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setembro 11, 2025

Cinema Olho (1924)

 


Título original: Киноглаз
Direção: Dziga Vertov
Sinopse: De forma revolucionária, o filme documenta a vida dos moradores de uma pequena vila soviética. O diretor Dziga Vertov, pioneiro dos documentários, foi um dos cineastas mais importantes do cinema soviético.


Cinema Olho (Киноглаз, 1924), de Dziga Vertov, não se limita a ser um documento histórico, mas configura-se como um ato militante sobre as potencialidades do cinema quando este se liberta da simples imitação da visão humana. Fundado no princípio do “cine-olho” — a crença de que a câmera é capaz de enxergar o que o olhar nu não alcança e reorganizar a realidade para revelar suas estruturas ocultas — o filme funciona como manifesto em movimento. Cada tomada, cada manipulação temporal e cada montagem não são apenas recursos estéticos, mas exercícios práticos de uma teoria cinematográfica que buscava redefinir os limites da linguagem fílmica. O resultado é uma obra que se mantém entre a frieza programática de sua missão e o fervor inventivo de sua execução.

A narrativa de Cinema Olho se apoia em fragmentos da vida cotidiana soviética — trabalhos agrícolas, atividades coletivas, crianças dos Pioneiros, a vida urbana em transição. No entanto, ao invés de se restringir ao registro jornalístico, Vertov reorganiza esses materiais de forma a sugerir novos sentidos. A câmera, conduzida por Mikhail Kaufman, atua como extensão mecânica da percepção, explorando ângulos inesperados, aproximações e movimentos que desestabilizam a leitura convencional das cenas. A vida, filmada sem que seus sujeitos estejam plenamente conscientes da câmera, é então submetida à força da montagem, onde a edição se transforma em instrumento de pensamento.

Um dos aspectos mais revolucionários da obra é a maneira como a edição se articula ritmicamente, estabelecendo uma espécie de sinfonia visual. Os cortes são marcados como batidas musicais, criando cadências que tornam processos industriais ou coletivos em verdadeiras coreografias. Essa concepção rítmica do cinema, pensada quase como uma partitura visual, demonstra a consciência de Vertov em relação à dimensão sonora da montagem, mesmo em um período em que o cinema era ainda silencioso. O casamento entre cortes e música, ainda que em muitas versões a trilha tenha sido incorporada posteriormente, evidencia um avanço extraordinário para a época: o tempo cinematográfico não apenas reproduz o real, mas o reinventa pela articulação entre som e imagem.

As manipulações temporais são igualmente notáveis. Sequências exibidas em retrocesso — como o boi abatido que “ressuscita” ou o pão que se recompõe — não funcionam como truques vazios de espetáculo, mas como metáforas críticas. Ao inverter o fluxo natural dos acontecimentos, Vertov sugere a possibilidade de transformação social e histórica, em consonância com os ideais revolucionários que permeiam sua obra. Esse uso da técnica fílmica como comentário político insere Cinema Olho em uma tradição que vê a montagem não apenas como recurso estético, mas como ferramenta de ideologia.

A colaboração entre Vertov e Yelizaveta Svilova na montagem é crucial. O filme estrutura-se em ciclos visuais, repetições e contrapontos que demandam do espectador um olhar ativo, capaz de construir sentido a partir das associações propostas. Trata-se de um cinema que não entrega respostas prontas, mas estimula a percepção crítica. Ao mesmo tempo, a fotografia de Kaufman imprime uma energia documental que ancora a obra na realidade, ainda que transformada pela lógica experimental do cine-olho.

No campo estético, Cinema Olho reflete a influência da vanguarda construtivista. Seus enquadramentos, justaposições e até mesmo os cartazes promocionais, concebidos por artistas como Rodchenko, inserem o filme em um movimento maior de experimentação visual soviética. É cinema como arte total, entrelaçado à propaganda e à estética política de seu tempo. Contudo, diferentemente da propaganda panfletária, a força de Cinema Olho reside na experimentação formal: a ideologia é transmitida não pelo discurso direto, mas pela manipulação criativa da realidade filmada.

Ainda que fortemente vinculado ao contexto político soviético, o filme transcende seu papel de instrumento estatal. Sua relevância se deve justamente ao modo como transforma a propaganda em experiência estética. Ao retratar trabalhadores, crianças e cooperativas, Vertov não apenas documenta, mas molda um ideal de coletividade em imagens que oscilam entre o registro etnográfico e a construção aspiracional. O espectador é conduzido não apenas a aceitar um argumento, mas a vivenciá-lo através do ritmo e da percepção sensorial.

O impacto de Cinema Olho é ambivalente. Para alguns, sua estrutura programática pode soar fria ou excessivamente didática. No entanto, é inegável o papel que desempenhou na expansão da gramática cinematográfica. A partir de sua lógica de montagem, Vertov abriu caminho para que o cinema se tornasse um campo de experimentação perceptiva, influenciando gerações posteriores de documentaristas e cineastas de vanguarda.

Ao analisar o filme quase um século depois de sua estreia, permanece clara a ousadia de sua edição, marcada pelo sincronismo entre cortes e música, e pela inventividade que transforma o simples registro em reflexão poética e política. A montagem deixa de ser apenas técnica para tornar-se sujeito ativo do discurso fílmico, revelando que o cinema pode não apenas mostrar o mundo, mas reinventá-lo. Essa força estética e teórica faz de Cinema Olho uma obra que resiste ao tempo: um manual vivo de como pensar, editar e escutar a realidade por meio das imagens.

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