Hugo Keijzer assina com The Occupant um filme que se instala devagar, mas de forma implacável, na pele do espectador: é uma obra de sobrevivência que se traveste por poucos instantes de ficção científica e que, no fundo, funciona sobretudo como um retrato austero de perda, culpa e resistência. O roteiro — dividido entre momentos quase documentais de confronto com a natureza e passagens de tensão psicológica quase claustrofóbica — privilegia a experiência sensorial antes de explicar todas as suas engrenagens, e essa escolha é uma das razões pelas quais o filme, mesmo imperfeito, consegue permanecer na memória depois dos créditos.
No centro dramático está Abby (Ella Balinska), geóloga em missão, cujo desespero para salvar a irmã motiva a aceitação de um trabalho perigoso nas montanhas do Cáucaso — terreno que o filme transforma em personagem. Balinska entrega aqui uma performance de carcaça e silêncio: seu trabalho corporal (respiração, cansaço, pequenas reações instintivas) faz mais pela narrativa do que diálogos expositivos. Keijzer compreende que, em histórias de sobrevivência, o rosto e o corpo do intérprete são o campo primário para a transmissão do medo e da esperança; Balinska responde com economia e precisão. A relação por rádio entre Abby e a voz de John (Rob Delaney) é o eixo narrativo que mistura auxílio e ambiguidade — ponto no qual o filme tenta, sem sempre convicção total, equilibrar thriller de perseguição e uma dúvida ontológica sobre o que é real.
Esteticamente, The Occupant é notável. Robbie van Brussel, na fotografia, explora com elegância o contraste entre a vastidão glacial e a pequenez do corpo humano. A câmera privilegia composições que isolam a figura de Abby em longos planos gerais, enquanto closes bem dosados capturam a textura congelada da pele e dos lábios rachados — escolhas que amplificam o terror físico do ambiente. A paleta fria do filme não é gratuita: funciona como metáfora do processo emocional da protagonista, um luto que deteriora calor e cor. Por outro lado, há momentos de câmera tremida e montagem fragmentada que evocam desorientação e delírio, aproximando o espectador do ponto de vista de Abby sem jamais trair o olhar do diretor.
A edição — a serviço da tensão dramática — é um dos vetores mais interessantes do longa. Brian Philip Davis costura ritmos que variam entre o contido e o abrupto, imprimindo ao terceiro ato uma aceleração que transforma a narrativa de sobrevivência em perseguição: sequências de fuga por encostas, tentativas de improviso e encontros com a hostilidade do cenário adquirem uma cadência que prende. É relevante notar que, mesmo sendo anunciado como um filme de ficção científica, essa componente representa uma fração pequena do tempo de tela; The Occupant vende o rótulo de sci-fi, mas o cerne do filme permanece enraizado no survival drama e no psicológico — uma observação que coincide com a recepção crítica e com a própria construção do enredo. Isso não é uma falha: é uma opção de tom que transforma a ficção científica em tempero, não em prato principal.
Na trilha sonora, Renger Koning opta por um tratamento que privilegia atmosferas e texturas mais do que melodias óbvias. O score acompanha o corpo exausto de Abby com camadas eletrônicas sutis e momentos abertos, quase sem resolução, que aumentam a sensação de desamparo. Em cenas de silêncio absoluto, o design de som passa a ser protagonista: o ranger do vento, o estalo de um osso de gelo, o som abafado da respiração compõem uma trilha sonora “natural” que dialoga com os arranjos de Koning para produzir um estado de vigilância contínua. Essa escolha sonoro-musical converte o ambiente em campo afetivo — e é aí que o terror e a empatia se encontram.
Narrativamente, The Occupant caminha por uma linha tênue entre o minimalismo e a ambição temática. Os roteiristas (entre eles Keijzer) exploram o arco psicológico da protagonista — negação, bargaining, raiva, aceitação — sem transformar o filme num tratado explicativo sobre o luto. Essa opção permite que a parábola emocional respire, mas também deixa algumas arestas narrativas pouco aparadas: certas revelações sobre a natureza do “ajudante” radiofônico ou o desfecho metafísico da história poderiam ser mais trabalhadas para satisfazer os que buscam conclusões mais firmes. Ainda assim, o modo como o filme usa a incerteza — o que é real, o que é alucinação, o que é consolo — é sentido como coerente com seu propósito emocional.
Do ponto de vista temático, há uma ambição calma: The Occupant fala sobre responsabilidade, sobre o peso de decisões tomadas por amor, e sobre o limite entre resistência humana e rendição à carne do mundo. Keijzer evita o maniqueísmo: a montanha não é apenas vilã, assim como John não é só salvador ou monstro; são forças ambíguas que demandam uma resposta humana complexa. Isso faz do filme uma experiência que rende na reflexão — ainda que, em alguns momentos, sacrifique a clareza dramática em favor da intensidade sensorial. Para muitos espectadores, essa troca será acertada; para outros, a sensação de “algo faltando” no encaixe final poderá incomodar. As críticas da imprensa refletem essa divisão, mas concordam no mérito das atuações e da execução técnica.
É preciso também mencionar o uso do espaço e do silêncio como elementos narrativos: Keijzer confia no “menos” — menos diálogo, menos explicação, mais presença. Em filmes de sobrevivência, a tentação de explicar tudo é grande; aqui, a opção é justamente a oposta, e isso dá ao filme uma condição quase primitiva e ritualística. Há coragem nisso: o público é convidado a completar lacunas, a sentir em vez de apenas entender. Quando a película finalmente assume contornos de perseguição, a virada ocorre de modo orgânico — o que mostra que Keijzer domina as regras do gênero mesmo quando decide subvertê-las.
Concluindo, The Occupant é um filme que recompensa a paciência do espectador: não promete pirotecnias de ficção científica e, felizmente, não as entrega como demanda central. Em vez disso, oferece uma experiência física e emocional — um relato de resistência humana contra a geografia e contra a própria cabeça — sustentado por uma fotografia admirável, uma atuação contida e poderosa de Ella Balinska, e uma construção sonora que finca os pés no corpo do espectador. É um filme de sobrevivência que, em vários momentos, se converte também em filme de perseguição; a ficção científica, que aparece como uma nota de cor, tem cerca de apenas uma fração do tempo de tela, funcionando mais como catalisador temático do que como definição de gênero. Quem for ao cinema esperando puro sci-fi pode sentir-se enganado; quem aceitar a proposta como um estudo de personagem e uma experiência sensorial encontrará aqui um trabalho sólido, por vezes comungante de beleza e dureza — e intensamente humano.
No final, The Occupant confirma Hugo Keijzer como um diretor com pulso e visão: ele sabe criar atmosferas, extrair performances econômicas e manejar o espaço cinematográfico para que a própria paisagem atue como antagonista e personagem. Não é um filme perfeito — e talvez isso seja parte do seu fascínio —, mas é, definitivamente, um filme que merece ser visto com atenção e coração aberto.
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