Desde o início, é impossível assistir A Longa Marcha sem ver o quanto Francis Lawrence volta a territórios que ele já explorou muitas vezes antes — especialmente em Jogos Vorazes. A ideia do “jovem (ou vários jovens) submetidos a um jogo ou competição letal dentro de uma sociedade autoritária / distópica”, a montagem de grande público, o uso do espetáculo como mecanismo de controle, tudo isso já se viu — e bem explorado — em sua filmografia anterior. Aqui ele tenta trazer algo diferente, por causa da origem do material (Stephen King) e do tom mais sombrio, porém acaba por repetir muitas estruturas: o sacrifício, a pressão física, a traição velada entre companheiros, as tensões morais entre “seguir ou desistir”, as figuras de autoridade opressiva. Em certo sentido, já se antevê muito do que vai acontecer — algo que nem sempre é ruim, mas quando repetido sem surpresas fortes, cansa.
A premissa: uma América devastada por guerra civil, sob regime militar totalitário; cinquenta jovens de diferentes estados obrigados (ou escolhidos) — ou pelo menos atraídos pela promessa do prêmio — a participar de uma caminhada contínua de centenas de milhas, sob regras brutais: se caminhar lento demais ou parar, após advertências, será morto. O filme tenta manter fiel ao espírito sombrio do livro — King queria uma narrativa implacável, sem concessões.
Na parte técnica o filme se sai bem. A fotografia de Jo Willems consegue capturar a monotonia, o eterno caminhar, o desgaste físico — os pés feridos, a pele rachada, o suor, momentos de fraqueza e desespero — de uma maneira bastante crua. O design de produção, cores dessaturadas, os ambientes externos extensos (estradas, campos, pequenas cidades abandonadas ou quase fantasmagóricas) reforçam uma atmosfera de opressão silenciosa, de uma América em ruínas, mas também de um lugar em que o controle se exerce através da exaustão e do espetáculo. A edição por Mark Yoshikawa alterna momentos mais lentos — longas tomadas que arrastam o caminhar, as conversas entre os competidores, o silêncio pesado — com episódios de violência abrupta, com cortes precisos quando necessário para chocar. Essas escolhas ajudam tecnicamente a criar tensão, embora nem sempre sustentem o interesse emocional.
A trilha sonora, composta por Jeremiah Fraites, tem momentos interessantes — há ambiência, intervenções de percussão que tentam marcar ritmo, sugestão de batidas de coração, o peso físico da caminhada e do medo. Mas também notei que quando a música realmente aparece, peca por previsibilidade: crescendos já esperados, temas que soam clichê, momentos em que a trilha parece dizer “a tensão vai aumentar” de forma demasiado literal, sem sutileza. Ou seja: funciona tecnicamente, mas artisticamente falha em trazer algo novo ou impactante nesses momentos.
O design de som (ruídos dos passos, respiração difícil, efeitos de tiros, vento, vento seco, sapatos arrastando) é eficaz, em especial para criar empatia física: você sente o peso do sol, do calor, do corpo cansado. O problema é que esse efeito de desgaste, de monotonia sensorial, quando estendido demais, acaba saturando — em vez de aumentar a imersão, cansa.
Na narrativa e no ritmo é onde aparece meu maior problema: o filme é cansativo de assistir. Monótono. Ele falha em entregar como terror — embora haja violência explícita, há pouco ou nenhum elemento que realmente provoque sustos, que crie horror profundo, psicológico, que faça você olhar de forma diferente ao que está sendo mostrado. Ao invés disso, ele se aproxima mais de um suspense fraco, mas que demora demais para gerar alguma reviravolta real. A cada morte, a expectativa de algo chocante cresce; mas as mortes, quando ocorrem, embora brutais, parecem parte do manual: um tropeço já visto, uma consequência já esperada, uma escalada previsível.
Há momentos de camaradagem, de diálogo entre os jovens, momentos em que parece que a narrativa pode mudar de curso, que haverá revelações, conflitos internos mais profundos — mas frequentemente esses momentos são subutilizados, pouco explorados. Muitos personagens ficam rasos: sabemos pouco do passado de cada um, sentimos pouco de suas motivações além do medo, da esperança pelo prêmio, da exaustão. É natural, no livro, que a narrativa seja minimalista, quase existencial; no cinema, talvez se pudesse desenvolver mais essas dimensões para equilibrar o peso físico com o emocional. Mas Lawrence e o roteirista JT Mollner parecem estar mais interessados em estender o sofrimento físico e a dureza da caminhada do que em nos fazer mergulhar nos dilemas morais, nas identidades internas dos personagens.
O final é previsível — e isso é uma falha que me incomoda bastante. Mesmo quem não leu o livro (ou nem conhece bem King) percebe antes relativamente cedo para onde tudo tende: quem vai aguentar até perto do fim, quem vai morrer, quem será o vencedor, talvez que haja uma ambiguidade em relação à “vitória”. E isso enfraquece muito a força dramática do desfecho. O impacto emocional que poderia ser devastador acaba sendo só “bom”, mas não memorável.
Tenho sérios problemas com adaptações de Stephen King. Acho o autor superestimado na maior parte das vezes — salvo algumas exceções (como Louca Obsessão, 1990, ou O Iluminado, 1980) — obras em que King atingiu profundidade, atmosfera, tensão. Aqui, embora A Longa Marcha tente exatamente se firmar como uma dessas boas adaptações, em muitos momentos ele se perde no meio do caminho. Parte disso se deve ao material original, que é propositalmente sombrio, minimalista, quase didático em sua crítica, mas também sua própria limitação: a repetição da caminhada como metáfora pode funcionar no papel, onde o leitor internaliza a espera, o horror, a exaustão, a ansiedade. No cinema, para atingir isso você precisa variar ritmo, explorar subjetividade, trazer surpresas não só visuais ou de violência, mas psicológicas — e esse filme, para mim, falha parcialmente nisso. Ele funciona mais como exercício de suportar sofrimento do que como experiência de terror ou suspense verdadeiramente memorável.
Outra questão: a crítica social que funcionava muito bem na época da Guerra do Vietnã (quando A Grande Marcha foi publicado) — a ideia do sacrifício imposto, da obediência cega, da exaustão física e mental como metáforas de guerra — hoje soa meio deslocada, ou pelo menos exige uma contextualização forte para ser crível. Lawrence tenta fazê-lo: ambienta um regime autoritário, há implicações de guerra civil anterior, pobreza, desesperança, propaganda, espetáculo midiático de dor. Mas mesmo assim, ao meu ver, em 2025, com os discursos políticos e sociais contemporâneos, parecia que faltava consistência para que esse cenário distópico parecesse verossímil — não no sentido técnico, mas no emocional ou no de crença suspensa. Em muitos momentos não convence que tantas pessoas aceitariam participar com tanta naturalidade nem que o regime se manteria com tal apatia ou complacência, ou que o “público” dentro do filme fosse tão indiferente — ou tão fascinado — sem resistência maior. Aliás, isso é típico: aqui vemos que até uma boa ideia não necessariamente gera um ótimo filme.
As atuações, no meu olhar, variam entre medianas e ruins — em parte por culpa do roteiro / enredo, que não oferece muito material robusto para quase todos os personagens interpretarem. Cooper Hoffman como Ray Garraty tenta dar corpo ao papel principal; ele tem alguns momentos de expressão, alguma vulnerabilidade, mas em muitos momentos parece engolido pelo desgaste do filme, sem grandes fissuras emocionais que nos façam ver além do personagem de “quem caminha, quem sobrevive”. David Jonsson (Peter) aparece com mais energia, assumindo alguma força moral, mas também limitado pelo tipo de personagem que lhe foi dado. Outros, como Charlie Plummer no papel do Barkovitch, têm arcos que tentam oferecer conflito extra, mas me pareceram apressados, pouco desenvolvidos.
Tem também Mark Hamill como o Major — figura de autoridade antagonista. Confesso que só descobri que ele estava no filme quando vi os créditos, pois sua presença, sua construção como vilão, não me pareceu de fato ameaçadora ou marcante. Ele parece distante, formal; há momentos de discurso, monólogos, mas falta corpo, intensidade que gere medo real, ou horror psicológico profundo. Talvez seja proposital que ele seja uma figura um tanto impassível, distante, mascando poder; mas para mim isso não funcionou como deveria. Não foi convincente como grande vilão.
Há também personagens secundários que jamais se destacam, que mal têm identidade própria, que morrem “porque tinha de morrer” sem criar laço ou choque emocional. Raramente senti empatia real por muitos deles — talvez porque não há aprofundamento prévio ou momentos marcantes que os diferenciem.
Para quem gosta de distopias violentas com estética cuidada, pode haver satisfação em muitas cenas, especialmente visualmente. Mas para quem espera uma experiência de terrores profundos, de renovação do gênero, de personagens memoráveis e de narrativa surpreendente, A Longa Marcha acaba decepcionando. Saí do cinema cansado física e emocionalmente — não perturbado no bom sentido, nem iluminado — mas desgostoso com as possibilidades desperdiçadas, com o final que entrega o previsível e com o sentimento de que se poderia ter ido muito além.
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