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setembro 20, 2025

A Noviça Rebelde (1965)

 


Título original: The Sound of Music
Direção: Robert Wise
Sinopse: No final da década de 1930, na Áustria, quando o pesadelo nazista estava prestes a se instaurar no país, uma noviça que vive em um convento, mas não consegue seguir as rígidas normas de conduta das religiosas, vai trabalhar como governanta na casa do capitão Von Trapp, que é viúvo, tem sete filhos e os educa como se fizessem parte de um regimento. Sua chegada modifica drasticamente o padrão da família, trazendo alegria novamente ao lar da família Von Trapp e conquistando o carinho e o respeito das crianças. Mas ela termina se apaixonando pelo capitão, que está comprometido com uma rica baronesa.


Há filmes que atravessam gerações como se fossem parte de nossa própria biografia — A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), de Robert Wise, é um desses raros presentes do cinema. Assistir a ele restaurado em 4K no cinema, no seu sexagésimo aniversário, pareceu confirmar que a magia dele é atemporal — as montanhas continuam cantando, as crianças continuam encantando, e a alma sai mais leve ao final. 

Desde o primeiro frame, A Noviça Rebelde mostra sua ambição de levar o espectador além do musical de palco, para uma experiência cinematográfica plena. A fotografia de Ted McCord, gravada originalmente no formato amplo Todd-AO 70mm, oferece uma profundidade de campo e riqueza de imagem impressionantes. As lentes captam com nitidez as paisagens dos Alpes austríacos — as colinas, os prados, as nuvens que se movem, os detalhes da natureza — e transformam cada cena externa em pintura. A abertura, com Maria girando e cantando “The Sound of Music” nas montanhas, permanece uma das sequências mais icônicas da história do cinema; ela sintetiza o poder visual do formato, o uso de tomadas aéreas e de panorâmicas que, mesmo nos anos 60, exigiam tecnologia, coragem e coordenação.

O uso da cor é outro componente essencial. Produzido pelo processo DeLuxe Color, o filme jamais parece datado quando restauração moderna corrige os desvios de cor ou eventuais deteriorações. Na exibição restaurada, esse cuidado se reflete em tons vibrantes: os verdes das montanhas e dos prados, os castanhos terrosos, os interiores, os terços, os dourados e brancos que compõem o convento, a casa dos von Trapp, tudo isso brilha com clareza nova, como se tivesse sido filmado perto de hoje — e não deixa de impressionar que, embora haja alta definição e clareza, não haja aquela sensação plástica de imagem digital excessivamente tratada. A textura existe, o grão do filme está ali: quem viu esta nova versão no cinema percebe que cada detalhe de tecido, cada folha, cada reflexo tem presença.

No som, também há uma sofisticação que muitas vezes passa despercebida por espectadores casuais, mas que é vital para a experiência. Na restauração recente (que preparou o filme para o re-lançamento mundial, marcando os 60 anos), foram feitas remasterizações que permitem ao som respirar, dialogar com o espaço, com a música, com os silêncios, com os ecos dos vales e as vozes — de Maria e das crianças — que se tornam quase físicas. A voz do Capitão Von Trapp, por exemplo, é dublada por Bill Lee nas cenas cantadas.

Falando em música: aqui mora talvez o coração da obra. As canções de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II — adaptadas, orquestradas por Irwin Kostal para o filme — são imortais. Quando se fala em música temática no cinema, poucos exemplos são tão universalmente reconhecíveis quanto a música-tema “The Sound of Music”, a sequência de abertura majestosa; “Do-Re-Mi”, usada pedagogicamente nas escolas, é parte de uma herança sonora que chega a pessoas que nunca viram o filme; “My Favorite Things”, “Climb Ev’ry Mountain”, “Edelweiss” — cada número ressoa não somente por sua melodia, mas pela forma como se conecta à narrativa, ao crescimento dos personagens, ao drama pessoal e histórico que se desenrola sob a sombra do nazismo.

O roteiro de Ernest Lehman adapta inteligentemente o musical de teatro para o cinema: ele reordena números, supre algumas canções que no palco tinham outro peso, aproveita locações reais em Salzburgo, usa a câmera para explorar silêncio, paisagem, movimento. As cenas em ambiente interno são contrabalançadas por tomadas externas — o contraste entre o isolamento do convento, a vivacidade da natureza, a casa dos von Trapp, o mundo que se fecha com a aproximação da guerra. Cada enquadramento parece pensado para capturar não só rostos, emoções, mas o ambiente psicológico que cerca os personagens.

O elenco central imprime alma e credibilidade. Julie Andrews como Maria consegue aquele equilíbrio tão difícil entre espontaneidade, simplicidade, e força interior — sua voz, sua presença, seu riso, sua ternura. Christopher Plummer como o Capitão Von Trapp traz a rigidez, a dor silenciosa, a alma em conflito, e aos poucos, numa performance contida, vai se desarmando ante o amor, a música, a família. As crianças von Trapp são carismáticas, carinhosas, divertidas — cada uma com sua própria presença, mesmo que não sejam todas igualmente expressivas. A direção de Robert Wise equilibra nostalgia, romance, drama político, humor, musical, de modo que nenhum desses elementos domina em demasia; há leveza mesmo nas sombras, tensão mesmo na alegria — e isso torna o filme rico e completo.

A duração — quase três horas — poderia parecer intimidadora. O filme original tem aproximadamente 174 minutos na versão de cinema habitual. Em muitas obras, tal extensão poderia diluir o ritmo ou cansar, mas aqui não: cada cena, cada número, cada momento de desenvolvimento parece merecer seu tempo. Não há tempo ocioso; o longa se permite respirar, construir relações, instigar o espectador a se envolver. Se terminar desejamos que continue, não que acabe; a longa duração se transforma em bênção, não peso.

Ver no cinema uma versão restaurada em 4K, no aniversário de 60 anos, trouxe-me uma emoção extra: as imagens ficaram belíssimas, como se o filme tivesse sido filmado nos dias de hoje. A restauração — segundo os responsáveis — partiu de digitalizações em altíssima resolução, de elementos originais de 65/70mm, com escaneamento em 8K, depois redução para 4K para limpeza, correção de cor, remoção de imperfeições, correção de desbotamento e ajuste de brilho, contraste, etc.

Essa restauração permite redescobrir nuances: sombras dentro dos armários, costuras nos vestidos, véus do convento, os sulcos da madeira nos interiores, as texturas das pedras nos muros externos, até faíscas de luz nos olhos das personagens. Cenografia, figurino, iluminação — tudo ganhou nova visibilidade sem perder seu calor humano.

Há uma musicalidade interna ao filme que vai além das canções: o ritmo com que os diálogos são distribuídos, os silêncios, os olhares que dizem mais que as palavras. A edição de William Reynolds permite transições suaves, evita cortes bruscos em momentos de intensidade, mantém fluidez entre drama e canção, entre contemplação e movimento — e evita que o filme se torne algo excessivamente teatral ou inflado.

E há também o contexto histórico, que lhe dá profundidade e desafio: não é só um musical fofo, é uma história que lida com o autoritarismo, a escolha moral, a generosidade, o sacrifício. Essa dimensão torna o filme relevante em qualquer época, mas especialmente agora, quando lembramos da importância de resistir à opressão, do valor da música, da família, da empatia.

O que mais me impressiona é que, após tantas reprises, tantos formatos, tantos olhares diferentes, ainda assim o filme consegue tocar o coração — não só o meu, mas o de minha família, por décadas. Não é nostalgia vazia: é um carinho que perdura, uma memória coletiva, uma presença emotiva. Ver no cinema restaurado, reunir com outros espectadores, sentir o som envolvente, as vozes quase corpóreas, a paisagem iluminada, tudo isso confirma que essa obra transcende o tempo.

Em seu desfecho, quando a fuga dos von Trapp acontece, quando se ouve “Climb Every Mountain”, quando as vozes se unem no concerto, quando o risco se torna esperança — sai-se do cinema literalmente com a alma leve. É como se o filme tivesse limpado algo por dentro, tocado algo essencial.

Por tudo isso, A Noviça Rebelde não é apenas um dos grandes musicais; é um filme essencial. Um filme que acerta em tantos níveis — performance, fotografia, som, música, edição, direção, emoção — que parece, mesmo tão antigo, palpável, presente, vibrante. Permanece como obra que emociona, que ensina, que encanta — e que, mesmo depois de sessenta anos, continua um espetáculo perfeito.

Se tivesse que escolher uma palavra, diria: eterno.

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