Dolores Fonzi assina com Belén: Uma História de Injustiça um filme que quer ser ao mesmo tempo denúncia, reconstrução jornalística e litígio dramático — uma tentativa óbvia e admirável de transformar um caso real doloroso em narrativa cinematográfica capaz de emocionar e mobilizar. A partir de uma história já conhecida na Argentina — o episódio que abalou Tucumán, quando uma jovem foi acusada após um aborto espontâneo — Fonzi escolhe o ponto de vista da defesa para construir um thriller jurídico de tom militante, encenando o choque entre um sistema punitivo e corpos que exigem empatia.
A direção de Fonzi revela uma sensibilidade por planos que buscam proximidade com a intimidade das personagens, mas que muitas vezes caem perto do teleobjetivo moralizante. Há, no melhor do filme, sequências de hospital e prisão filmadas com uma frieza clínica que devolve ao espectador a sensação de claustro e de exposição: corredores iluminados por fluorescentes, closes que não perdoam, e uma mise-en-scène que transforma instituições em espaços de vigilância. Esses momentos funcionam porque a câmera se mantém contida, registra o rosto, a respiração, o gesto mínimo — decisões formais que humanizam e evitam o panfletar óbvio. Ao mesmo tempo, quando o filme tenta se ampliar — em discursos públicos, montagens de protesto ou longos interrogatórios midiáticos —, a direção prefere a contundência explícita. O resultado é fraturado: há cenas de grande impacto sensorial e outras onde a intenção política sufoca a narrativa.
No centro da peça está a protagonista que dá nome ao filme e, sobretudo, a figura da advogada que assume a luta. Fonzi, além de dirigir, interpreta a defensora — e é aqui que o filme ganha e perde. Sua atuação tem momentos de forte presença dramática: olhar determinado, retórica afiada, pequenas fragilidades íntimas que humanizam a militância. Em paralelo, a jovem interpretada por Camila Pláate constrói um personagem de grande economia expressiva — um rosto marcado pela dor e pela confusão, cujo silêncio muitas vezes comunica mais do que qualquer monólogo. A química entre as duas sustenta boa parte do filme e foi justamente reconhecida no circuito de festivais, com destaque para prêmios de atuação que chegaram a acompanhar a produção.
Tecnicamente, Belén é bem resolvido em pontos-chave: a fotografia tende para um naturalismo sombrio que acentua a austeridade do norte argentino, evitando o realismo social glamurizado; a edição busca um ritmo judicial — cortes secos em audiências, respirações mais alongadas nas células e encontros íntimos que deixam o espaço para a interpretação — e a trilha sonora aparece como elemento de tensão mais do que de preenchimento melodramático. Mas é justamente na escrita dramática que o filme oscila. O roteiro, colaborativo e baseado em material jornalístico, alterna sequências de investigação perspicazes com cenas de exposição didática que empobrecem o conflito. Em determinados trechos, o movimento narrativo prefere explicar ao invés de mostrar, e então perde a oportunidade de construir ambivalência: personagens secundários viram arquétipos, e nuances de contexto político são reduzidas a slogans.
A força política de Belén é inegável e faz parte do mérito do filme: ele recupera um caso que se tornou símbolo da luta pelos direitos reprodutivos e o apresenta como exemplo das contradições de um país que viveu retrocessos e avanços decisivos nos últimos anos. É legítimo — e necessário — que o cinema se envolva com esse tipo de tema. Todavia, o equilíbrio entre militância e dramaturgia não é sempre alcançado. Quando o filme opta pelo tom de proclamação pública, perde o risco narrativo que torna dramas judiciais realmente memoráveis: a dúvida, a complexidade moral, a falha do sistema mostrada sem folclorizar suas vítimas. Em outras palavras, Fonzi prefere denunciar com clareza a manipulação institucional do que explorar as zonas cinzentas onde muitas decisões humanas efetivamente residem.
Outro ponto ambivalente é o tratamento do poder midiático e do espetáculo do processo: cenas que mostram a cobertura jornalística e o tribunal público têm impacto imediato, mas por vezes caem em um tom exemplificativo — a montagem indica a intenção de provocar indignação sem necessariamente oferecer novos ângulos de reflexão sobre a responsabilidade coletiva. A construção do antagonista institucional é eficaz como símbolo, porém pouco inventiva dramaticamente; faltam camadas que expliquem, por exemplo, por que certos agentes se comportam como agem, além de simplesmente serem postos como representantes do conservadorismo. Ainda assim, a maneira como o longa mobiliza a comunidade e mostra redes de solidariedade é comovente e encontra na dramaturgia judicial momentos de tensão legítima: audiências bem coreografadas, depoimentos que despejam humanidade, e pequenas vitórias simbólicas que servem de catálise emocional.
No campo do impacto estético, Belén acerta ao manter a austeridade e ao evitar excessos formais — não há estilização gratuita nem efeitos de assinatura que distraiam da matéria humana. A câmera de Javier Juliá confere uma textura sóbria que ajuda a sustentar a verossimilhança do universo representado. Por outro lado, dificilmente o longa será lembrado por um virtuosismo plástico ou por reviravoltas narrativas inventivas; seu triunfo reside mais no recorte temático e na coragem de reencenar uma ferida nacional do que em soluções cinematográficas inéditas.
Em síntese, Belén: Uma História de Injustiça é um filme necessário e incompleto. Necessário porque recupera e catalisa um debate público que ainda reverbera; incompleto porque, nessa tradução do real para a ficção, Fonzi opta diversas vezes pela clareza retórica em detrimento da complexidade dramática. A obra comete o pecado — compreensível e comum no cinema de denúncia — de, às vezes, ensinar o que poderia mostrar; ainda assim, quando acerta, alcança a garganta: há sequências cujo desconforto político se converte em puro e eficiente cinema. Não é um filme perfeito, mas tampouco é indiferente; é um filme que empurra o espectador para a indignação com ferramentas cinematográficas na maioria das vezes honestas. E, em tempos em que a memória e a justiça parecem disputadas nas ruas e nos tribunais, essa honestidade já tem um valor inestimável.
Por fim, fica a sensação de um projeto com ambição legítima e execução desigual: Belén desperta empatia e reforça lutas, mas peca por vezes pelo excesso de zelo argumentativo. É um filme que se recomenda por compromisso ético e por atuações que, mesmo enclausuradas por um roteiro hesitante, atingem o que importa — a verdade humana por trás da manchete. E essa verdade, quando bem filmada, nunca é pouca coisa.
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