Kneecap se apresenta como um filme ambicioso – até arrogante em sua proposta – um híbrido de documentário, cine-concerto e comédia-dramática política que tenta capturar o espírito rebelde da cultura jovem irlandesa. Com direção e roteiro de Rich Peppiatt, o longa aspira elevar-se a um nível de mito cultural. Porém, apesar de seus méritos técnicos, falha frequentemente em manter o espectador engajado emocionalmente, oscilando entre momentos de impacto e trechos cansativos.
A história de quase‑punks de Belfast que fogem da apatia pós‑Troubles é retratada com uma ambição visível: dar voz a uma geração que luta pela revitalização do idioma irlandês, enquanto cultivam seu som rebelde. Contudo, essa ambição flerta com arrogância. O roteiro repete padrões e clichês de histórias de bandas que trafegam entre crimes, drogas e prisão. Essa repetição — cena após cena — conduz o filme a um ritmo irregular. Há uma sensação de déjà vu contínuo, como se estivéssemos assistindo mais uma versão genérica de jovens rebeldes em busca de “liberdade”, mergulhados no mesmo ciclo de excessos e prisão, sem real profundidade nas contradições pessoais.
Um dos recursos centrais da pegada realista do filme é o fato de os integrantes da banda Kneecap interpretarem a si mesmos na tela — algo que só descobri após terminar a sessão. Essa escolha confere ao trio uma veracidade incrível: suas raivas, atitudes e performances ganham um peso de biografia vivida. A caricatura de identidade cultural, a agressividade punk e a fluidez entre idioma gaélico e inglês emergem de maneira crua e genuína. Isso torna os três protagonistas surpreendentemente sólidos onscreen, apesar de não serem atores profissionais. Ainda assim, o esforço de autenticidade não é acompanhado por aprofundamento emocional — o que limita o impacto dramático de suas jornadas individuais.
Um dos pontos fortes inegáveis é a montagem: assinada por Julian Ulrichs e Chris Gill, é extraordinariamente dinâmica nos momentos de música, performance e sequências de ação. Cenas de raves, shows e perseguições ganham um ritmo pulsante, quase musical – fazendo o espectador sentir o tempo da pista. Há cortes sutis e criativos, slow‑mo e animações grafitadas que evocam um clima de videoclipes urbanos. Ainda assim, esses lampejos de energia são intercalados por segmentos que se arrastam — especialmente diálogos prolongados que não conduzem a lugar nenhum. O contraste entre a agilidade da edição e os momentos de lentidão é tão radical que chega a evidenciar o próprio problema de ritmo do filme – ótimo tecnicamente em partes, débil dramaticamente em outras.
A cinematografia de Ryan Kernaghan usa uma paleta fria, com luzes de néon e cenários urbanos que evocam tanto Belfast quanto as contraculturas punk. A estética visual é coerente com o tom contestador da narrativa. Além disso, o uso de clímax visuais – como explosões de cor durante os shows – reforça a sensação de espetáculo político-musical.
Embora as músicas não agradem ao meu gosto pessoal, seu desempenho é impecável: a execução é técnica e energizada, com instrumentações e arranjos bem calibrados, vocais certeiros e presença de palco intensa. O compositor Michael “Mikey J” Asante firma uma sonoridade que pulsa, mesclando hip hop, punk e rap irlandês. Mesmo que o gênero não me emocione, é impossível negar a eficácia sonora e visual das performances.
O filme tenta ser politicamente incisivo: mescla protesto cultural, ativismo linguístico e críticas ao domínio britânico, sempre com uma postura provocativa e irreverente. A fala “every word of Irish spoken is a bullet for Irish freedom”, atribuída ao pai de um dos integrantes, resume esse tom carregado de simbolismo cultural. No entanto, essa potência política frequentemente se repete como slogan vazio: após três ou quatro repetições, aquilo parece mais autoindulgência do que profundidade. Ainda que a causa cultural seja nobre, sua expressão narrativa torna-se autoparódia.
Kneecap ganhou diversos prêmios, especialmente em festivais como o Sundance (NEXT Audience Award), Galway Film Fleadh (prêmio do público, melhor filme irlandês e melhor longa em língua irlandesa). No British Independent Film Awards, faturou sete troféus, incluindo Melhor Filme Independente Britânico. Nos IFTAs (prêmios irlandeses), venceu direçao, casting, figurino e edição. Recebeu ainda um BAFTA por Melhor Estreia de Diretor (Rich Peppiatt). Foi selecionado como candidato irlandês ao Oscar de Melhor Filme Internacional na edição de 2025, mas não chegou a ser indicado.
Apesar de seus flashes de genialidade técnica e visual, o filme tropeça em sua própria ambição narrativa. Uma experiência fascinante em pedaços, mas no conjunto, excessivamente arrastada e pouco envolvente.