operação de edição que reforça tanto o comediante quanto o dramático. 

O elenco de vozes — jovens intérpretes que encarnam Charlie Brown, Sally e os demais — entrega naturalidade; longe de atender ao estereótipo de vozes “engraçadinhas” para crianças, há uma busca por verossimilhança emocional que sustenta as canções e diálogos. A direção musical e a mistura sonora também merecem elogios: os números corais soam vivos e articulados, e a trilha instrumental respeita espaços de silêncio, pedra angular da dramaturgia Peanuts desde sempre (o famoso recurso do silêncio, assim como o “wah wah” dos adultos, é usado para efeito, não por costume). As coreografias animadas, dentro do possível para personagens de desenho clássico, são celebratórias e bem coreografadas — há um senso de ensemble que culmina no set-piece final do concerto para salvar o acampamento.

Se o especial comete erros, eles são em grande parte de ambição formal mais do que de execução: compressões narrativas são necessárias num formato curto — certas subtramas, como a do mapa do tesouro de Snoopy, servem mais como distração lúdica do que como motor temático — e há momentos onde a necessidade de encaixar uma canção sacrifica alguma sutileza narrativa. Ainda assim, essas decisões são compreensíveis dentro do projeto: a obra precisa entreter, emocionar e cantar — e atinge esses objetivos com competência. O que permanece é uma sensação de que poderíamos ver, no futuro, um especial-irmão mais longo que desenvolvesse melhor algumas ideias. 

Em última análise, Snoopy Apresenta: Um Musical de Verão é um acerto raro: respeita a gramática original de Peanuts, atualiza com inteligência a linguagem musical, e coloca o afeto coletivo — entre amigos, entre gerações — no centro da narrativa. É um especial que compreende o que os clássicos fazem de melhor: nos lembra por que nos afeiçoamos a personagens e mundos, e nos mostra que preservar não é congelar no passado, é criar novas maneiras de amar aquilo que herdamos. Para quem valoriza o cinema de animação que fala tanto ao coração infantil quanto ao adulto que carrega saudade, este musical é um presente bem equilibrado — caloroso, bem pensado e cantável. Fecho dizendo que há aqui respeito pela tradição e vontade de avançar; e, em tempos onde franquias muitas vezes se reproduzem por inércia, essa vontade de cuidar do material original é um ato de elegância criativa.

setembro 20, 2025

A Longa Marcha: Caminhe ou Morra (2025)

 


Título original: The Long Walk
Direção: Francis Lawrence
Sinopse: Um grupo de adolescentes compete em uma competição anual conhecida como "A Grande Marcha", onde eles devem manter uma certa velocidade de caminhada ou levar um tiro.


Desde o início, é impossível assistir A Longa Marcha sem ver o quanto Francis Lawrence volta a territórios que ele já explorou muitas vezes antes — especialmente em Jogos Vorazes. A ideia do “jovem (ou vários jovens) submetidos a um jogo ou competição letal dentro de uma sociedade autoritária / distópica”, a montagem de grande público, o uso do espetáculo como mecanismo de controle, tudo isso já se viu — e bem explorado — em sua filmografia anterior. Aqui ele tenta trazer algo diferente, por causa da origem do material (Stephen King) e do tom mais sombrio, porém acaba por repetir muitas estruturas: o sacrifício, a pressão física, a traição velada entre companheiros, as tensões morais entre “seguir ou desistir”, as figuras de autoridade opressiva. Em certo sentido, já se antevê muito do que vai acontecer — algo que nem sempre é ruim, mas quando repetido sem surpresas fortes, cansa.

A premissa: uma América devastada por guerra civil, sob regime militar totalitário; cinquenta jovens de diferentes estados obrigados (ou escolhidos) — ou pelo menos atraídos pela promessa do prêmio — a participar de uma caminhada contínua de centenas de milhas, sob regras brutais: se caminhar lento demais ou parar, após advertências, será morto. O filme tenta manter fiel ao espírito sombrio do livro — King queria uma narrativa implacável, sem concessões.

Na parte técnica o filme se sai bem. A fotografia de Jo Willems consegue capturar a monotonia, o eterno caminhar, o desgaste físico — os pés feridos, a pele rachada, o suor, momentos de fraqueza e desespero — de uma maneira bastante crua. O design de produção, cores dessaturadas, os ambientes externos extensos (estradas, campos, pequenas cidades abandonadas ou quase fantasmagóricas) reforçam uma atmosfera de opressão silenciosa, de uma América em ruínas, mas também de um lugar em que o controle se exerce através da exaustão e do espetáculo. A edição por Mark Yoshikawa alterna momentos mais lentos — longas tomadas que arrastam o caminhar, as conversas entre os competidores, o silêncio pesado — com episódios de violência abrupta, com cortes precisos quando necessário para chocar. Essas escolhas ajudam tecnicamente a criar tensão, embora nem sempre sustentem o interesse emocional.

A trilha sonora, composta por Jeremiah Fraites, tem momentos interessantes — há ambiência, intervenções de percussão que tentam marcar ritmo, sugestão de batidas de coração, o peso físico da caminhada e do medo. Mas também notei que quando a música realmente aparece, peca por previsibilidade: crescendos já esperados, temas que soam clichê, momentos em que a trilha parece dizer “a tensão vai aumentar” de forma demasiado literal, sem sutileza. Ou seja: funciona tecnicamente, mas artisticamente falha em trazer algo novo ou impactante nesses momentos.

O design de som (ruídos dos passos, respiração difícil, efeitos de tiros, vento, vento seco, sapatos arrastando) é eficaz, em especial para criar empatia física: você sente o peso do sol, do calor, do corpo cansado. O problema é que esse efeito de desgaste, de monotonia sensorial, quando estendido demais, acaba saturando — em vez de aumentar a imersão, cansa.

Na narrativa e no ritmo é onde aparece meu maior problema: o filme é cansativo de assistir. Monótono. Ele falha em entregar como terror — embora haja violência explícita, há pouco ou nenhum elemento que realmente provoque sustos, que crie horror profundo, psicológico, que faça você olhar de forma diferente ao que está sendo mostrado. Ao invés disso, ele se aproxima mais de um suspense fraco, mas que demora demais para gerar alguma reviravolta real. A cada morte, a expectativa de algo chocante cresce; mas as mortes, quando ocorrem, embora brutais, parecem parte do manual: um tropeço já visto, uma consequência já esperada, uma escalada previsível.

Há momentos de camaradagem, de diálogo entre os jovens, momentos em que parece que a narrativa pode mudar de curso, que haverá revelações, conflitos internos mais profundos — mas frequentemente esses momentos são subutilizados, pouco explorados. Muitos personagens ficam rasos: sabemos pouco do passado de cada um, sentimos pouco de suas motivações além do medo, da esperança pelo prêmio, da exaustão. É natural, no livro, que a narrativa seja minimalista, quase existencial; no cinema, talvez se pudesse desenvolver mais essas dimensões para equilibrar o peso físico com o emocional. Mas Lawrence e o roteirista JT Mollner parecem estar mais interessados em estender o sofrimento físico e a dureza da caminhada do que em nos fazer mergulhar nos dilemas morais, nas identidades internas dos personagens.

O final é previsível — e isso é uma falha que me incomoda bastante. Mesmo quem não leu o livro (ou nem conhece bem King) percebe antes relativamente cedo para onde tudo tende: quem vai aguentar até perto do fim, quem vai morrer, quem será o vencedor, talvez que haja uma ambiguidade em relação à “vitória”. E isso enfraquece muito a força dramática do desfecho. O impacto emocional que poderia ser devastador acaba sendo só “bom”, mas não memorável.

Tenho sérios problemas com adaptações de Stephen King. Acho o autor superestimado na maior parte das vezes — salvo algumas exceções (como Louca Obsessão, 1990, ou O Iluminado, 1980) — obras em que King atingiu profundidade, atmosfera, tensão. Aqui, embora A Longa Marcha tente exatamente se firmar como uma dessas boas adaptações, em muitos momentos ele se perde no meio do caminho. Parte disso se deve ao material original, que é propositalmente sombrio, minimalista, quase didático em sua crítica, mas também sua própria limitação: a repetição da caminhada como metáfora pode funcionar no papel, onde o leitor internaliza a espera, o horror, a exaustão, a ansiedade. No cinema, para atingir isso você precisa variar ritmo, explorar subjetividade, trazer surpresas não só visuais ou de violência, mas psicológicas — e esse filme, para mim, falha parcialmente nisso. Ele funciona mais como exercício de suportar sofrimento do que como experiência de terror ou suspense verdadeiramente memorável.

Outra questão: a crítica social que funcionava muito bem na época da Guerra do Vietnã (quando A Grande Marcha foi publicado) — a ideia do sacrifício imposto, da obediência cega, da exaustão física e mental como metáforas de guerra — hoje soa meio deslocada, ou pelo menos exige uma contextualização forte para ser crível. Lawrence tenta fazê-lo: ambienta um regime autoritário, há implicações de guerra civil anterior, pobreza, desesperança, propaganda, espetáculo midiático de dor. Mas mesmo assim, ao meu ver, em 2025, com os discursos políticos e sociais contemporâneos, parecia que faltava consistência para que esse cenário distópico parecesse verossímil — não no sentido técnico, mas no emocional ou no de crença suspensa. Em muitos momentos não convence que tantas pessoas aceitariam participar com tanta naturalidade nem que o regime se manteria com tal apatia ou complacência, ou que o “público” dentro do filme fosse tão indiferente — ou tão fascinado — sem resistência maior. Aliás, isso é típico: aqui vemos que até uma boa ideia não necessariamente gera um ótimo filme.

As atuações, no meu olhar, variam entre medianas e ruins — em parte por culpa do roteiro / enredo, que não oferece muito material robusto para quase todos os personagens interpretarem. Cooper Hoffman como Ray Garraty tenta dar corpo ao papel principal; ele tem alguns momentos de expressão, alguma vulnerabilidade, mas em muitos momentos parece engolido pelo desgaste do filme, sem grandes fissuras emocionais que nos façam ver além do personagem de “quem caminha, quem sobrevive”. David Jonsson (Peter) aparece com mais energia, assumindo alguma força moral, mas também limitado pelo tipo de personagem que lhe foi dado. Outros, como Charlie Plummer no papel do Barkovitch, têm arcos que tentam oferecer conflito extra, mas me pareceram apressados, pouco desenvolvidos.

Tem também Mark Hamill como o Major — figura de autoridade antagonista. Confesso que só descobri que ele estava no filme quando vi os créditos, pois sua presença, sua construção como vilão, não me pareceu de fato ameaçadora ou marcante. Ele parece distante, formal; há momentos de discurso, monólogos, mas falta corpo, intensidade que gere medo real, ou horror psicológico profundo. Talvez seja proposital que ele seja uma figura um tanto impassível, distante, mascando poder; mas para mim isso não funcionou como deveria. Não foi convincente como grande vilão.

Há também personagens secundários que jamais se destacam, que mal têm identidade própria, que morrem “porque tinha de morrer” sem criar laço ou choque emocional. Raramente senti empatia real por muitos deles — talvez porque não há aprofundamento prévio ou momentos marcantes que os diferenciem.

Para quem gosta de distopias violentas com estética cuidada, pode haver satisfação em muitas cenas, especialmente visualmente. Mas para quem espera uma experiência de terrores profundos, de renovação do gênero, de personagens memoráveis e de narrativa surpreendente, A Longa Marcha acaba decepcionando. Saí do cinema cansado física e emocionalmente — não perturbado no bom sentido, nem iluminado — mas desgostoso com as possibilidades desperdiçadas, com o final que entrega o previsível e com o sentimento de que se poderia ter ido muito além.

A Noviça Rebelde (1965)

 


Título original: The Sound of Music
Direção: Robert Wise
Sinopse: No final da década de 1930, na Áustria, quando o pesadelo nazista estava prestes a se instaurar no país, uma noviça que vive em um convento, mas não consegue seguir as rígidas normas de conduta das religiosas, vai trabalhar como governanta na casa do capitão Von Trapp, que é viúvo, tem sete filhos e os educa como se fizessem parte de um regimento. Sua chegada modifica drasticamente o padrão da família, trazendo alegria novamente ao lar da família Von Trapp e conquistando o carinho e o respeito das crianças. Mas ela termina se apaixonando pelo capitão, que está comprometido com uma rica baronesa.


Há filmes que atravessam gerações como se fossem parte de nossa própria biografia — A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), de Robert Wise, é um desses raros presentes do cinema. Assistir a ele restaurado em 4K no cinema, no seu sexagésimo aniversário, pareceu confirmar que a magia dele é atemporal — as montanhas continuam cantando, as crianças continuam encantando, e a alma sai mais leve ao final. 

Desde o primeiro frame, A Noviça Rebelde mostra sua ambição de levar o espectador além do musical de palco, para uma experiência cinematográfica plena. A fotografia de Ted McCord, gravada originalmente no formato amplo Todd-AO 70mm, oferece uma profundidade de campo e riqueza de imagem impressionantes. As lentes captam com nitidez as paisagens dos Alpes austríacos — as colinas, os prados, as nuvens que se movem, os detalhes da natureza — e transformam cada cena externa em pintura. A abertura, com Maria girando e cantando “The Sound of Music” nas montanhas, permanece uma das sequências mais icônicas da história do cinema; ela sintetiza o poder visual do formato, o uso de tomadas aéreas e de panorâmicas que, mesmo nos anos 60, exigiam tecnologia, coragem e coordenação.

O uso da cor é outro componente essencial. Produzido pelo processo DeLuxe Color, o filme jamais parece datado quando restauração moderna corrige os desvios de cor ou eventuais deteriorações. Na exibição restaurada, esse cuidado se reflete em tons vibrantes: os verdes das montanhas e dos prados, os castanhos terrosos, os interiores, os terços, os dourados e brancos que compõem o convento, a casa dos von Trapp, tudo isso brilha com clareza nova, como se tivesse sido filmado perto de hoje — e não deixa de impressionar que, embora haja alta definição e clareza, não haja aquela sensação plástica de imagem digital excessivamente tratada. A textura existe, o grão do filme está ali: quem viu esta nova versão no cinema percebe que cada detalhe de tecido, cada folha, cada reflexo tem presença.

No som, também há uma sofisticação que muitas vezes passa despercebida por espectadores casuais, mas que é vital para a experiência. Na restauração recente (que preparou o filme para o re-lançamento mundial, marcando os 60 anos), foram feitas remasterizações que permitem ao som respirar, dialogar com o espaço, com a música, com os silêncios, com os ecos dos vales e as vozes — de Maria e das crianças — que se tornam quase físicas. A voz do Capitão Von Trapp, por exemplo, é dublada por Bill Lee nas cenas cantadas.

Falando em música: aqui mora talvez o coração da obra. As canções de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II — adaptadas, orquestradas por Irwin Kostal para o filme — são imortais. Quando se fala em música temática no cinema, poucos exemplos são tão universalmente reconhecíveis quanto a música-tema “The Sound of Music”, a sequência de abertura majestosa; “Do-Re-Mi”, usada pedagogicamente nas escolas, é parte de uma herança sonora que chega a pessoas que nunca viram o filme; “My Favorite Things”, “Climb Ev’ry Mountain”, “Edelweiss” — cada número ressoa não somente por sua melodia, mas pela forma como se conecta à narrativa, ao crescimento dos personagens, ao drama pessoal e histórico que se desenrola sob a sombra do nazismo.

O roteiro de Ernest Lehman adapta inteligentemente o musical de teatro para o cinema: ele reordena números, supre algumas canções que no palco tinham outro peso, aproveita locações reais em Salzburgo, usa a câmera para explorar silêncio, paisagem, movimento. As cenas em ambiente interno são contrabalançadas por tomadas externas — o contraste entre o isolamento do convento, a vivacidade da natureza, a casa dos von Trapp, o mundo que se fecha com a aproximação da guerra. Cada enquadramento parece pensado para capturar não só rostos, emoções, mas o ambiente psicológico que cerca os personagens.

O elenco central imprime alma e credibilidade. Julie Andrews como Maria consegue aquele equilíbrio tão difícil entre espontaneidade, simplicidade, e força interior — sua voz, sua presença, seu riso, sua ternura. Christopher Plummer como o Capitão Von Trapp traz a rigidez, a dor silenciosa, a alma em conflito, e aos poucos, numa performance contida, vai se desarmando ante o amor, a música, a família. As crianças von Trapp são carismáticas, carinhosas, divertidas — cada uma com sua própria presença, mesmo que não sejam todas igualmente expressivas. A direção de Robert Wise equilibra nostalgia, romance, drama político, humor, musical, de modo que nenhum desses elementos domina em demasia; há leveza mesmo nas sombras, tensão mesmo na alegria — e isso torna o filme rico e completo.

A duração — quase três horas — poderia parecer intimidadora. O filme original tem aproximadamente 174 minutos na versão de cinema habitual. Em muitas obras, tal extensão poderia diluir o ritmo ou cansar, mas aqui não: cada cena, cada número, cada momento de desenvolvimento parece merecer seu tempo. Não há tempo ocioso; o longa se permite respirar, construir relações, instigar o espectador a se envolver. Se terminar desejamos que continue, não que acabe; a longa duração se transforma em bênção, não peso.

Ver no cinema uma versão restaurada em 4K, no aniversário de 60 anos, trouxe-me uma emoção extra: as imagens ficaram belíssimas, como se o filme tivesse sido filmado nos dias de hoje. A restauração — segundo os responsáveis — partiu de digitalizações em altíssima resolução, de elementos originais de 65/70mm, com escaneamento em 8K, depois redução para 4K para limpeza, correção de cor, remoção de imperfeições, correção de desbotamento e ajuste de brilho, contraste, etc.

Essa restauração permite redescobrir nuances: sombras dentro dos armários, costuras nos vestidos, véus do convento, os sulcos da madeira nos interiores, as texturas das pedras nos muros externos, até faíscas de luz nos olhos das personagens. Cenografia, figurino, iluminação — tudo ganhou nova visibilidade sem perder seu calor humano.

Há uma musicalidade interna ao filme que vai além das canções: o ritmo com que os diálogos são distribuídos, os silêncios, os olhares que dizem mais que as palavras. A edição de William Reynolds permite transições suaves, evita cortes bruscos em momentos de intensidade, mantém fluidez entre drama e canção, entre contemplação e movimento — e evita que o filme se torne algo excessivamente teatral ou inflado.

E há também o contexto histórico, que lhe dá profundidade e desafio: não é só um musical fofo, é uma história que lida com o autoritarismo, a escolha moral, a generosidade, o sacrifício. Essa dimensão torna o filme relevante em qualquer época, mas especialmente agora, quando lembramos da importância de resistir à opressão, do valor da música, da família, da empatia.

O que mais me impressiona é que, após tantas reprises, tantos formatos, tantos olhares diferentes, ainda assim o filme consegue tocar o coração — não só o meu, mas o de minha família, por décadas. Não é nostalgia vazia: é um carinho que perdura, uma memória coletiva, uma presença emotiva. Ver no cinema restaurado, reunir com outros espectadores, sentir o som envolvente, as vozes quase corpóreas, a paisagem iluminada, tudo isso confirma que essa obra transcende o tempo.

Em seu desfecho, quando a fuga dos von Trapp acontece, quando se ouve “Climb Every Mountain”, quando as vozes se unem no concerto, quando o risco se torna esperança — sai-se do cinema literalmente com a alma leve. É como se o filme tivesse limpado algo por dentro, tocado algo essencial.

Por tudo isso, A Noviça Rebelde não é apenas um dos grandes musicais; é um filme essencial. Um filme que acerta em tantos níveis — performance, fotografia, som, música, edição, direção, emoção — que parece, mesmo tão antigo, palpável, presente, vibrante. Permanece como obra que emociona, que ensina, que encanta — e que, mesmo depois de sessenta anos, continua um espetáculo perfeito.

Se tivesse que escolher uma palavra, diria: eterno.

setembro 12, 2025

Segredos (2024)

 


Título original: Segredos
Direção: Emiliano Ruschel
Sinopse: Noah é um diplomata suíço, que cresceu na Europa e estudou nos Estados Unidos. Naomi é uma brasileira, filha única e de uma família rica e influente. Eles se conheceram enquanto estavam na faculdade, a renomada instituição americana, Yale University. Casados há sete anos, para quem vê de fora, eles são o casal perfeito. Porém, em meio a uma dinâmica abusiva, ambos tentam salvar o casamento e se deparam com uma situação em que são colocados frente a frente com os segredos um do outro. A pergunta que não quer calar é: será que seus segredos serão grandes demais para serem ignorados?


Segredos é um filme que se apresenta, à primeira vista, como um pequeno thriller doméstico: a premissa é simples e direta — um casal milionário, à beira da dissolução, vê sua noite derradeira transformar-se num campo minado de mentiras e revelações —, mas o que deveria funcionar como exercício de intimidade e tensão psicológica acaba se desfazendo em uma mise-en-scène desconexa e em escolhas formais que mais confundem do que acrescentam. Dirigido por Emiliano Ruschel, que também assume o papel de Noah ao lado de Danni Suzuki (Naomi), o longa tenta articular passado e presente, flashbacks de Yale e momentos de confinamento noturno, numa tentativa de construir um mosaico dramático — a peça central, porém, falha na articulação entre texto, atores e concepção sonora e linguística. 

Tecnicamente, o filme tem acertos pontuais: a fotografia busca um contraste claro-escuro que remete a uma estética de thriller psicológico, e há alguns enquadramentos bem pensados que tentam simbolizar a claustrofobia do casal. A edição, no entanto, não acompanha a ambição formal — os saltos temporais, em vez de tensionar a narrativa, frequentemente desorientam o espectador por apresentarem lacunas que o roteiro não supre. O uso do som, que poderia ser uma ferramenta para amplificar o desconforto, é irregular; há momentos em que a mixagem não equilibra diálogos e ambientes, deixando a fala truncada ou, pior, artificialmente plana. Esse contraste entre boas intenções visuais e execução editorial fragiliza a eficácia dramática pretendida. 

No terreno do elenco, o filme se torna ainda mais problemático. A escolha de filmar majoritariamente em inglês — presumivelmente para dar um ar “internacional” à trama que envolve um diplomata suíço e uma socialite brasileira — entra em choque com a fluência real dos intérpretes. A consequência é uma atuação que oscila constantemente entre o esforçado e o inverossímil; expressões e cadências que soariam autênticas numa produção anglófona fluem aqui como artifício. Foi justamente essa incongruência que motivou uma observação direta do autor do pedido desta crítica: “Uma total catástrofe, por que falar inglês se ninguém dos atores sabe falar?” — frase que resume bem o estranhamento proporcionado pela opção linguística. A tentativa de “internacionalizar” o filme não amplia seu alcance; ao contrário, empobrece a credibilidade emocional das cenas íntimas. 

Do ponto de vista narrativo, o roteiro pretende navegar entre o thriller e o melodrama: segredos antigos, abusos velados, manipulação emocional e a revelação gradual de uma dinâmica abusiva são os pilares da história. Essa combinação poderia render um estudo de caráter profundo — o grande trunfo de filmes de câmara é justamente a capacidade de expor relações por osmose, pela intensidade dos silêncios e das pausas —, mas aqui a construção dramaticamente não sustenta o peso das intenções. Em vez de emergir a densidade de personagens complexos, fica a sensação de que faltou coragem para aprofundar motivações ou para tornar os respectivos arcos verossímeis. Os flashbacks, muitas vezes, funcionam como atalho expositivo e não como densificação emocional.

Há ainda um problema de tom que é difícil de contornar: em diversos momentos, a montagem e a direção de atores aproximam o longa de um melodrama televisivo — algo que se aproxima mais de uma novela do SBT que não teve financiamento. Essa comparação, dura mas com algum fundamento, aponta para a sensação de produção menor tentando reverberar como grande. Não se trata de desprezar produções de baixo orçamento — muitos filmes independentes encontram na limitação uma linguagem potente —, mas quando a estética televisiva invade a narrativa pretendendo elevar-se a cinema autoral sem os meios técnicos e de atuação para tal, o contraste se torna evidente e desconfortável. 

As performances, quando vistas isoladamente, têm lampejos de honestidade — Danni Suzuki tenta dar camadas à Naomi, e há instantes em que a câmera parece capturar algo autêntico —, porém esses momentos são fragmentos soltos que o conjunto do filme não consegue costurar. Emiliano Ruschel, ao dirigir e protagonizar, arrisca-se a uma sobreposição de funções que nem sempre favorece o distanciamento crítico necessário: dirigir a própria performance demanda rigor e uma equipe editorial forte, e quando esse filtro falta, o resultado tende a ser autorreferencial e pouco crítico. Além disso, o acréscimo de atores como Sammy Sampaio e David Herman compõe um elenco que, no papel, poderia enriquecer a trama, mas que esbarra nas limitações do roteiro e na irregularidade das direções.

É preciso reconhecer, porém, que há intenção em trabalhar temas relevantes — abuso psicológico, a máscara das relações públicas, o preço das aparências. Em certos cortes de close-up e planos longos de silêncio, o filme ensaia uma crítica social ao microcosmo elitista que representa. Esses momentos, porém, são raros e muitas vezes engolidos por soluções dramáticas simplistas ou por escolhas formais que não dialogam entre si. A sensação que fica é a de um filme que almeja falar muito — e talvez falar alto —, mas que carece de um pulso narrativo coerente para que o discurso chegue ao espectador sem tropeços. 

Em suma, Segredos é uma obra com ambições maiores do que sua execução permite. A distribuição via A2 Filmes e a presença do título em mostras e portais indicam uma tentativa de inserção no circuito festivalier e comercial, mas o produto final não encontra o equilíbrio entre forma e conteúdo. Para espectadores interessados em cinema de câmara contemporâneo, o filme oferece algumas imagens e ideias, mas precisa, em essência, de um roteiro mais enxuto, uma mixagem sonora mais rigorosa e uma decisão linguística coerente com a fluência do elenco. No lugar de um estudo de personagens, resta um conjunto de cenas com boas intenções e pobres articulações — como se os segredos mais pesados do filme fossem justamente os de uma produção que ainda precisa aprender a falar sua própria língua. Conclui-se, portanto, que, apesar de algumas aspirações visuais e temáticas válidas, Segredos falha em converter intenção em cinema verdadeiramente convincente — sobrando ruído onde poderia haver silêncio cortante e clareza onde deveria haver sutileza.

setembro 11, 2025

Cinema Olho (1924)

 


Título original: Киноглаз
Direção: Dziga Vertov
Sinopse: De forma revolucionária, o filme documenta a vida dos moradores de uma pequena vila soviética. O diretor Dziga Vertov, pioneiro dos documentários, foi um dos cineastas mais importantes do cinema soviético.


Cinema Olho (Киноглаз, 1924), de Dziga Vertov, não se limita a ser um documento histórico, mas configura-se como um ato militante sobre as potencialidades do cinema quando este se liberta da simples imitação da visão humana. Fundado no princípio do “cine-olho” — a crença de que a câmera é capaz de enxergar o que o olhar nu não alcança e reorganizar a realidade para revelar suas estruturas ocultas — o filme funciona como manifesto em movimento. Cada tomada, cada manipulação temporal e cada montagem não são apenas recursos estéticos, mas exercícios práticos de uma teoria cinematográfica que buscava redefinir os limites da linguagem fílmica. O resultado é uma obra que se mantém entre a frieza programática de sua missão e o fervor inventivo de sua execução.

A narrativa de Cinema Olho se apoia em fragmentos da vida cotidiana soviética — trabalhos agrícolas, atividades coletivas, crianças dos Pioneiros, a vida urbana em transição. No entanto, ao invés de se restringir ao registro jornalístico, Vertov reorganiza esses materiais de forma a sugerir novos sentidos. A câmera, conduzida por Mikhail Kaufman, atua como extensão mecânica da percepção, explorando ângulos inesperados, aproximações e movimentos que desestabilizam a leitura convencional das cenas. A vida, filmada sem que seus sujeitos estejam plenamente conscientes da câmera, é então submetida à força da montagem, onde a edição se transforma em instrumento de pensamento.

Um dos aspectos mais revolucionários da obra é a maneira como a edição se articula ritmicamente, estabelecendo uma espécie de sinfonia visual. Os cortes são marcados como batidas musicais, criando cadências que tornam processos industriais ou coletivos em verdadeiras coreografias. Essa concepção rítmica do cinema, pensada quase como uma partitura visual, demonstra a consciência de Vertov em relação à dimensão sonora da montagem, mesmo em um período em que o cinema era ainda silencioso. O casamento entre cortes e música, ainda que em muitas versões a trilha tenha sido incorporada posteriormente, evidencia um avanço extraordinário para a época: o tempo cinematográfico não apenas reproduz o real, mas o reinventa pela articulação entre som e imagem.

As manipulações temporais são igualmente notáveis. Sequências exibidas em retrocesso — como o boi abatido que “ressuscita” ou o pão que se recompõe — não funcionam como truques vazios de espetáculo, mas como metáforas críticas. Ao inverter o fluxo natural dos acontecimentos, Vertov sugere a possibilidade de transformação social e histórica, em consonância com os ideais revolucionários que permeiam sua obra. Esse uso da técnica fílmica como comentário político insere Cinema Olho em uma tradição que vê a montagem não apenas como recurso estético, mas como ferramenta de ideologia.

A colaboração entre Vertov e Yelizaveta Svilova na montagem é crucial. O filme estrutura-se em ciclos visuais, repetições e contrapontos que demandam do espectador um olhar ativo, capaz de construir sentido a partir das associações propostas. Trata-se de um cinema que não entrega respostas prontas, mas estimula a percepção crítica. Ao mesmo tempo, a fotografia de Kaufman imprime uma energia documental que ancora a obra na realidade, ainda que transformada pela lógica experimental do cine-olho.

No campo estético, Cinema Olho reflete a influência da vanguarda construtivista. Seus enquadramentos, justaposições e até mesmo os cartazes promocionais, concebidos por artistas como Rodchenko, inserem o filme em um movimento maior de experimentação visual soviética. É cinema como arte total, entrelaçado à propaganda e à estética política de seu tempo. Contudo, diferentemente da propaganda panfletária, a força de Cinema Olho reside na experimentação formal: a ideologia é transmitida não pelo discurso direto, mas pela manipulação criativa da realidade filmada.

Ainda que fortemente vinculado ao contexto político soviético, o filme transcende seu papel de instrumento estatal. Sua relevância se deve justamente ao modo como transforma a propaganda em experiência estética. Ao retratar trabalhadores, crianças e cooperativas, Vertov não apenas documenta, mas molda um ideal de coletividade em imagens que oscilam entre o registro etnográfico e a construção aspiracional. O espectador é conduzido não apenas a aceitar um argumento, mas a vivenciá-lo através do ritmo e da percepção sensorial.

O impacto de Cinema Olho é ambivalente. Para alguns, sua estrutura programática pode soar fria ou excessivamente didática. No entanto, é inegável o papel que desempenhou na expansão da gramática cinematográfica. A partir de sua lógica de montagem, Vertov abriu caminho para que o cinema se tornasse um campo de experimentação perceptiva, influenciando gerações posteriores de documentaristas e cineastas de vanguarda.

Ao analisar o filme quase um século depois de sua estreia, permanece clara a ousadia de sua edição, marcada pelo sincronismo entre cortes e música, e pela inventividade que transforma o simples registro em reflexão poética e política. A montagem deixa de ser apenas técnica para tornar-se sujeito ativo do discurso fílmico, revelando que o cinema pode não apenas mostrar o mundo, mas reinventá-lo. Essa força estética e teórica faz de Cinema Olho uma obra que resiste ao tempo: um manual vivo de como pensar, editar e escutar a realidade por meio das imagens.

setembro 10, 2025

Eddington (2025)

 


Título original: Eddington
Direção: Ari Aster
Sinopse: Em maio de 2020 durante a pandemia de Covid-19, um impasse entre o xerife e o prefeito de uma pequena cidade gera um conflito entre vizinhos em Eddington, Novo México.


Desde muito tempo eu aguardava um filme de Ari Aster que conseguisse fazer exatamente o que Eddington faz: envolver completamente, com tensão crescente, sem apelar para o sobrenatural; focar na polarização política e social – nos discursos, nos medos, nas divisões – ao invés de fantasmas ou demônios. O novo trabalho dele é uma espécie de recorte fiel, brutal e fascinante do que vivemos na pandemia de COVID-19, uma era em que as verdades pareciam paradoxos e em que vizinhos deixaram de ser vizinhos, partidos deixaram de ser interlocutores, para virar inimigos morais instantâneos. Em Eddington, finalmente, ele consegue fazer um filme que prende — e prende não por sustos ou estranhezas, mas por espelho: o que vemos ali tem ecos muito reais em nossas conversas, redes sociais, passeios de máscara, notícias e fake news.

A história se passa em 2020, em Eddington, uma cidade no Novo México, quando o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix) entra em rota de colisão com o prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal) ao recusar usar máscara e, posteriormente, decidir disputar a prefeitura. A trama vai se desdobrando a partir dali de várias formas — disfarçadas como absurdas, mas que, se você parou pra pensar, foram reais ou muito próximas do que vivemos. As teorias de conspiração ecoadas pela sogra do xerife, os discursos inflamados, os protestos do Black Lives Matter depois do assassinato de George Floyd, as reações exageradas — tudo faz parte de um mosaico que, embora extenso e às vezes difícil de digerir em sua complexidade, é tão pertinente que nenhum detalhe parece exagero.

Direção, roteiro e construção narrativa merecem aplausos. Aster assume o risco de manter o filme longo — 149 minutos —, mas o uso desse tempo não é inflado: cada cena, cada desentendimento, cada discurso serve para tensionar algo maior. Se o filme fosse ainda mais longo, provavelmente daria para explorar ainda mais personagens secundários, mas o que ele entrega já é impressionante. A alternância entre o íntimo (o lar do xerife, sua relação familiar, seus medos pessoais) e o público (comícios, coletivas, lives, redes sociais, protestos) é trabalhada de forma orgânica. Não há monotonia, há momentos de calmaria, talvez até de humor negro — justamente porque o absurdo que parece caricatural se torna dolorosamente familiar. O filme, sendo imparcial, mostra consequências para ambos os lados: para quem defende protocolos, para quem os rejeita; para quem acredita cegamente em ciência, para quem se sente traído ou manipulado por instituições ou meios de mídia. Ninguém sai completamente “do lado bom” ou “completamente errado” — o mérito artístico aí é grande, pois ele evita o maniqueísmo fácil.

Em termos técnicos, Eddington é uma obra fenomenal. A fotografia de Darius Khondji é impressionante: os panoramas do Novo México, o uso da luz natural, os interiores opressivos, as sombras que se alongam, enquadramentos que sugerem isolamento — tudo isso contribui para uma atmosfera de tensão latente, quase de faroeste moderno. A edição de Lucian Johnston funciona como um relógio que alterna marchas: em certas cenas vai devagar, quase aterrorizante na quietude; em outras acelera, corta com impacto, nos confrontos, nos protestos, no caos. É nessa “montanha-russa narrativa” que o longa pega você. Também a trilha sonora — assinada por Daniel Pemberton e Bobby Krlic — ajuda sem apelar para o melodrama excessivo. Ela está presente nos momentos certos, auxilia nas transições entre o privado e o coletivo, cresce com o escalar do conflito, sustenta o ritmo.

Quanto às atuações: Joaquin Phoenix, mesmo eu dizendo que não sou fã dele, está fenomenal. Ele interpreta Joe Cross com camadas (raiva, insegurança, convicção, medo de ser engolido pelo caos), nunca caricaturado, embora haja traços de caricatura intencionais no tom geral do filme. Pedro Pascal como o prefeito Ted Garcia contrabalança esse Joe: mantém dignidade, convicção, vulnerabilidade. Emma Stone como esposa de Joe e Deirdre O’Connell como a sogra conspiracionista são peças-chave: Stone dá humanidade, conflito íntimo, tensão emocional; O’Connell traz o horror real da ignorância (não no sentido de escárnio, mas no terror de ver crenças mal fundamentadas ganhando força). O elenco todo, incluindo Micheal Ward, Austin Butler, Luke Grimes, etc., desempenha seus papeis de apoio de modo sólido.

Um ponto que me chamou atenção: embora o filme seja longo, ele não desperdiça quase nada. Cada elemento — visual, sonoro, narrativo — reforça o tema da polarização, da desinformação, da fragilidade da coesão social. Ele começa com o conflito em aparência política (máscaras, mandatos, autoridade em quarentena), mas vai descendo para os abismos das convicções extremas, da raiva pessoal, da violência simbólica e real. Ele segura tudo isso com uma mão firme: não se perde em digressões desnecessárias, embora permita momentos que respiram — e isso torna o impacto maior quando as tensões se acumulam.

Do ponto de vista artístico, Eddington mistura gêneros — faroeste contemporâneo, comédia negra, thriller político, drama familiar — de uma forma que poderia soar espalhafatosa, mas soa coerente. Aster consegue fazer deste tipo de mistura algo que não fique confuso, nem jogado; ao contrário, cada mudança de tom lembra que estamos num espelho distorcido da realidade, onde ironia, tragédia, farsa e violência se confundem. Ele dialoga com o cinema político, com o western moderno (o cidadão armado, o xerife, a autoridade local, o conflito no “velho oeste” transformado em “novo oeste”), mas também com a era das redes sociais e do medo viralizado. É essa fusão de estilos que torna o filme tão potente.

Tecnicamente, tanto a produção de arte quanto o cenário merecem menção: o deserto, os espaços urbanos pequenos, as casas de interior, os bares, os cartazes, os outdoors, tudo contribui para criar um mundo que é crível e que, ao mesmo tempo, parece estar sempre à beira da implosão. As locações no Novo México foram utilizadas não apenas como cenário, mas como personagem: o calor, o vazio, a distância entre as pessoas, a vastidão da paisagem contrastando com o confinamento que a pandemia impôs.

Há também escolhas de mise-en-scène que se destacam muito: a câmera segura em momentos de crise, com planos longos que deixam o espectador sentir o peso do silêncio; as inserções de telas de celular, redes sociais, transmissões ao vivo, discursos gravados, etc., que nos colocam dentro da guerra cultural que foi ao mesmo tempo global e extremamente local.

Outro mérito enorme do filme é justamente não recorrer a elementos sobrenaturais ou fantásticos: toda a angústia, todo o horror, todo o absurdo vem do humano, vem das nossas divisões, das notícias desmentidas, da reação em cadeia da desinformação, da paranoia. Isso torna Eddington muito mais incômodo e mais forte para mim pessoalmente. Finalmente, dizer que não há nada de sobrenatural aqui é parte do triunfo da obra: não precisamos de algo estranho para estarmos espantados, pois o que nos assombra já está aqui, no mundo real.

Não acho que haja uma falha sequer no filme. Se tivesse que escolher algo para criticar, talvez a parte inicial possa parecer lenta demais para quem espera ação logo, ou alguns personagens secundários menos desenvolvidos poderiam ganhar espaço, mas isso não são defeitos: são escolhas que permitem que o filme respire e evolua até o clímax. E esse clímax é violento, desafiador, perturbador — ele nos obriga a olhar para dentro. O filme longo porém com uma história que se desdobra de tantas formas que prendem — poderia até ser mais longo, verdade — mas mesmo assim cumpre o que promete.

Em seu conjunto, Eddington representa o melhor trabalho de Ari Aster até agora, tanto na direção quanto no roteiro. É impecável o modo como ele costura os fios narrativos, como constrói tensão crescente, como mantém-nos atentos, desconfortáveis, emocionados. É um épico contemporâneo, uma obra que mistura gêneros, que serve como crônica, como advertência, como testemunho de um momento histórico que ainda reverbera. É lamentável que até agora tenha sido pouco visto: mereceria ser debatido, estudado, visto e revisto, discutido em salas de aula ou salas de cinema lotadas.

Por tudo isso, Eddington tem o caráter de um filme que não apenas existe, mas se impõe: impõe uma reflexão, impõe uma dor, impõe uma constatação de que, em plena pandemia, quando as pessoas se polarizaram, quando a ciência virou objeto de desconfiança, quando discursos extremos se tornaram normais, o cinema podia capturar isso de corpo inteiro — e Eddington captura.

The Occupant (2025)

 


Título original: The Occupant
Direção: Hugo Keijzer
Sinopse: Desesperada para salvar sua irmã, Abby aceita um trabalho perigoso nas remotas florestas da Geórgia. Após a queda de seu helicóptero, ela fica isolada nas montanhas e encontra esperança em John, um misterioso aliado que se comunica pelo rádio nas proximidades. Enquanto ele a guia pelas condições adversas, Abby luta para sobreviver, mas sua percepção da realidade começa a vacilar até que ela se vê diante de uma escolha impossível.


Hugo Keijzer assina com The Occupant um filme que se instala devagar, mas de forma implacável, na pele do espectador: é uma obra de sobrevivência que se traveste por poucos instantes de ficção científica e que, no fundo, funciona sobretudo como um retrato austero de perda, culpa e resistência. O roteiro — dividido entre momentos quase documentais de confronto com a natureza e passagens de tensão psicológica quase claustrofóbica — privilegia a experiência sensorial antes de explicar todas as suas engrenagens, e essa escolha é uma das razões pelas quais o filme, mesmo imperfeito, consegue permanecer na memória depois dos créditos.

No centro dramático está Abby (Ella Balinska), geóloga em missão, cujo desespero para salvar a irmã motiva a aceitação de um trabalho perigoso nas montanhas do Cáucaso — terreno que o filme transforma em personagem. Balinska entrega aqui uma performance de carcaça e silêncio: seu trabalho corporal (respiração, cansaço, pequenas reações instintivas) faz mais pela narrativa do que diálogos expositivos. Keijzer compreende que, em histórias de sobrevivência, o rosto e o corpo do intérprete são o campo primário para a transmissão do medo e da esperança; Balinska responde com economia e precisão. A relação por rádio entre Abby e a voz de John (Rob Delaney) é o eixo narrativo que mistura auxílio e ambiguidade — ponto no qual o filme tenta, sem sempre convicção total, equilibrar thriller de perseguição e uma dúvida ontológica sobre o que é real. 

Esteticamente, The Occupant é notável. Robbie van Brussel, na fotografia, explora com elegância o contraste entre a vastidão glacial e a pequenez do corpo humano. A câmera privilegia composições que isolam a figura de Abby em longos planos gerais, enquanto closes bem dosados capturam a textura congelada da pele e dos lábios rachados — escolhas que amplificam o terror físico do ambiente. A paleta fria do filme não é gratuita: funciona como metáfora do processo emocional da protagonista, um luto que deteriora calor e cor. Por outro lado, há momentos de câmera tremida e montagem fragmentada que evocam desorientação e delírio, aproximando o espectador do ponto de vista de Abby sem jamais trair o olhar do diretor. 

A edição — a serviço da tensão dramática — é um dos vetores mais interessantes do longa. Brian Philip Davis costura ritmos que variam entre o contido e o abrupto, imprimindo ao terceiro ato uma aceleração que transforma a narrativa de sobrevivência em perseguição: sequências de fuga por encostas, tentativas de improviso e encontros com a hostilidade do cenário adquirem uma cadência que prende. É relevante notar que, mesmo sendo anunciado como um filme de ficção científica, essa componente representa uma fração pequena do tempo de tela; The Occupant vende o rótulo de sci-fi, mas o cerne do filme permanece enraizado no survival drama e no psicológico — uma observação que coincide com a recepção crítica e com a própria construção do enredo. Isso não é uma falha: é uma opção de tom que transforma a ficção científica em tempero, não em prato principal. 

Na trilha sonora, Renger Koning opta por um tratamento que privilegia atmosferas e texturas mais do que melodias óbvias. O score acompanha o corpo exausto de Abby com camadas eletrônicas sutis e momentos abertos, quase sem resolução, que aumentam a sensação de desamparo. Em cenas de silêncio absoluto, o design de som passa a ser protagonista: o ranger do vento, o estalo de um osso de gelo, o som abafado da respiração compõem uma trilha sonora “natural” que dialoga com os arranjos de Koning para produzir um estado de vigilância contínua. Essa escolha sonoro-musical converte o ambiente em campo afetivo — e é aí que o terror e a empatia se encontram. 

Narrativamente, The Occupant caminha por uma linha tênue entre o minimalismo e a ambição temática. Os roteiristas (entre eles Keijzer) exploram o arco psicológico da protagonista — negação, bargaining, raiva, aceitação — sem transformar o filme num tratado explicativo sobre o luto. Essa opção permite que a parábola emocional respire, mas também deixa algumas arestas narrativas pouco aparadas: certas revelações sobre a natureza do “ajudante” radiofônico ou o desfecho metafísico da história poderiam ser mais trabalhadas para satisfazer os que buscam conclusões mais firmes. Ainda assim, o modo como o filme usa a incerteza — o que é real, o que é alucinação, o que é consolo — é sentido como coerente com seu propósito emocional. 

Do ponto de vista temático, há uma ambição calma: The Occupant fala sobre responsabilidade, sobre o peso de decisões tomadas por amor, e sobre o limite entre resistência humana e rendição à carne do mundo. Keijzer evita o maniqueísmo: a montanha não é apenas vilã, assim como John não é só salvador ou monstro; são forças ambíguas que demandam uma resposta humana complexa. Isso faz do filme uma experiência que rende na reflexão — ainda que, em alguns momentos, sacrifique a clareza dramática em favor da intensidade sensorial. Para muitos espectadores, essa troca será acertada; para outros, a sensação de “algo faltando” no encaixe final poderá incomodar. As críticas da imprensa refletem essa divisão, mas concordam no mérito das atuações e da execução técnica.

É preciso também mencionar o uso do espaço e do silêncio como elementos narrativos: Keijzer confia no “menos” — menos diálogo, menos explicação, mais presença. Em filmes de sobrevivência, a tentação de explicar tudo é grande; aqui, a opção é justamente a oposta, e isso dá ao filme uma condição quase primitiva e ritualística. Há coragem nisso: o público é convidado a completar lacunas, a sentir em vez de apenas entender. Quando a película finalmente assume contornos de perseguição, a virada ocorre de modo orgânico — o que mostra que Keijzer domina as regras do gênero mesmo quando decide subvertê-las. 

Concluindo, The Occupant é um filme que recompensa a paciência do espectador: não promete pirotecnias de ficção científica e, felizmente, não as entrega como demanda central. Em vez disso, oferece uma experiência física e emocional — um relato de resistência humana contra a geografia e contra a própria cabeça — sustentado por uma fotografia admirável, uma atuação contida e poderosa de Ella Balinska, e uma construção sonora que finca os pés no corpo do espectador. É um filme de sobrevivência que, em vários momentos, se converte também em filme de perseguição; a ficção científica, que aparece como uma nota de cor, tem cerca de apenas uma fração do tempo de tela, funcionando mais como catalisador temático do que como definição de gênero. Quem for ao cinema esperando puro sci-fi pode sentir-se enganado; quem aceitar a proposta como um estudo de personagem e uma experiência sensorial encontrará aqui um trabalho sólido, por vezes comungante de beleza e dureza — e intensamente humano. 

No final, The Occupant confirma Hugo Keijzer como um diretor com pulso e visão: ele sabe criar atmosferas, extrair performances econômicas e manejar o espaço cinematográfico para que a própria paisagem atue como antagonista e personagem. Não é um filme perfeito — e talvez isso seja parte do seu fascínio —, mas é, definitivamente, um filme que merece ser visto com atenção e coração aberto.