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julho 27, 2025

Kneecap: Música e Liberdade (2024)

 


Título original: Kneecap
Direção: Rich Peppiatt
Sinopse: Quando o professor JJ de Belfast conhece os autodeclarados “lixos humanos” Naoise e Liam Óg, nasce um trio de hip-hop jamais visto. Fazendo rap em irlandês, o Kneecap se torna o líder improvável de um movimento para salvar sua língua materna. Nesta cinebiografia hilária e altamente original do hip-hop, o Kneecap atua como eles mesmos, dando um grito de união global em defesa de culturas nativas.


Kneecap se apresenta como um filme ambicioso – até arrogante em sua proposta – um híbrido de documentário, cine-concerto e comédia-dramática política que tenta capturar o espírito rebelde da cultura jovem irlandesa. Com direção e roteiro de Rich Peppiatt, o longa aspira elevar-se a um nível de mito cultural. Porém, apesar de seus méritos técnicos, falha frequentemente em manter o espectador engajado emocionalmente, oscilando entre momentos de impacto e trechos cansativos.

A história de quase‑punks de Belfast que fogem da apatia pós‑Troubles é retratada com uma ambição visível: dar voz a uma geração que luta pela revitalização do idioma irlandês, enquanto cultivam seu som rebelde. Contudo, essa ambição flerta com arrogância. O roteiro repete padrões e clichês de histórias de bandas que trafegam entre crimes, drogas e prisão. Essa repetição — cena após cena — conduz o filme a um ritmo irregular. Há uma sensação de déjà vu contínuo, como se estivéssemos assistindo mais uma versão genérica de jovens rebeldes em busca de “liberdade”, mergulhados no mesmo ciclo de excessos e prisão, sem real profundidade nas contradições pessoais.

Um dos recursos centrais da pegada realista do filme é o fato de os integrantes da banda Kneecap interpretarem a si mesmos na tela — algo que só descobri após terminar a sessão. Essa escolha confere ao trio uma veracidade incrível: suas raivas, atitudes e performances ganham um peso de biografia vivida. A caricatura de identidade cultural, a agressividade punk e a fluidez entre idioma gaélico e inglês emergem de maneira crua e genuína. Isso torna os três protagonistas surpreendentemente sólidos onscreen, apesar de não serem atores profissionais. Ainda assim, o esforço de autenticidade não é acompanhado por aprofundamento emocional — o que limita o impacto dramático de suas jornadas individuais.

Um dos pontos fortes inegáveis é a montagem: assinada por Julian Ulrichs e Chris Gill, é extraordinariamente dinâmica nos momentos de música, performance e sequências de ação. Cenas de raves, shows e perseguições ganham um ritmo pulsante, quase musical – fazendo o espectador sentir o tempo da pista. Há cortes sutis e criativos, slow‑mo e animações grafitadas que evocam um clima de videoclipes urbanos. Ainda assim, esses lampejos de energia são intercalados por segmentos que se arrastam — especialmente diálogos prolongados que não conduzem a lugar nenhum. O contraste entre a agilidade da edição e os momentos de lentidão é tão radical que chega a evidenciar o próprio problema de ritmo do filme – ótimo tecnicamente em partes, débil dramaticamente em outras.

A cinematografia de Ryan Kernaghan usa uma paleta fria, com luzes de néon e cenários urbanos que evocam tanto Belfast quanto as contraculturas punk. A estética visual é coerente com o tom contestador da narrativa. Além disso, o uso de clímax visuais – como explosões de cor durante os shows – reforça a sensação de espetáculo político-musical.

Embora as músicas não agradem ao meu gosto pessoal, seu desempenho é impecável: a execução é técnica e energizada, com instrumentações e arranjos bem calibrados, vocais certeiros e presença de palco intensa. O compositor Michael “Mikey J” Asante firma uma sonoridade que pulsa, mesclando hip hop, punk e rap irlandês. Mesmo que o gênero não me emocione, é impossível negar a eficácia sonora e visual das performances.

O filme tenta ser politicamente incisivo: mescla protesto cultural, ativismo linguístico e críticas ao domínio britânico, sempre com uma postura provocativa e irreverente. A fala “every word of Irish spoken is a bullet for Irish freedom”, atribuída ao pai de um dos integrantes, resume esse tom carregado de simbolismo cultural. No entanto, essa potência política frequentemente se repete como slogan vazio: após três ou quatro repetições, aquilo parece mais autoindulgência do que profundidade. Ainda que a causa cultural seja nobre, sua expressão narrativa torna-se autoparódia.

Kneecap ganhou diversos prêmios, especialmente em festivais como o Sundance (NEXT Audience Award), Galway Film Fleadh (prêmio do público, melhor filme irlandês e melhor longa em língua irlandesa). No British Independent Film Awards, faturou sete troféus, incluindo Melhor Filme Independente Britânico. Nos IFTAs (prêmios irlandeses), venceu direçao, casting, figurino e edição. Recebeu ainda um BAFTA por Melhor Estreia de Diretor (Rich Peppiatt). Foi selecionado como candidato irlandês ao Oscar de Melhor Filme Internacional na edição de 2025, mas não chegou a ser indicado.

Apesar de seus flashes de genialidade técnica e visual, o filme tropeça em sua própria ambição narrativa. Uma experiência fascinante em pedaços, mas no conjunto, excessivamente arrastada e pouco envolvente.

julho 17, 2025

Wallace & Gromit: Avengança (2024)

 


Título original: Wallace & Gromit: Vengeance Most Fowl
Direção: Nick Park, Merlin Crossingham
Sinopse: Uma invenção tecnológica de Wallace sai do controle, e ele é acusado de uma série de crimes suspeitos. Então, o cachorro Gromit entra em ação para salvar o tutor.


Wallace & Gromit: Avengança, dirigido por Nick Park e Merlin Crossingham, é verdadeiramente uma delícia de se ver — um oásis em meio à avalanche de animações 3D que dominam com personagens quase sempre idênticos e movimentos irreais. A cada frame de massinha que ganha vida, lembramos por que o stop‑motion artesanal tem alma própria, algo que nenhuma renderização digital, por mais cara, consegue imitar.

A Aardman Animations volta firme com sua técnica de claymotion: cada personagem, cada ambiente, cada olhar expressivo — tudo construído e filmado quadro a quadro. A textura da massinha, os sutis detalhes de impressão digital e até a leve oscilação dos móveis conferem uma autenticidade sensorial ausente em produções modernas em CGI. Essa precisão artesanal eleva o filme a um status quase tátil, um contraste refrescante frente ao visual genérico das animações 3D. Filmado em 79 minutos, com ritmo bem calibrado, o longa explode em ritmo, mas sem exagero visual — ainda que alguns críticos tenham notado uma leve arrastada na exposição inicial.

Aqui restaura‑se o espírito original de Wallace & Gromit: uma narrativa engenhosa, construída sobre gags visuais, trocadilhos britânicos irreverentes e referências clássicas — desde Missão: Imposível até Alien e a estrutura de perseguição ferroviária do curta deles, Calças Erradas. A trilha sonora de Lorne Balfe, respeitando os temas de Julian Nott, embala as sequências com leveza e elegância, reforçando o ambiente caprichado que só a Aardman oferece.

Feathers McGraw retorna como um vilão irresistivelmente silencioso. Utilizando manipulação robótica de gnomos e um plano de vingança contra o “Blue Diamond”, o pinguim domina a tela com presença e timing perfeitos — cada aparição sua é instantaneamente memorável.

Wallace constrói o robô Norbot para auxiliar em tarefas domésticas, mas o excesso de eficiência transforma o jardim de Gromit em um conjunto geométrico estéril — uma metáfora visual clara contra a tecnologia que desumaniza. Quando Feathers reprograma Norbot para o lado sombrio, a mensagem fica explícita: a criatividade humana e a afeição não podem ser substituídas por autômatos. É um alerta suave, mas carregado de bom senso e humor.

Com 100% de aprovação no Rotten Tomatoes, o filme foi saudado como “confortável como queijo com biscoitos” e capaz de reviver o espírito dos primeiros clássicos de Wallace & Gromit. Críticos apontaram que, embora a narrativa inicial fosse um pouco lenta, a partir do momento em que Norbot entra em cena, o filme engrena num ritmo dinâmico e satisfatório. 

Fãs dedicados chegam a considerá-lo um dos melhores do ano, se não o melhor filme de Wallace & Gromit já feito, rivalizando diretamente com Calças Erradas.

Em sua temporada de premiações, Wallace & Gromit: Avengança concorria ao Oscar de Melhor Filme de Animação em 2025, entre os indicados: Divertidamente 2, Memórias de um Caracol, Robô Selvagem e Flow — este último vencedor da estatueta, tornando-se o primeiro longa animado da Letônia a ganhar um Oscar.

Embora Flow tenha sido louvado por sua sensibilidade minimalista e por ser uma animação independente, o triunfo é, na prática, uma injustiça para um filme que junta técnica artesanal, humor refinado, narrativa emocional e originalidade. Wallace & Gromit: Avengança é, em todos os aspectos — composição visual, timing cómico, relevância temática e afetividade — infinitamente superior às suas concorrentes. Comparado a Divertidamente 2, que embora seja vibrante e tecnologicamente impressionante, carece do calor humano e da originalidade palpável que a massinha oferece. E em contraste com Memórias de um Caracol ou Robô Selvagem, que apostam em metáforas filosóficas, o longa da Aardman entrega tudo isso em forma de diversão pura e sensorial. Quem venceu talvez tenha encantado alguns jurados, mas, para quem entende de animação como arte, a verdadeira vitória está aqui: em cada frame milimetricamente construído, em cada silêncio expressivo, na química brilhante entre inventor e cão.

Este filme não é apenas um retorno aos primórdios da animação artesanal, mas uma reafirmação de que o cinema pode ser charmoso, humano, divertido e tecnicamente primoroso sem cair na armadilha do digital homogêneo. É um sopro de frescor em meio a uma paisagem saturada por CGI. Trata‑se de uma obra que merece ser celebrada não por nostalgia, mas por sua força própria: é cinema de animação na sua forma mais pura — criativo, artesanal, emocional e absolutamente irresistível.

O Enfermeiro da Noite (2022)

 


Título original: The Good Nurse
Direção: Tobias Lindholm
Sinopse: Suspeitando que seu colega é responsável pelas mortes misteriosas de pacientes, uma enfermeira sobrecarregada arrisca sua própria vida para descobrir a verdade.


O Enfermeiro da Noite chega com aquela estética inconfundível dos filmes da Netflix: bem executada, limpa, discreta. Um suspense mais “bonzinho” do que impactante — nem ruim, nem memorável. A produção é tecnicamente competente: direção sóbria, fotografia fria, som comedido, montagem funcional e atuações contidas. Mas, no fim das contas, entrega uma experiência segura e medianamente envolvente, ideal para quem quer passar o tempo sem grandes exigências.

Tobias Lindholm, diretor dinamarquês com bagagem de A Caça e colaborador de Thomas Vinterberg, adota uma abordagem quase procedural para contar o caso real de Charles Cullen. A fotografia de Jody Lee Lipes cria corredores e quartos com atmosfera azulada ou esverdeada, reforçando a frieza hospitalar e a melancolia, mas a iluminação frequentemente plana subtrai profundidade visual aos personagens. O uso de luz reduzida ou ausência total de trilha sonora nos momentos de tensão lembra trabalhos de Fincher — mas sem a ousadia de narrativa ou estética desse estilo.

A música, assinada por Biosphere, pouco aparece até os momentos-chave, mas quando surge traz uma atmosfera ambiente que encorpa a tensão de maneira discreta. A montagem de Adam Nielsen é funcional — mas sofre em algumas transições abruptas e cortes que parecem preencher tempo demais ou acelerar onde não deveria.

Como acontece em quase qualquer filme que ele participa, Eddie Redmayne entrega o destaque absoluto. Como Charles Cullen, seu olhar doce esconde uma inquietante ambiguidade: vulnerável, solitário, e perturbador quando necessário. Ele estudou movimentos e voz com afinco, trazendo ao papel uma camada ambígua entre empatia e ameaça — e seu desempenho chega a dar arrepios na cena final de interrogatório. Ele equilibra a imaculada aparência de enfermeiro prestativo com flashes de algo sombriamente calculista.

Jessica Chastain, no papel da enfermeira Amy Loughren, traz firmeza e empatia. Sua atuação é comovente, especialmente nos trechos em que lida com sua condição cardíaca não revelada e ainda toma a coragem de enfrentar Cullen por altruísmo e dever. Mas não chega a roubar completamente a cena de Redmayne, que carrega quase todo o peso dramático.

O grande problema do filme é o roteiro escrito por Krysty Wilson‑Cairns. Embora bem construído dentro da proposta procedural, ele não investe na psique de Cullen — nem explora aspectos de sua vida pessoal, deixando-o em parte como uma versão de Norman Bates da saúde. O espectador tem pouco acesso ao que motivou o serial killer a cometer até centenas de mortes, ou à sua angústia interior. A narrativa se concentra na perspectiva de Amy e dos policiais, reduzindo Cullen a um enigma frio, sem camadas mais humanas ou complexas.

A sensação é de que o roteiro segue fielmente a estrutura do livro e do caso real, mas sem ousar nas escolhas dramáticas. Faltam momentos que pudessem tornar Cullen um personagem multifacetado — como vimos por exemplo em Dahmer, onde o assassino ganha nuances perturbadoras e íntimas. Em vez disso, lineares procedimentos, depoimentos, investigações discretas — simplesmente não há espaço para explorar traumas, família, história anterior do personagem.

Apesar de tratar-se da história de um assassino, o filme não mostra violência explícita. Não há cenas de abuso, tortura, sangue — tudo é sugerido. Esse enfoque pode frustrar quem espera uma elaboração mais crua da realidade. Por outro lado, para aqueles que preferem evitar cenas gráficas, O Enfermeiro da Noite oferece um suspense sem violência explícita, mantendo-se contido no extremo, ainda que por vezes excessivamente distante emocionalmente. Essa escolha narrativa reforça que o longa é para se ver sem pretensão: ele entretém, mas sem impactar — ideal para quem quer apenas passar o tempo.

O ritmo arrastado e a estrutura episódica lembram um episódio longo de Grey’s Anatomy, mas sem o calor humano ou os conflitos pessoais dos personagens. Se o roteiro tivesse se dedicado à vida pessoal de Cullen — seu divórcio, relacionamento com filhas, crises psicológicas — o resultado poderia ser mais envolvente. Mas a narrativa tem escolhas restritivas que priorizam procedimento e investigação. Se houvesse espaço para revelar a humanidade distorcida de Cullen, daí sim poderíamos ter um personagem com complexidade semelhante à representação de Dahmer na série homônima.

No final, O Enfermeiro da Noite se encaixa perfeitamente na fórmula “Netflix de qualidade média”: tecnicamente impecável, visual conservador, atuações de peso, mas sem risco. O tom “bonzinho” se sustenta: o filme não tem os defeitos graves de produções mal feitas, mas também não traz aquela centelha de originalidade ou profundidade. A direção de Lindholm é segura, o elenco cumpre bem o papel — especialmente Redmayne. Mas o roteiro não estende a mão para nos fazer mergulhar no caso, limitando-se a cumpri-lo com eficiência e distanciamento emocional.

O Enfermeiro da Noite é uma produção para assistir sem grandes expectativas: interessante o suficiente para prender numa tarde preguiçosa — mas não para deixar marca. Uma história inquietante de um assassino que passou despercebido por anos poderia ter sido um retrato perturbador e complexo da natureza humana — mas acaba como um suspense leve, quase como um episódio estendido de uma série hospitalar. Se você quer uma representação nua e crua da barbárie, aqui não encontrará — e isso é uma decepção, considerando o potencial sombrio da trama. Mas se deseja ver um filme bem atuado, com clima contido e investigação tensa, ele cumpre bem o propósito.

julho 16, 2025

Sovereign (2025)

 


Título original: Sovereign
Direção: Christian Swegal
Sinopse: Pai e filho, que se identificam como Cidadãos Soberanos, um grupo de extremistas antigovernamentais, se veem em um impasse com um chefe de polícia, o que dá início a uma caçada humana.


Christian Swegal já impressiona logo em sua estreia com Sovereign, um thriller criminal profundamente perturbador que reverbera como uma distopia familiar ambientada no coração da América contemporânea. Baseado nos eventos reais que levaram ao tiroteio no Arkansas em 2010 envolvendo Jerry e Joe Kane, o filme mergulha na ideologia dos “sovereign citizens” — indivíduos que acreditam ter renunciado sua cidadania, negando a legitimidade do Estado e suas leis.

A ideia central do filme — de que nascemos livres e nunca assinamos contrato algum com o Estado para que ele governe nossas vidas — transforma-se em premissa basal da narrativa. É curioso, quase coincidência, que seja a mesma noção que eu mesmo compartilhe. Contudo, Sovereign vai além: Jerry Kane (Nick Offerman) leva esse princípio ao extremo. Ele deseja “catequizar” o filho Joe (Jacob Tremblay) num estilo de vida que se revela progressivamente destrutivo. A radicalização paterna — a crença de que o Estado é ilegítimo, de que a liberdade se conquista pela recusa total — atinge níveis que escalonam emocionalmente até o confronto violento final.

O longa deixa claro que, ironica­­mente, não há soberania individual: nascemos presos dentro de um Estado — um cárcere a céu aberto onde as únicas opções são: baixar a cabeça ou morrer. A atmosfera cinzenta, os motéis baratos, as estradas sombrias captadas pela câmera de Dustin Lane são metáforas visuais eficazes para essa prisão sutil e onipresente . Não há, de fato, soberania do indivíduo — e o título do filme serve como ironia amarga: o soberano não é livre.

O roteiro estabelece desde o início uma narrativa paralela poderosa entre dois conjuntos familiares - a família Kane, onde Jerry e Joe vivem em isolamento, viajando pelos EUA dando seminários sobre como driblar a autoridade e escapar de hipotecas — uma forma perversa de evangelho soberano. Joe, em estado de transição entre o cativeiro ideológico do pai e seu próprio desejo de vida autônoma, é o centro emocional da trama.

E temos a família Bouchart, onde Dennis Quaid interpreta o chefe de polícia Jim Bouchart, cujo filho Adam (Thomas Mann) recém-graduado da academia de polícia traz à tona um modelo de relação paternal rígido, mas institucionalmente legitimado — o oposto dos Kanes. É um contraponto moral que se convergirá com o destino dos protagonistas num clímax inevitável, lembrando estruturas narrativas como Crash: No Limite (2004), embora com uma abordagem mais direta e menos simbólica.

Essa estrutura dual é impecável em seu arco evolutivo, costurando o radicalismo e as falhas de Jerry com a rigidez institucional de Bouchart até convergirem no confronto final.

A cinematografia de Dustin Lane é soberba na escolha da paleta dessaturada e nos enquadramentos amplos que revelam o vazio emocional e físico das cenas. Às vezes, longos planos fixos desafiam o espectador a contornar o tédio — mas esse minimalismo reforça o impacto emocional quando ocorre o clímax.

A trilha sonora de James McAlister é delicada, funcionando como contraponto aos temas violentos do roteiro. Usa silêncio estrategicamente: nas cenas cruciais, a ausência de música permite que o espectador absorva o peso dramático sem manipulação sonora excessiva.

Nick Offerman, como Jerry Kane, brilha na construção de um personagem paradoxal: carismático, fanático, fraturado pelo luto e pela convicção ideológica. Sua performance resgata ecos de Ron Swanson para mostrar um homem dominado pelo próprio discurso, cada vez mais desconectado da realidade — é uma das mais poderosas até agora em sua carreira.

Jacob Tremblay, como Joe Kane, entrega um trabalho verdadeiramente magistral. Adolescente privado de interações sociais comuns — sem escola, sem redes sociais, sem amigos — Joe vive uma melancolia interna palpável; seu desejo de normalidade (de se apaixonar no Facebook, de estudar numa escola pública) contrasta com o mundo imposto por Jerry. Tremblay personifica esse conflito com sutileza e profundidade emocionais, tornando o sofrimento do personagem intensamente real e tocante.

Dennis Quaid, como Jim Bouchart, completa o elenco com uma atuação firme e realista. Sua dinâmica com o filho Adam oferece contraponto ao discurso autoritário dos Kanes, embora o filme não aprofunde tanto essa relação quanto poderia. Mesmo assim, o significado simbólico da dualidade entre essas figuras paternas amplia a tensão moral da trama.

Sovereign pode tocar especialmente minorias e grupos oprimidos, encontrando eco nos temas apresentados: religiões ou seitas que proíbem comportamentos normais (namorar, estudar, socializar) encontram paralelo em como Jerry impõe restrição total sobre Joe. Esse ostracismo ideológico e isolacionismo autoimposto ressalta como certos sistemas – voluntários ou forçados – podem tornar uma vida comum em uma prisão ideológica.

Além disso, a narrativa evidencia como traumas e colapsos sociais podem levar pessoas a movimentos extremos — exatamente o tipo de grupos que usam pseudo-legalismos para fugir de uma sociedade que, na visão dos próprios, os abandonou. Essa ponte entre o arquétipo anárquico de Jerry e religiões ou seitas restritivas torna o filme universalmente afetivo para quem já viveu formas de opressão paternalista ou institucional .

Sovereign me comoveu profundamente. A forma como mistura extremismo, trauma familiar e a busca desesperada por liberdade interior reverbera em camadas pessoais — especialmente para quem já cruzou com figuras parecidas com os Kanes na vida real. A sensação é de ver uma micro‑cinebiografia dessas vidas marcadas por discursos de liberdade que acabam em destruição.

Embora alguns críticos questionem a abordagem “apolítica” de Swegal — que opta por empatia sobre condenação explícita, evitando demonizar completamente Jerry — essa decisão narrativa fortalece o filme como um estudo de caso, não propaganda. Não apresenta respostas fáceis; apresenta esse mundo radical e deixa que cada espectador reflita sobre suas raízes e consequências.

É necessário salientar que Swegal controla com seguridade o tom, mesmo que em alguns momentos o ritmo pareça lento, especialmente na primeira metade. A construção cuidadosa de diálogo, a escolha de planos longos e a restrição emocional provocam uma sensação de claustro ideológico que antecede o desmembramento. Embora isso possa frustrar espectadores mais acostumados a thrillers mais dinâmicos, é uma escolha coerente com o conteúdo introspectivo do filme.

O roteiro não cansa de expor motivações e fraquezas: Jerry como vítima dos bancos e do luto; Joe como a ponte entre o apelo da liberdade e o desejo de pertença. Ao mesmo tempo, as tramas secundárias envolvendo a família Bouchart funcionam como contraponto moral e tensional, mesmo que seu desenvolvimento narrativo seja menos robusto — mas com papel importante para convergir os universos no ato final.

Sovereign é um filme de maturidade rara para uma estreia. Christian Swegal entrelaça elementos técnicos e artísticos — cinematografia sóbria, trilha silente, atuações memoráveis e estrutura narrativa dual — para oferecer uma poderosa reflexão sobre liberdade, controle e a forma como ideologias podem aprisionar indivíduos sob o disfarce de emancipá‑los.

Não é um filme fácil, e nem pretende ser. Mas a clareza com que expõe sua premissa (a liberdade não é real; nascemos presos) e a forma como dramatiza a doutrinação ideológica do pai sobre o filho fazem deste longa um espelho brutal sobre como famílias podem desconectar-se do mundo em nome de uma “soberania individual”.

Para aqueles que viveram proximidades com figuras como Jerry e Joe Kane, é quase como revisitar uma biografia emocional pessoal — uma cinebiografia íntima de tragédia e apego mascara­da de emancipação. Nem todos concordarão com uma avaliação tão elevada, mas é impossível negar o poder evocativo do filme.

Christian Swegal oferece aqui um retrato urgente e doloroso, não de um horror sobrenatural, mas do horror psicológico e social de acreditar que a liberdade vem do isolamento. Sovereign é, sem dúvida, uma das obras mais impactantes dos últimos tempos — tensa, sensível e inesquecível.

Apocalipse nos Trópicos (2025)

 


Título original: Apocalipse nos Trópicos
Direção: Petra Costa
Sinopse: Quando uma democracia termina e uma teocracia começa? O documentário investiga a crescente influência que líderes evangélicos exercem sobre a política brasileira. Entrelaçando passado e presente, apresenta um espelho inquietante para o resto do mundo.


Quando Petra Costa empunha a câmera em Apocalipse nos Trópicos, ela faz o de sempre: qualidade técnica nos mesmos moldes do cinema documental brasileiro contemporâneo. A fotografia é bem cuidada, o drone é usado, a montagem é ágil e a trilha tem clima sóbrio. Mas honestamente? Nada que a gente não tenha visto em documentários brasileiros de qualidade nos últimos dez, quinze anos — um estilo já trivial; competente, mas, sinceramente, sem brilho.

Ao longo do filme, Petra repete a receita que aplicou em Democracia em Vertigem (2019): cortes precisos, imagens aéreas elegantes, voice-over reflexivo. Mas se Democracia já beirava o panfleto velado, aqui em Apocalipse nos Trópicos ela empurra o discurso goela abaixo, sem nenhum esforço para fingir neutralidade. A técnica continua firme — e serve para fazer panfletagem: ela não faz nada mais, nem nada menos do que seus pares fazem.

Aqui, uma das coisas que mais me marcou foram os dois cafés da manhã, construídos como espelho da polarização brasileira para incitar negativamente o espectador. Do lado evangélico - mesa farta, novela das 9, louça de cristal, travessas impecáveis com pães e bolos, bule refinado. Petra dedica um plano fixo, calado, dando tempo para o expectador engolir: “esse é o paraíso da ostentação”. Essa imagem, por si só, já grita “esses cristãos são ricos, poderosos, descaradamente exibidos”. Ao fundo, trilha sutil, mas suficiente para intensificar o contraste moral sugerido. Do outro lado — Lula: café simples, passado na cozinha, pão com manteiga, mesa pequena, casaquinho discreto do Corinthians, clima de singeleza. Lula aparece silencioso, quase sóbrio, critica até mesmo o socialismo. A câmera chega bem perto, mas sem drama, criando identificação. A mensagem óbvia: humilde é bom, poderoso e religioso é vilão.

No mesmo estilo das novelas da Globo, mas com discurso documental, Petra faz do café da manhã um símbolo: Deus está com Lula. Pura montagem emocional com dentes de plasticidade.

O que mais incomoda — e deveria incomodar — é o tom de escárnio dirigido aos evangélicos e demais cristãos. A direção é deliberadamente sarcástica ao apresentar Silas Malafaia. A própria escolha de cena (som de riso cortado bem na fala dele, ritmo de montagem cômica) faz com que qualquer espectador assista à fala do pastor como se fosse piadinha. "Olha esse cara, ridículo. Rindo de Deus!" — parece ser o recado. 

Quando a turma entra no campo político, Petra usa imagens de eventos evangélicos recheadas de deboche que lembram o estilo do CQC. A técnica documental se transforma em arsenal de humilhação. A própria Petra não tem qualquer vivência com fé: assumiu que não tinha lido uma linha da Bíblia. E ainda assim se coloca como autoridade para “explicar” o fundamentalismo. Só pode ser prepotência ideológica — tipo “eu vi do alto, agora venho julgar em baixo”.

O filme tem um tom moralizante, como se ela dissesse: “Vocês desavisados, enganados, ignorantes. Fiz esse documentário pra vocês verem como são idiotas”. Sem nenhum recato. Se isso fosse aplicado à fé de matriz africana, seria tratado como xenofobia e teria reação imediata. Mas no caso dos evangélicos, tudo bem, é permitidíssimo zombar — normal, aceitável. Por que essa assimetria moral?

O filme fala de política mas é quase um editorial politico disfarçado de investigação. Critica abertamente pastores que ajudaram Bolsonaro, reforçando a narrativa de apocalipse moral que supostamente os evangélicos teriam causado no país. Isso sem trazer vozes diferentes, sem pluralidade — é apenas coro de reprovação.

Essa postura dá margem para que o filme faça o trabalho contrário ao pretendido: em vez de convencer, ele inflama. Fortalece o discurso de que “a Globo e os intelectuais querem varrer a religião do Brasil”. E fortalece o eleitorado de direita, que se sente agredido. E a diretora usa e abusa do voice over exatamente de diversos telejornais da Rede Globo.

A ligação forçada entre evangélicos e militares, com cortes para imagens de padres apoiando a ditadura, é uma medida desesperada. Fora que petardo já manjado: “militares = religiosos = ditadura = vilões”. Narrativa repetida. Não acrescenta análise histórica, apenas acusação fácil e barata. Sergio Moro é ignorado no nome — “um juiz que depois foi Ministro da Justiça”. É sutil, mas clareia quem é alvo: a direita inteira. Em contrapartida, Lula é elevado como símbolo de redenção — mesmo com sua trajetória tumultuada, aparece apagado, quase ingênuo. 

Petra, ao enquadrar e as esquerdas, faz um enquadramento limpo, fotos longas, trilha suave. É gente que sofre, que pensa, que dialoga. Aparece com semblante sério e tom empático. Costuma ser gente “bem-intencionada”, que a diretora quer que nós tenhamos empatia. Já com os cristãos e a direita, cortes secos, sons distorcidos, montagem clássica de comédia pastelão. Imagens de pregações épicas de fake-humor, cenas de pastores gesticulando, vozes pausadas com eco — tudo para gerar vergonha alheia. Não importa a figura, o que importa é ridicularizar.

Petra quer ser crítica, mas fraseia como “olha essa gente confunde política com fé, acha que Deus aprova tudo, ri fácil da guerra cultural”. Quando você zomba da fé dos outros, você gera barricadas de ódio — e eles reagem. Não é desejável. O documentário deveria, ao menos, conscientizar. Mas Petra põe pessoas num pedestal e joga outras no lixo. Em vez de provocar diálogo, provoca discórdia. Os evangélicos atacados vão dizer “vimos que eles querem calar nossa voz”. Isso reforça o sentimento de perseguição, e aí a reação é mais radical ainda. Petra, sem querer, alimenta uma bolha.

E a técnica? Sim, a cara é bonita: câmera limpa, drone, transição bem feita. Roteiro costurado em off, algumas imagens realmente bonitas. Mas é o mínimo exigível hoje. A partir do segundo ato, parece que a técnica serve só pra mostrar cenário da ostentação e enviar estiletes sobre os alvos. Petra passa a explorar para realçar o contraste emocional, e até aí são artifícios já batidos — nada que surpreenda ou renove. No fundo, ela só replica o que muitos documentários "de esquerda" já fizeram para “expor” os cristãos: copiou estética, técnica, pattern narrativo de "inconveniência" moral. O diferencial? Ziriguidum ideológico.

Apocalipse nos Trópicos é um filme que mina sua própria credibilidade ao usar técnica avançada para operar um julgamento moral e ideológico. Petra Costa, que nasceu fora da religião, assume papel de dona da verdade, enquanto faz pouco caso da fé alheia usando montagem agressiva e postura moralista. Círculos mais moderados vão achar o filme óbvio, raso e provocador. A própria diretora entrega panfleto, e isso não está errado por si só — mas se deslegitima como documentário, rompe a fronteira entre questionamento e pedra atirada.

O problema maior: Petra faz um show de escárnio dos cristãos. E isso é imperdoável. O documentário poderia ser um alerta, uma investigação aberta, mas escolhe atacar — com deboche, risinho falso, montagem cortante — aqueles que têm crença religiosa, como se fé fosse justificativa para falácia moral. No fim das contas, ela se contradiz: quer combater uma “farsa política”, mas constrói a sua própria, simplista. Conclui repetindo o medo que pretende combater: “Eles vêm aí. É apocalipse”.

Tudo bem fazer documentário com opinião. Mas se sua intenção é provocar pensamento — ótimo. Não se disfarce de jornalismo. Fazer rir da fé de milhões não é debate, é abuso. E Petra faz disso espetáculo. Quando a técnica é sofisticada, mas só serve para mostrar quem é mocinho e quem é vilão segundo o gosto da diretora, ela se torna mera moeda de transição do ódio — e não instrumento de construção de sociedade.

Petra Costa tem talento técnico — e isso vale uma estrelinha. Mas o resto? É apocalipse moral — trágico, raso e medido pelo cinismo de quem não acredita no diálogo, mas só quer uma plateia que ria junto com ela. Qualquer criança sabe rir sozinho, mas precisamos ter inteligência para aprender a rir — e mais ainda para não rir de um segmento da população. E Petra esqueceu essa parte.

julho 07, 2025

F1: O Filme (2025)

 


Título original: F1
Direção: Joseph Kosinski
Sinopse: Sonny Hayes, a lenda do automobilismo, é persuadido a deixar a aposentadoria para liderar uma equipe de Fórmula 1 em dificuldades - e ser mentor de um jovem piloto famoso - enquanto busca mais uma oportunidade de glória.


F1: O Filme, dirigido por Joseph Kosinski (Top Gun: Maverick), é um placar técnico digno de nota — para fãs de cinema e de automobilismo. Filmado em nove Grandes Prêmios reais como Silverstone, Spa, Monza, Abu Dhabi e COTA (Austin), o longa evoca uma sensação de presença incomparável — como se estivéssemos nos boxes, nos paddocks, em meio ao ruído dos motores e à vibração dos pneus na pista.

Kosinski e o editor Stephen Mirrione criam uma edição que merece elogios efusivos. Cenas de alta velocidade são intercaladas com tomadas do garimpo tático nos bastidores, criando tensão palpável. A montagem sonora — a assinatura conjunta de Ryan Tudhope e da equipe de som — traz camadas texturais: dos estalos dos amortecedores aos murmúrios da rádio, tudo converge para que o espectador não apenas assista, mas sinta cada curva. Em nenhum outro filme esportivo — e, ouso dizer, nenhum sobre a F1 — a fusão de edição e som chega a esse patamar de realismo.

A trilha original, composta por Hans Zimmer e Steve Mazzaro, é híbrida — sinfônica e eletrônica — como pede o DNA da F1. O uso de instrumentos humanos (guitarras, cordas) contrapõe-se à eletrônica vinda dos monitores digitais das equipes, refletindo essa dualidade homem vs. máquina. Itens como o motivo “gunslinger” de Sonny Hayes funcionam como assinatura emocional. A coletânea extraída de F1 the Album incorpora nomes como Doja Cat, Don Toliver, Ed Sheeran e Tiësto — esse último não só com faixas eletrizantes (“OMG!”, “Drive”) mas com uma participação cameo, validando ainda mais a verossimilhança sonora e cultural. Arranjos envolventes e precisos, alta recepção crítica e sensação de que todos os prêmios técnicos de 2025 ficam curvados diante dessa partitura.

O roteiro de Ehren Kruger, ainda que previsível — a redenção, o mentor veterano, o novato impetuoso — carrega o beneplácito do bom entretenimento clássico de Hollywood. Sabemos desde a largada que Sonny Hayes (Brad Pitt) encontrará redenção e que a equipe APXGP resgatará a esperança. Porém, a força narrativa está no ritmo, nos detalhes humanos dos bastidores, na pressão dos patrocinadores e nas emoções à flor da pele. Aqui, o clichê deixa de ser falho e se torna funcional — o espectador aceita o roteiro em nome do espetáculo, e não se importa de seguir o jogo bem delineado.

Para os aficionados por Fórmula 1, o filme entrega detalhes técnicos (pitstops, pressões de pneus, estratégias de corrida) mas acelera nas explicações, tornando-se por vezes superficial. Já os novatos encontrarão uma propaganda vibrante da modalidade, com noções suficientes para emergir no universo da F1 — um acerto como vitrine. A presença massiva dos patrocinadores, o branding vestido em cada pista, em cada capacete, em cada bandeira, faz do filme um comercial glamouroso — embora muitas vezes invasivo.

O longa incluiu com inteligência a participação dos maiores nomes da atualidade: Lewis Hamilton, Max Verstappen, Fernando Alonso, entre outros. A cena em que o público improvisa gritos nos cinemas — foi registrado no COTA e em exibições (inclusive na minha!) — cria uma ponte entre o universo fictício da história e a realidade das arquibancadas. Hamilton também figura como coprodutor: sua influência é sentida na autenticidade dos boxes e na relação hierárquica entre chefes, engenheiros, mecânicos e pilotos.

Raramente um filme sobre Fórmula 1 se arriscou tanto em expor a pressão humana por trás da fachada de glória. Aqui, a elite esportiva é mostrada em suas fragilidades: o medo de errar, o peso das expectativas, a crônica da falha permanente — até para aqueles que têm tudo. É um retrato fascinante da elite impiedosa, vulnerável e, paradoxalmente, comum.

Com 2h36min, o filme se alonga mais que uma temporada média da F1 — especialmente em trechos de estratégia, reuniões de boxes longas e interlúdios promocionais. Um corte de meia hora não sacrificaria conteúdo, deixando o resultado 100% eficaz e ainda mais ágil.

Brad Pitt volta ao arquétipo do herói carismático, como Carson Dawes em Era Uma Vez em Hollywood, porém menos irônico e mais intenso. Ele incorpora Sonny Hayes com carisma, vulnerabilidade e credibilidade — não é o topo da atuação, mas seu carisma sustenta o filme. Damson Idris interpreta Joshua Pearce, o novato ambicioso, com energia juvenil. Caricatural em certos momentos — o típico rookie impulsivo — funciona como contraponto para a sabedoria “gasta” de Hayes.

Javier Bardem é um espetáculo à parte. Seu Ruben Cervantes é eloquente, vulnerável no discurso estratégico, enfim, mais polido no tom dramático, ainda que um tanto raso em construção. A diretora técnica Kerry Condon desempenha uma performance sólida no papel da engenheira de equipe e interesse romântico — fluida, precisa, conduz o equilíbrio entre cena íntima e clima de tensão.

O elenco de apoio — Tobias Menzies, Kim Bodnia, Sarah Niles — reforça a estrutura sem errar o tom, sempre nos caixas laterais de câmera, mas sempre presentes quando a narrativa exige o contraponto humano.

O supervisor de efeitos visuais Ryan Tudhope, com o estúdio Framestore (de Londres e Mumbai), entregou um feito técnico notável. As sequências de corrida, com imagens captadas em IMAX e câmeras onboard reais a mais de 290 km/h, mesclam-se com CGI de alta fidelidade: você não sabe onde termina a pista real e começa o digital. O design dos carros da APXGP, inspirado em Santiago Calatrava, eleva a estética automotiva do filme. Em conjunto com a edição espiralada e a sonoplastia cirúrgica, isso tudo converge num entretenimento completo para qualquer plateia — mesmo leiga aos termos técnicos — e, ainda assim, magnético e cinematográfico.

F1: O Filme é um grande espetáculo técnico, um cinema imersivo que faz o coração de quem gosta de velocidade bater mais forte. Por outro lado, é também uma propaganda caramelizada da F1 moderna — patrocinadores por todos os lados, estética glamourosa, heróis redentores. Mas, na soma, o filme entrega exatamente o que promete: imersão total, narrativa clássica e emoção constante. Um pouco mais enxuto e menos rotary entre cenas de boxes, teria pleno potencial de 5 estrelas.

Ainda assim, é um marco para o cinema esportivo — e para qualidade técnica de um gênero historicamente subestimado. Os fãs vão observar as minúcias, os novatos vão enxergar adrenalina pura, e todo mundo vai sentir o peso dos motores e o frescor das emoções reais. Um retrato de elite, humano e espetacular, que merece lugar no pódio.

julho 05, 2025

Jurassic World: Recomeço (2025)

 


Título original: Jurassic World Rebirth
Direção: Gareth Edwards
Sinopse: Este novo capítulo acompanha uma equipe intrépida que corre contra o tempo para obter amostras de DNA das três criaturas mais colossais da terra, do mar e do ar. Cinco anos após os eventos de Jurassic World: Domínio, a ecologia do planeta se mostrou amplamente inóspita para os dinossauros. Os remanescentes existem em ambientes equatoriais isolados, com climas semelhantes àqueles nos quais prosperaram no passado. As três criaturas mais colossais dessa biosfera tropical possuem a chave para um medicamento com benefícios milagrosos que podem salvar vidas humanas.

Jurassic World: Recomeço (2025), dirigido por Gareth Edwards, é uma produção que beira o desastroso apesar de milhões investidos.

Desde o início, fica cristalino que o roteiro mais lembra um exercício acadêmico mal executado por um calouro que ainda soltava gírias como “só lendo o Manual do Roteiro do Syd Field” e tentando montar suas primeiras páginas com cenas desconexas. A aparição dos super-dinossauros mutantes — híbridos que parecem saídos de um filme B qualquer — chega sem aviso, sem justificativa ou coerência. Uma tentativa triste de justificar a mutação ameaça com uma sequência introdutória em minutos, mas basta — depois disso, silêncio. Todo o potencial narrativo se esvai em diários e vozes robóticas, e o espectador já sabe exatamente quem morrerá, quando, e como – enfim, os únicos sustos acontecem com a torcida para que alguém finalmente interrompa esse roteiro preguiçoso.

Enquanto isso, Steven Spielberg aparece nos créditos como produtor executivo — e a pergunta que não quer calar é: como alguém que reescreveu o cinema com Jurassic Park (1993) pode manchar sua reputação com um filme tão desastroso? A sensação é que Spielberg entregou seu legado e saiu de cena. Recomeço não carrega nem o charme nem a leveza que ele imprimia às produções nas quais se envolvia — soa mais como uma cópia mal feita do que qualquer herança digna .

O orçamento declarado foi de US$ 180 milhões, com arrecadação bilionária no fim de semana de estreia — US$ 147,3 milhões só nos EUA e US$ 318,3 milhões globalmente . O problema: esse dinheiro não se converteu em qualidade. Os dinossauros CGI lembram criaturas de videogame de console médio — transparentes, sem massa, e completamente carentes de verossimilhança. Enquanto o filme original de 1993, já com 30 anos, usou com maestria uma combinação de CGI e animatrônicos, aqui parece que ninguém pensou em mecatrônicos: os efeitos são totalmente virtuais, mal renderizados e posicionados sem preocupação com ilusão de peso ou textura real — o Reddit até já definiu como “quase parece rodando no PlayStation” .

Mesmo com Gareth Edwards, conhecido por Godzilla e Monstros, no comando, e com a cinematografia de John Mathieson tentando resgatar ambientes tropicais vibrantes, o impacto visual se perde em meio ao queixo caído do expectador diante de animações descartáveis. A sensação é que houve preguiça de planejamento ou falta de tempo de render com qualidade — especialmente ao comparar com Jurassic Park, onde Spielberg sabia dosar realismo e silêncio com maestria.

Tanto o roteiro quanto a direção parecem ter inibido qualquer tentativa de interpretação emocional por parte dos atores. Scarlett Johansson ainda consegue formular frágeis ecos de emoção em rosto bonito, mas é constantemente refreada por clichês e falas robóticas. Em entrevistas, ela admite que sua mercenária “Zora Bennett” tem um arco programado por gente que nem se preocupou em torná-la humana .

Há inclusive confusões geográficas quase infantis: o roteiro coloca a ilha a “x quilômetros da costa da Guiana Francesa”, depois argumenta que o grupo está no Suriname — onde se fala holandês — e exibe personagens falando em francês em Paramaribo. Compromisso zero com realidade: a falha do roteiro em aspectos básicos de ambientação é alarmante .

Há várias cenas que tentam reproduzir momentos icônicos do original — o T. Rex saltando sobre uma criança escondida, in loco, surge, mas agora em bote inflável; o momento de reverência a um saurópode (mas trocando o Braquiossauro por um Titanossauro). A intenção é homenagear, mas a execução é genérica: o que era tensão e awe se transforma em reprise medíocre. A crítica no Rotten Tomatoes lembra que “não evolui, apenas repete” . É reciclagem malfeita, encheria de nostalgia sem alma que reforça o sentimento de estar diante de uma farsa reflexiva — e não de uma franquia que ainda tem algo a oferecer.

É curioso que, no meio desse lamaçal narrativo e visual, exista um respiro nostálgico: a inclusão da trilha clássica de John Williams — ou melhor, versões adaptadas por Alexandre Desplat — é, sem dúvida, o melhor do filme. Integrada com elegância, especialmente nas sequências iniciais e finais, a “Jurassic Park Theme” consegue momentaneamente resgatar sensações das gerações que assistiram ao original em 1993 .

Mas não se engane: a música de Williams não é capaz de salvar o naufrágio. Serve apenas como um lembrete distante do que poderíamos ter tido. Há um certo calor nostálgico, contra todas as expectativas, que talvez esteja mantendo as bilheterias acima de zero — ainda que não salve a desprezível experiência como um todo.

Sim. Se Jurassic World já andou na corda bamba entre dinosaur movie e ridículo, Recomeço desce um degrau além: vira um filme de monstros tipo Godzilla, com híbridos grotescos chamados Distortus Rex e Titanossauros, distanciando-se completamente da premissa de “como eram os dinossauros na vida real”. Há uma explicação mínima, entregues em cerca de cinco minutos de diálogo-forçado no início — e depois o roteiro esquece totalmente o assunto 

O saldo final é: narrativa vazia, personagens vazios, efeitos vazios — tudo salvo por uma trilha que nos lembra que algum dia houve magia por aqui. Mas essa centelha solitária não é suficiente para evitar que Recomeço seja o ponto mais baixo da franquia desde o fiasco mais escancarado. Os fãs dedicados — como o próprio autor que aqui escreve — podem reconhecer um reflexo de nostalgia; mas evitar a decepção requintada com o roteiro genérico e a trama feita por amadores é praticamente impossível.

Jurassic World: Recomeço não é só um filme ruim — é um marco lamentável de complacência em Hollywood: uma produção trilionária que parece feita sem paixão, engajada apenas em cash-grab, recauchutando cenas clássicas, e fingindo manter o legado de Spielberg, enquanto simultaneamente o destrói. O roteiro amador, os efeitos de videogame, os diálogos de plástico e a ambientação fantasiosa se unem em um espetáculo de vazio criativo.

O único ponto louvável é essa quase antiquíssima trilha de John Williams, que, se toca seu coração, é porque, em algum momento, alguém soube como contar uma história com maturidade, emoção e respeito pelo público. Recomeço é, infelizmente, a lembrança amarga de que nem isso basta para sustentar um filme. A maior tragédia? Esse pode ser o fim melancólico de uma saga que merece descanso — e que jamais recupere seu prestígio. A amarga conclusão: um filme que promete Renascimento mas dá sepultura à própria lenda. Uma das piores produções da saga Jurassic.

junho 21, 2025

Extermínio: A Evolução (2025)

 


Título original: 28 Years Later
Direção: Danny Boyle
Sinopse: Já se passaram quase três décadas desde que o vírus da raiva escapou de um laboratório de armas biológicas. Agora, sob uma quarentena rigidamente imposta, alguns conseguiram encontrar maneiras de sobreviver em meio aos infectados. Um desses grupos vive em uma pequena ilha, ligada ao continente por uma única passagem fortemente protegida. Quando um dos membros parte em uma missão rumo ao sombrio coração do continente, ele descobre segredos, maravilhas e horrores que transformaram não apenas os infectados, mas também outros sobreviventes.

Danny Boyle e Alex Garland retornam ao universo da infecção com ambição: um novo capítulo 28 anos após o surto original, ambientado em um Reino Unido devastado por variantes do vírus da raiva e marcado por uma paisagem sociopolítica pós-Brexit e pós-Covid 19. A premissa talvez oportuna -explorar a resiliência humana em tempos pandêmicos - soaria ainda relevante se não fosse por um roteiro que vacila entre o drama familiar, rampante intercalado com terror, zumbis inteligentes, cenas bizarras, e uma urgência temática que nunca despega.


Há, ao menos, um elemento técnico que brilha: a montagem de Jon Harris, indicada como videoclipesca, envolve o público com cortes rápidos, sequências frenéticas e contrastes visuais entre violência e silêncio contemplativo . Isso confere ritmo visual e identidade estética, um tributo moderno à original, quase como se cada cena estivesse dançando em câmera acelerada. Incontestavelmente, esse é um dos aspectos mais impactantes da produção, capturando atenção e provocando tensão… embora não remova a sensação de coisa avulsa.


A opção de filmar com múltiplos iPhones 15 Pro Max acomodados em lentes adaptadas pretende captar o caos com uma textura digital crua, remete à lógica da mobilidade comunicada pelo celular e ressignifica a estética pobre do original - agora mais ampla e moderna. Ainda assim, a escolha parece mais cenográfica do que verdadeiramente narrativamente integrada, sendo comentada como experimento curioso em entrevistas e partículas de imprensa, mas não gerando magia cinematográfica perene.


A trilha do grupo Young Fathers funde sons contemporâneos com o icônico tema de John Murphy, do filme original, mas é a escolha do poema “Boots”, narrado por Taylor Holmes em 1915 (mas utilizado no trailer desde dezembro de 2024), que entrega um arrepio genuíno - o áudio vintage adiciona uma camada de desconforto sem precedentes. O resultado é um momento verdadeiramente memorável, capaz de remeter ao cerne do medo visceral presente no início da franquia.


Ralph Fiennes é situado num papel secundário, apesar de demonstrar traços daquela intensidade dramática que o consagrou em filmes como Conclave (2024). Sua breve aparição tem vislumbres de brilho - uma atuação perturbadora, intensa, inquietante -, mas para além de um ou dois momentos memoráveis, é relegado à sombra da trama adolescente de Spike e do melodrama materno. Lamentável: Fiennes prova que poderia sustentar o filme, mas Boyle e Garland não lhe entregam o protagonismo merecido.


Após o impacto inicial com imagens sofisticadas e ideias intrigantes - a existência de “alfa‑zumbis”, a arte da sobrevivência comunitária, o confronto entre gerações -, o roteiro perde o foco. Algumas passagens tornam‑se desnecessariamente prolixas, há frenesi gratuito em busca de choque - gore excessivo, “alfa‑zumbis” caricaturais, cenas que beiram o risível; sem contar o que poderia ser uma trama urgente adapta‑se a um drama paternal melancólico. Os momentos de tédio - narrativa lenta ao ponto de arrancar bocejos - mostram que o filme jamais encontra pulso dramático firme.


O filme até arrisca filosofia pandêmica, busca ressonância com o simbólico da pandemia real, mas nunca vai além da superfície - e a comparação inevitável com Contágio (2011), estudo mais contido e incisivo, só reforça essa sensação.
A atmosfera gráfica ostenta localizações pitorescas, direção de arte robusta, contraste entre luz e sombra, amplas tomadas de paisagem - resultado do olhar de Boyle / Dod Mantle. Mas o que poderia complementar a dureza narrativa acaba ampliando ainda mais o contraste: sombrio e belo, denso e superficial. A câmera em IMAX 2.76:1 proporciona visão escancarada da desolação, mas não sustenta a psiquê da história; estamos diante de um espetáculo visual insatisfatório.
Comparar com Extermínio (2002) e Extermínio 2 (2007) só acentua as falhas. Ali havia urgência, rupturas, tensão contínua - algo que A Evolução não reproduz. A lentidão e a indecisão tonal - horror versus drama - nunca chegam a rivalizar com o ritmo alucinante do passado. O que vemos é uma nostalgia desvaída, um legado desperdiçado em uma produção que jamais encontra seu tom nem sua duração adequada.


Entra-se numa zona de dúvida: após Covid-19, ainda é possível trazer inovação em cine‑pandemias? O pensamento paira: Contágio cumpriu esse papel em 2011, antes do trauma global. A Evolução falha em resgatar a credibilidade desse gênero, adotando elementos sensacionalistas em detrimento de investigação profunda. Aqui não há ciência, há escorregões narrativos, embates forçados e o horror dos efeitos especiais sem sentido existencial. Um filão "da moda", mas sem essência.


Extermínio: A Evolução é uma obra de contrastes intensos: tecnicamente corajosa, visualmente ousada, sonoramente arrepiante - mas narrativamente vacilante. Boyle entrega uma montagem precisa como um videoclipe, sustenta o filme com imagens potentes e trilha marcante, contudo esquece de consolidar o conteúdo: o roteiro oscila entre atos dispersos, personagens subexplorados e monstros com apelo de choque mecânico.


Dono de momentos arrepiantes, especialmente quando evoca "Boots" ou constrói tensão a partir da aparição dos “alfa‑zumbis”, o filme é, em grande parte, um exercício de estilo contido pela covardia de não abraçar totalmente nem o horror nem o drama. A lente que captura o caos, por vezes, vira espelho de vazio.
Ralph Fiennes é o retrato do desperdício - talento jogado em papel de coadjuvante, subestimado em fãs e cineastas. A grandeza técnica torna ainda mais visível a mediocridade da narrativa. Em 115 minutos, resta-nos valorizar o que se fez brilhante: a montagem, os medonhos zumbis‑inteligentes, o poema centenário. Mas nos lembramos sobretudo do que se perdeu: urgência, foco, espírito.


Fica válida a reflexão: será que o gênero de pandemia pós-Covid ainda tem algo útil a explorar? A Evolução sugere que, se ainda dá para fazer filmes impactantes, é urgente escolher narrativas com alma, não apenas panoramas elegantes.