Segredos é um filme que se apresenta, à primeira vista, como um pequeno thriller doméstico: a premissa é simples e direta — um casal milionário, à beira da dissolução, vê sua noite derradeira transformar-se num campo minado de mentiras e revelações —, mas o que deveria funcionar como exercício de intimidade e tensão psicológica acaba se desfazendo em uma mise-en-scène desconexa e em escolhas formais que mais confundem do que acrescentam. Dirigido por Emiliano Ruschel, que também assume o papel de Noah ao lado de Danni Suzuki (Naomi), o longa tenta articular passado e presente, flashbacks de Yale e momentos de confinamento noturno, numa tentativa de construir um mosaico dramático — a peça central, porém, falha na articulação entre texto, atores e concepção sonora e linguística.
Tecnicamente, o filme tem acertos pontuais: a fotografia busca um contraste claro-escuro que remete a uma estética de thriller psicológico, e há alguns enquadramentos bem pensados que tentam simbolizar a claustrofobia do casal. A edição, no entanto, não acompanha a ambição formal — os saltos temporais, em vez de tensionar a narrativa, frequentemente desorientam o espectador por apresentarem lacunas que o roteiro não supre. O uso do som, que poderia ser uma ferramenta para amplificar o desconforto, é irregular; há momentos em que a mixagem não equilibra diálogos e ambientes, deixando a fala truncada ou, pior, artificialmente plana. Esse contraste entre boas intenções visuais e execução editorial fragiliza a eficácia dramática pretendida.
No terreno do elenco, o filme se torna ainda mais problemático. A escolha de filmar majoritariamente em inglês — presumivelmente para dar um ar “internacional” à trama que envolve um diplomata suíço e uma socialite brasileira — entra em choque com a fluência real dos intérpretes. A consequência é uma atuação que oscila constantemente entre o esforçado e o inverossímil; expressões e cadências que soariam autênticas numa produção anglófona fluem aqui como artifício. Foi justamente essa incongruência que motivou uma observação direta do autor do pedido desta crítica: “Uma total catástrofe, por que falar inglês se ninguém dos atores sabe falar?” — frase que resume bem o estranhamento proporcionado pela opção linguística. A tentativa de “internacionalizar” o filme não amplia seu alcance; ao contrário, empobrece a credibilidade emocional das cenas íntimas.
Do ponto de vista narrativo, o roteiro pretende navegar entre o thriller e o melodrama: segredos antigos, abusos velados, manipulação emocional e a revelação gradual de uma dinâmica abusiva são os pilares da história. Essa combinação poderia render um estudo de caráter profundo — o grande trunfo de filmes de câmara é justamente a capacidade de expor relações por osmose, pela intensidade dos silêncios e das pausas —, mas aqui a construção dramaticamente não sustenta o peso das intenções. Em vez de emergir a densidade de personagens complexos, fica a sensação de que faltou coragem para aprofundar motivações ou para tornar os respectivos arcos verossímeis. Os flashbacks, muitas vezes, funcionam como atalho expositivo e não como densificação emocional.
Há ainda um problema de tom que é difícil de contornar: em diversos momentos, a montagem e a direção de atores aproximam o longa de um melodrama televisivo — algo que se aproxima mais de uma novela do SBT que não teve financiamento. Essa comparação, dura mas com algum fundamento, aponta para a sensação de produção menor tentando reverberar como grande. Não se trata de desprezar produções de baixo orçamento — muitos filmes independentes encontram na limitação uma linguagem potente —, mas quando a estética televisiva invade a narrativa pretendendo elevar-se a cinema autoral sem os meios técnicos e de atuação para tal, o contraste se torna evidente e desconfortável.
As performances, quando vistas isoladamente, têm lampejos de honestidade — Danni Suzuki tenta dar camadas à Naomi, e há instantes em que a câmera parece capturar algo autêntico —, porém esses momentos são fragmentos soltos que o conjunto do filme não consegue costurar. Emiliano Ruschel, ao dirigir e protagonizar, arrisca-se a uma sobreposição de funções que nem sempre favorece o distanciamento crítico necessário: dirigir a própria performance demanda rigor e uma equipe editorial forte, e quando esse filtro falta, o resultado tende a ser autorreferencial e pouco crítico. Além disso, o acréscimo de atores como Sammy Sampaio e David Herman compõe um elenco que, no papel, poderia enriquecer a trama, mas que esbarra nas limitações do roteiro e na irregularidade das direções.
É preciso reconhecer, porém, que há intenção em trabalhar temas relevantes — abuso psicológico, a máscara das relações públicas, o preço das aparências. Em certos cortes de close-up e planos longos de silêncio, o filme ensaia uma crítica social ao microcosmo elitista que representa. Esses momentos, porém, são raros e muitas vezes engolidos por soluções dramáticas simplistas ou por escolhas formais que não dialogam entre si. A sensação que fica é a de um filme que almeja falar muito — e talvez falar alto —, mas que carece de um pulso narrativo coerente para que o discurso chegue ao espectador sem tropeços.
Em suma, Segredos é uma obra com ambições maiores do que sua execução permite. A distribuição via A2 Filmes e a presença do título em mostras e portais indicam uma tentativa de inserção no circuito festivalier e comercial, mas o produto final não encontra o equilíbrio entre forma e conteúdo. Para espectadores interessados em cinema de câmara contemporâneo, o filme oferece algumas imagens e ideias, mas precisa, em essência, de um roteiro mais enxuto, uma mixagem sonora mais rigorosa e uma decisão linguística coerente com a fluência do elenco. No lugar de um estudo de personagens, resta um conjunto de cenas com boas intenções e pobres articulações — como se os segredos mais pesados do filme fossem justamente os de uma produção que ainda precisa aprender a falar sua própria língua. Conclui-se, portanto, que, apesar de algumas aspirações visuais e temáticas válidas, Segredos falha em converter intenção em cinema verdadeiramente convincente — sobrando ruído onde poderia haver silêncio cortante e clareza onde deveria haver sutileza.
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