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setembro 10, 2025

Eddington (2025)

 


Título original: Eddington
Direção: Ari Aster
Sinopse: Em maio de 2020 durante a pandemia de Covid-19, um impasse entre o xerife e o prefeito de uma pequena cidade gera um conflito entre vizinhos em Eddington, Novo México.


Desde muito tempo eu aguardava um filme de Ari Aster que conseguisse fazer exatamente o que Eddington faz: envolver completamente, com tensão crescente, sem apelar para o sobrenatural; focar na polarização política e social – nos discursos, nos medos, nas divisões – ao invés de fantasmas ou demônios. O novo trabalho dele é uma espécie de recorte fiel, brutal e fascinante do que vivemos na pandemia de COVID-19, uma era em que as verdades pareciam paradoxos e em que vizinhos deixaram de ser vizinhos, partidos deixaram de ser interlocutores, para virar inimigos morais instantâneos. Em Eddington, finalmente, ele consegue fazer um filme que prende — e prende não por sustos ou estranhezas, mas por espelho: o que vemos ali tem ecos muito reais em nossas conversas, redes sociais, passeios de máscara, notícias e fake news.

A história se passa em 2020, em Eddington, uma cidade no Novo México, quando o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix) entra em rota de colisão com o prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal) ao recusar usar máscara e, posteriormente, decidir disputar a prefeitura. A trama vai se desdobrando a partir dali de várias formas — disfarçadas como absurdas, mas que, se você parou pra pensar, foram reais ou muito próximas do que vivemos. As teorias de conspiração ecoadas pela sogra do xerife, os discursos inflamados, os protestos do Black Lives Matter depois do assassinato de George Floyd, as reações exageradas — tudo faz parte de um mosaico que, embora extenso e às vezes difícil de digerir em sua complexidade, é tão pertinente que nenhum detalhe parece exagero.

Direção, roteiro e construção narrativa merecem aplausos. Aster assume o risco de manter o filme longo — 149 minutos —, mas o uso desse tempo não é inflado: cada cena, cada desentendimento, cada discurso serve para tensionar algo maior. Se o filme fosse ainda mais longo, provavelmente daria para explorar ainda mais personagens secundários, mas o que ele entrega já é impressionante. A alternância entre o íntimo (o lar do xerife, sua relação familiar, seus medos pessoais) e o público (comícios, coletivas, lives, redes sociais, protestos) é trabalhada de forma orgânica. Não há monotonia, há momentos de calmaria, talvez até de humor negro — justamente porque o absurdo que parece caricatural se torna dolorosamente familiar. O filme, sendo imparcial, mostra consequências para ambos os lados: para quem defende protocolos, para quem os rejeita; para quem acredita cegamente em ciência, para quem se sente traído ou manipulado por instituições ou meios de mídia. Ninguém sai completamente “do lado bom” ou “completamente errado” — o mérito artístico aí é grande, pois ele evita o maniqueísmo fácil.

Em termos técnicos, Eddington é uma obra fenomenal. A fotografia de Darius Khondji é impressionante: os panoramas do Novo México, o uso da luz natural, os interiores opressivos, as sombras que se alongam, enquadramentos que sugerem isolamento — tudo isso contribui para uma atmosfera de tensão latente, quase de faroeste moderno. A edição de Lucian Johnston funciona como um relógio que alterna marchas: em certas cenas vai devagar, quase aterrorizante na quietude; em outras acelera, corta com impacto, nos confrontos, nos protestos, no caos. É nessa “montanha-russa narrativa” que o longa pega você. Também a trilha sonora — assinada por Daniel Pemberton e Bobby Krlic — ajuda sem apelar para o melodrama excessivo. Ela está presente nos momentos certos, auxilia nas transições entre o privado e o coletivo, cresce com o escalar do conflito, sustenta o ritmo.

Quanto às atuações: Joaquin Phoenix, mesmo eu dizendo que não sou fã dele, está fenomenal. Ele interpreta Joe Cross com camadas (raiva, insegurança, convicção, medo de ser engolido pelo caos), nunca caricaturado, embora haja traços de caricatura intencionais no tom geral do filme. Pedro Pascal como o prefeito Ted Garcia contrabalança esse Joe: mantém dignidade, convicção, vulnerabilidade. Emma Stone como esposa de Joe e Deirdre O’Connell como a sogra conspiracionista são peças-chave: Stone dá humanidade, conflito íntimo, tensão emocional; O’Connell traz o horror real da ignorância (não no sentido de escárnio, mas no terror de ver crenças mal fundamentadas ganhando força). O elenco todo, incluindo Micheal Ward, Austin Butler, Luke Grimes, etc., desempenha seus papeis de apoio de modo sólido.

Um ponto que me chamou atenção: embora o filme seja longo, ele não desperdiça quase nada. Cada elemento — visual, sonoro, narrativo — reforça o tema da polarização, da desinformação, da fragilidade da coesão social. Ele começa com o conflito em aparência política (máscaras, mandatos, autoridade em quarentena), mas vai descendo para os abismos das convicções extremas, da raiva pessoal, da violência simbólica e real. Ele segura tudo isso com uma mão firme: não se perde em digressões desnecessárias, embora permita momentos que respiram — e isso torna o impacto maior quando as tensões se acumulam.

Do ponto de vista artístico, Eddington mistura gêneros — faroeste contemporâneo, comédia negra, thriller político, drama familiar — de uma forma que poderia soar espalhafatosa, mas soa coerente. Aster consegue fazer deste tipo de mistura algo que não fique confuso, nem jogado; ao contrário, cada mudança de tom lembra que estamos num espelho distorcido da realidade, onde ironia, tragédia, farsa e violência se confundem. Ele dialoga com o cinema político, com o western moderno (o cidadão armado, o xerife, a autoridade local, o conflito no “velho oeste” transformado em “novo oeste”), mas também com a era das redes sociais e do medo viralizado. É essa fusão de estilos que torna o filme tão potente.

Tecnicamente, tanto a produção de arte quanto o cenário merecem menção: o deserto, os espaços urbanos pequenos, as casas de interior, os bares, os cartazes, os outdoors, tudo contribui para criar um mundo que é crível e que, ao mesmo tempo, parece estar sempre à beira da implosão. As locações no Novo México foram utilizadas não apenas como cenário, mas como personagem: o calor, o vazio, a distância entre as pessoas, a vastidão da paisagem contrastando com o confinamento que a pandemia impôs.

Há também escolhas de mise-en-scène que se destacam muito: a câmera segura em momentos de crise, com planos longos que deixam o espectador sentir o peso do silêncio; as inserções de telas de celular, redes sociais, transmissões ao vivo, discursos gravados, etc., que nos colocam dentro da guerra cultural que foi ao mesmo tempo global e extremamente local.

Outro mérito enorme do filme é justamente não recorrer a elementos sobrenaturais ou fantásticos: toda a angústia, todo o horror, todo o absurdo vem do humano, vem das nossas divisões, das notícias desmentidas, da reação em cadeia da desinformação, da paranoia. Isso torna Eddington muito mais incômodo e mais forte para mim pessoalmente. Finalmente, dizer que não há nada de sobrenatural aqui é parte do triunfo da obra: não precisamos de algo estranho para estarmos espantados, pois o que nos assombra já está aqui, no mundo real.

Não acho que haja uma falha sequer no filme. Se tivesse que escolher algo para criticar, talvez a parte inicial possa parecer lenta demais para quem espera ação logo, ou alguns personagens secundários menos desenvolvidos poderiam ganhar espaço, mas isso não são defeitos: são escolhas que permitem que o filme respire e evolua até o clímax. E esse clímax é violento, desafiador, perturbador — ele nos obriga a olhar para dentro. O filme longo porém com uma história que se desdobra de tantas formas que prendem — poderia até ser mais longo, verdade — mas mesmo assim cumpre o que promete.

Em seu conjunto, Eddington representa o melhor trabalho de Ari Aster até agora, tanto na direção quanto no roteiro. É impecável o modo como ele costura os fios narrativos, como constrói tensão crescente, como mantém-nos atentos, desconfortáveis, emocionados. É um épico contemporâneo, uma obra que mistura gêneros, que serve como crônica, como advertência, como testemunho de um momento histórico que ainda reverbera. É lamentável que até agora tenha sido pouco visto: mereceria ser debatido, estudado, visto e revisto, discutido em salas de aula ou salas de cinema lotadas.

Por tudo isso, Eddington tem o caráter de um filme que não apenas existe, mas se impõe: impõe uma reflexão, impõe uma dor, impõe uma constatação de que, em plena pandemia, quando as pessoas se polarizaram, quando a ciência virou objeto de desconfiança, quando discursos extremos se tornaram normais, o cinema podia capturar isso de corpo inteiro — e Eddington captura.

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