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outubro 30, 2025

Tubarão (1975)

 


Título original: Jaws
Direção: Steven Spielberg
Sinopse: Um terrível ataque a banhistas é o sinal de que a praia da pequena cidade de Amity virou refeitório de um gigantesco tubarão branco, que começa a se alimentar dos turistas. Embora o prefeito queira esconder os fatos da mídia, o xerife local pede ajuda a um ictiologista e a um pescador veterano para caçar o animal. Mas a missão vai ser mais complicada do que eles imaginavam.


Tubarão — aquela sequência de notas que entrou no imaginário coletivo e não mais saiu, a imagem do azul sereno rasgada por um bocão mecânico e a sensação de que, a cada mergulho, o cinema reinventou o medo — chega aos cinquenta anos como um pequeno colosso intocado: remasterizado em 4K e retomando as salas com a mesma violência elegante com que atropelou as expectativas do público em 1975. Ver Tubarão numa cópia restaurada hoje não é apenas um gesto de nostalgia; é assistir ao encontro perfeito entre um frescor de juventude autoral e um conjunto técnico cuja simplicidade foi, e continua sendo, o que o torna monumental. 

O que impressiona primeiro, ainda que seja uma impressão quase invisível, é a fluidez com que o filme corre — a tal ponto que perdemos a noção do tempo dentro da projeção. Spielberg, então um jovem diretor com pressa de fazer história, aprendeu na maré alta de problemas de produção a domar o ritmo: o mal funcionamento do tubarão mecânico — o famoso "Bruce" — forçou escolhas que se mostraram geniais. A falha técnica, longe de comprometer o filme, impôs uma economia formal: a câmera aponta, insinua, recua; a música de John Williams (que ganhou o Oscar e se tornou um ícone cultural) faz metade do trabalho do monstro; e a edição de Verna Fields, premiada pela Academia, costura silêncio, corte e disparo de pânico com precisão de relojoeiro. Esse jogo de ausência e promessa constrói uma suspensão contínua — e é essa suspensão que faz o tempo evaporar dentro da sala. 

Há uma inteligência técnica notável em como Tubarão cria ponto de vista sem mostrar. A famosa alternância de dois sons da partitura — simples, primitiva, imediatamente interpretada como “o que se aproxima” — é um estudo sobre sugestão. John Williams transforma dois tons em personagem: o som, por repetição e expectativa, vira processo narrativo; é ele que anuncia a "cena" do tubarão antes que qualquer dente apareça na tela, condicionando a respiração do espectador. Essa decisão musical convive com um design de som que privilegia efeitos que não imitam o realismo documentarista, mas que o amplificam: bolhas, água, cordas que cortam o espaço sonoro como lâminas. O resultado é um equilíbrio entre o que se ouve e o que se vê, onde ambos se alimentam para produzir suspense absoluto. 

No elenco, a triangulação entre Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw é uma lição de economia dramática. Scheider é o homem prático, a autoridade cujo ceticismo convive com uma ansiedade contida; Dreyfuss, com sua energia histérica, encarna o cientista tão fascinante quanto frustrado; Shaw afunda-se em arcaísmos marinhos e transforma o personagem Quint numa peça de teatro bruto e musical, cuja chegada é uma explosão de voz, história e ameaça. Cada ator entrega nuance sem excessos, permitindo que a economia do roteiro e o pulso da realização encontrem em cada gesto o seu peso exato. A dinâmica entre os três no barco — momento central onde a dramaturgia e o espetáculo técnico convergem — é um dos melhores exemplos de trabalho de elenco em que a fala e a pausa valem igualmente. 

Tecnicamente, a cinematografia de Bill Butler merece destaque pela sua ambiguidade calculada: ele ilumina como se tivesse medo de revelar demais, privilegia horizontes vazios e planos médios que sugerem o dentro do mar sem mostrá-lo por inteiro. As escolhas de enquadramento transformam a água em uma superfície de tragédia: vastidão que engole índices visuais, camadas cromáticas que passam do turquesa pastoral ao negro ameaçador. A câmera — muitas vezes a bordo (literalmente) do Orca — tem uma fisicalidade que faz o espectador sentir o balanço, o sal, a vertigem do mar. A direção de Spielberg aqui é um estudo de compromisso entre narrativa e espetáculo: ele explora travellings, planificações e closes com um senso de peso que, hoje, soa como aula de como manejar o suspense sem artifícios modernos. 

A edição funciona como músculo do filme. Verna Fields foi premiada por uma montagem que respira entre a contenção e a explosão: cortes repentinos para o mar aberto, dilatações em sequências de silêncio e, logo em seguida, cortes frenéticos quando a violência se impõe. É uma montagem que entende o corpo do público: sabe quando desacelerar para que a câmera, a música e a imaginação façam o trabalho sujo; e sabe quando golpear. A cena da festa na praia, a sequência do ataque ao menino, o funeral improvisado — cada um desses blocos depende de um ritmo interno meticulosamente construído, e a montagem é a ferramenta que dá forma a esse fluxo emocional. 

Falemos do tubarão mecânico porque é quase impossível dissociar a lenda do filme das histórias de bastidor: o aparelho, chamado nos sets de Bruce, viveu uma vida própria — problemático em alto-mar, sensível à corrosão do sal e sujeito a constantes panes. Essas dificuldades empurraram Spielberg a abandonar a exibição direta do monstro por longos trechos, e a consequência estética foi sublime: a imagem que faltava despertou imaginação e pavor. Assim, o filme ganhou um antagonista mais eficaz do que qualquer efeito realista poderia oferecer, porque o medo é narrado como ausência e antecipação. A própria gênese do blockbuster moderno nasce, ironicamente, de um colapso técnico que obrigou o cinema a ser mais criativo. 

No contexto histórico e de indústria, Tubarão é o divisor de águas: primeiro verdadeiro fenômeno de verão que redefiniu a lógica de lançamento das grandes produções — o chamado “summer blockbuster”. O impacto econômico e cultural foi imediato: bilheteria recorde, marketing massivo, filas e um medo coletivo que fez praias vazias por semanas. Mas o legado não é apenas comercial; foi também estético. Após Tubarão, o espaço do suspense mainstream foi reconfigurado: filmes passaram a pensar em escala, em campanha e em como transformar simplicidade de premissa em experiência monumental. É curioso pensar que um filme tão enxuto, formalmente tão contido, inaugurou um caminho que privilegiaria o espetáculo elevado e, paradoxalmente, a simplicidade ter sido o motor dessa ambição.

A restauração em 4K e as exibições comemorativas (incluindo versões em IMAX para algumas reexibições) são mais do que um capricho nostálgico: são a reafirmação de que a textura do filme — do ruído das ondas ao brilho do sol sobre a pele — merece ser vista com a maior fidelidade possível. O 4K aprofunda detalhes; mostra a pele dos atores, a ferrugem do convés, os micro-movimentos do mar com uma nitidez que revela o quanto a mise-en-scène de Tubarão é projetada. Ainda assim, a restauração não transforma o filme num objeto de museu estéril; ao contrário, devolve ao público o frescor de uma experiência sensorial que, em 1975, chocou e hoje comove pela precisão de suas escolhas. Ver o rosto de Quint em close, ou o movimento quase imperceptível de Dreyfuss ao observar o horizonte, ganha nova carga quando a imagem é devolvida ao seu esplendor técnico. 

E há, por fim, a questão ética e ecológica que o filme deixou como sombra: a imagem do tubarão como monstro contribuiu, por décadas, para um medo que teve consequências reais para a conservação marinha. Esse diálogo entre ficção e mundo real é complexo — Peter Benchley, autor do romance, e sua mulher passaram a trabalhar com conservação mais tarde, tentando mitigar implicações indesejadas. Tubarão nos lembra que o cinema, quando atinge as massas, molda percepções e que a beleza do ofício também carrega responsabilidade. 

Assistir hoje, na melhor cópia possível, é confirmar que o filme não envelheceu por imposição de moda, mas amadureceu por virtude. A fluidez da qual falo — essa sensação de "não ver o tempo passar" — nasce justamente da soma de escolhas discretas: trilha que cria antecipação, direção que privilegia sugestão, montagem que regula a adrenalina e performances que resistem à grandiloquência. Não há exagero técnico nem afetação de estilo; há, sim, um controle de efeito que transforma cada minuto em componente de um mecanismo de suspense perfeito. Quando o bote balança, quando a montagem decide que o barulho do mar é silêncio e quando a música monta a tensão como quem afia uma lâmina, o espectador não contabiliza cenas; entrega-se ao fluxo. Isso é rara perfeição narrativa. 

Concluo dizendo que Tubarão é uma obra em que técnica e mito se confundem. É filme que ensinou gerações de cineastas a transformar limitação em invenção, a transformar economia formal em intensidade dramática e a entender que, no cinema, o invisível pode ser muito mais temível que qualquer prótese mecânica. Ver Tubarão agora, restaurado, é perceber que sua grandiosidade não reside no monstro mostrado, mas no pacto silencioso entre plateia e filme: o pacto de ser levado, de deixar o relógio do lado de fora e de ser obrigado a imaginar o pior — e, nesse imaginar, encontrar uma das mais puras experiências cinematográficas já realizadas. Em uma época em que tantos filmes se confundem entre barulho e excesso, Tubarão se mantém como prova de que o cinema, quando dominado com economia e precisão, ainda tem o poder de petrificar o corpo e encantar a mente. E é por isso que, mesmo meio século depois, continua entre os melhores presentes que a sétima arte pode nos dar.

outubro 29, 2025

A Greve (1925)

 


Título original: Стачка
Direção: Sergei Eisenstein
Sinopse: Sergei Eisenstein apresenta um drama visual e político que retrata a revolta dos trabalhadores de uma fábrica russa, desencadeada pelo suicídio de um operário injustamente acusado de roubo. Esse trágico ato acende a chama da revolta, reunindo os operários em uma greve que rapidamente se transforma num palco de intensos confrontos com a repressão policial. Utilizando uma montagem inovadora, Eisenstein entrelaça cenas de violência e metáforas visuais – como o abate de animais –, enfatizando a desumanização e a brutalidade do sistema opressor. O filme, portanto, consagra-se como um manifesto poderoso da luta coletiva pela justiça, dignidade e liberdade dos trabalhadores.


Há filmes cujo valor se encontra menos naquilo que dizem e mais na forma como o dizem. A Greve, primeiro longa-metragem de Sergei Eisenstein, é um exemplo cristalino dessa máxima. O cineasta russo, que mais tarde se tornaria uma das figuras mais influentes da teoria e prática do cinema mundial, estreia aqui não apenas um filme, mas um método; uma gramática visual que alteraria para sempre a maneira como filmes seriam montados, percebidos e sentidos. Entretanto, se a técnica se ergue como uma montanha, a narrativa que sustenta essa estrutura revela-se frágil, panfletária e caricatural. Ao assistir hoje, quase um século depois, o impacto estético permanece vibrante, enquanto o impacto ideológico dissolve-se em fumaça.

Antes de qualquer discussão, é necessário registrar que a avaliação desta obra se apoia fortemente na sua execução formal — montagem, ritmo, composição visual — e, em menor grau, no poder simbólico do desfecho. As três estrelas e meia que atribuí ao filme são, em enorme parte, pela impecável construção técnica que Eisenstein apresenta, elaborando ideias de montagem que, na época, estavam muito além da imaginação da maioria dos realizadores contemporâneos. Eisenstein não era apenas um diretor; era um arquiteto da percepção. Não é à toa que ele escreveria, anos mais tarde, dois memorandos essenciais para o estudo da história do cinema: A Forma do Filme e O Sentido do Filme. Neles, o diretor não se limitava a observar que a montagem construía sentido — ele literalmente aplicava fórmulas matemáticas à estrutura de corte, à dinâmica de choque entre planos, ao ritmo musical das transições. Em A Greve, essa concepção ainda embrionária já demonstra força surpreendente.

A sensação ao assistir ao filme é a de que a imagem está em constante combustão. Eisenstein não monta para “conectar” cenas, mas para fazer explodir significados. O ritmo visual, por vezes acelerado, por vezes convulsivo, antecipa técnicas que se tornariam clássicas décadas depois — e que alcançariam ápice expressivo no cinema de Alfred Hitchcock, especialmente em Psicose (1960). A famosa sequência do chuveiro funciona, aliás, como um herdeiro direto desse estilo: cortes bruscos, tempo interno da imagem quebrado para provocar choque físico, associação sonora que intensifica a sensação de violência mesmo quando nada explícito é mostrado. Eisenstein já estava fazendo isso em 1925, com precisão quase cirúrgica. É estonteante, dá vertigem, é fenomenal.

Contudo — e aqui começa o outro lado —, se a forma é brilhante, o conteúdo é tão raso e infantilizado quanto um cartaz escolar de propaganda ideológica. A Greve foi, literalmente, um filme encomendado pelo regime soviético nos seus primeiros anos, destinado a promover o ideal heroico da classe trabalhadora contra os malvados proprietários dos meios de produção. Mas o que poderia ter sido um retrato potente das tensões sociais transforma-se em comédia involuntária. Os patrões são mostrados como figuras grotescas, esfregando as mãos em gestos caricatos dignos de um vilão de desenho animado. Os trabalhadores aparecem como mártires exagerados, sempre dotados daquela expressão de sofrimento elevado a um patamar melodramático quase circense. É impossível não rir — e ao rir, o filme perde o seu próprio propósito.

A greve, retratada como libertação heroica, logo se mostra um desastre humano. A fome se instala, crianças desesperam-se, famílias entram em colapso. E não há qualquer nuance. A dor é pintada como insígnia de orgulho revolucionário, como se a miséria fosse uma forma de elevação espiritual. O filme, tentando exaltar os trabalhadores, termina por demonstrar com clareza desconfortável o resultado prático das promessas revolucionárias: muitos discursos, pouca comida. Eis aqui, ironicamente, o maior êxito crítico de A Greve quando observada com distância histórica: ao promover a greve como única via de emancipação, expõe o próprio fracasso desta ideia quando aplicada a uma sociedade real. Se os “oprimidos” cruzam os braços, surgem outros tantos dispostos a assumir seus postos — trabalhadores que, por sua vez, também lutam para sobreviver. A lógica interna do filme revela, sem querer, a fraqueza econômica e social do sistema que tentava defender. Um experimento já ultrapassado no momento mesmo de seu nascimento.

É impossível observar A Greve hoje sem compreender que se trata de um gesto propagandístico. A URSS recém-instalada buscava construir símbolos, mitologias, heróis. Eisenstein foi convocado como engenheiro dessas imagens (assim como Riefenstahl faria depois com o nazismo). Mas a história o ultrapassa, e a própria obra evidencia algo que o regime tentou mascarar: um sistema político não se sustenta em slogans. A greve, como apresentada, não liberta; rompe, destrói, esvazia. E o filme termina, ironicamente, afirmando o oposto daquilo que queria dizer. É o famoso tiro pela culatra.

E, no entanto, apesar de tudo isso, A Greve permanece um filme fundamental — não pelo que narra, mas por como narra. A construção das massas como unidade dramática, o uso de montagem como instrumento ideológico e sensorial, a fusão entre forma e movimento, tudo isso influenciaria cineastas como Dziga Vertov, Pudovkin, Hitchcock, Godard, Coppola e tantos outros. A técnica transcende a ideologia. Eisenstein, consciente ou não, estava criando a espinha dorsal de uma linguagem que faria do cinema não apenas uma arte de mostrar imagens, mas de organizar pensamentos através delas.

No fim das contas, A Greve é uma obra que se divide. Metade brilhante, metade vazia. Metade revolução formal, metade cartaz panfletário. Mas, como toda peça que marca uma era, ela permanece viva. Não se assiste a A Greve para acreditar nela, mas para enxergar a história de uma linguagem que ainda respiramos — e, principalmente, para perceber que a força do cinema não está no que ele afirma, mas no que ele revela sem querer.

E, no caso deste filme, o que ele revela é poderoso demais para ser ignorado. Elegante ou não, simpático ou não, Eisenstein abriu mão da neutralidade. E ao fazê-lo, expôs tanto sua genialidade quanto o fracasso de um sonho político que nunca se concretizou.

Às vezes, o cinema ilumina o mundo. Outras vezes, o entrega ao ridículo. A Greve faz os dois ao mesmo tempo — razão pela qual continua, até hoje, impossível de esquecer.

outubro 26, 2025

Psicose (1960)

 


Título original: Psycho
Direção: Alfred Hitchcock
Sinopse: Marion Crane é uma secretária que rouba 40 mil dólares da imobiliária onde trabalha para se casar e começar uma nova vida. Durante a fuga de carro, ela enfrenta uma forte tempestade, erra o caminho e chega em um velho hotel. O estabelecimento é administrado por um sujeito atencioso chamado Norman Bates, que nutre um forte respeito e temor por sua mãe. Marion decide passar a noite no local, sem saber o perigo que a cerca.


É sempre um desafio escrever sobre um filme que, ao longo das décadas, deixou de ser apenas um marco cinematográfico para se transformar em presença viva na cultura, na história da arte e na experiência pessoal de quem o assiste. Psicose (Psycho, 1960), dirigido por Alfred Hitchcock, ultrapassa o rótulo de obra-prima para alcançar o nível do mito. E aqui, não há qualquer hesitação em afirmar: este é o melhor filme de suspense de todos os tempos. Mais ainda — é o meu filme preferido de todos os tempos. Uma obra que não envelhece, não se dilui e não se desgasta; ao contrário, parece que cada revisita reacende algo novo, como uma chama que nunca perde o calor, mas muda o desenho das sombras que projeta ao redor.

Quando Psicose estreou, Hitchcock já era um nome consolidado — Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, Intriga Internacional e tantos outros filmes já o posicionavam como o mestre do suspense. Mas Psicose trouxe algo diferente, algo que nenhum de seus trabalhos anteriores ousara tocar da mesma maneira. Ele não apenas construiu suspense; ele o reinventou. Trouxe o horror psicológico para o centro da narrativa, eliminando fronteiras entre o que é mostrado e o que é sugerido. Não se trata apenas de personagens sob tensão; trata-se de nós mesmos, do que há de oculto, de subterrâneo, de inquietante em cada um de nós. O filme abre portas que não se fecham.

A história começa com Marion Crane (interpretada com nervosismo contido e uma melancolia inexplicável por Janet Leigh), uma secretária que, impulsionada por um desejo de mudança, decide tomar um caminho errado — fugir com uma grande quantia em dinheiro. Hitchcock já coloca aí uma atmosfera de desordem interna, de transgressão silenciosa do cotidiano. A sua fuga a leva a um ponto perdido na estrada, um motel aparentemente comum, o Bates Motel, administrado por um jovem tímido, educado, retraído — Norman Bates.

E é aqui que o cinema muda de eixo.

Anthony Perkins entrega uma das performances mais extraordinárias da história do cinema. Sua interpretação é uma aula de sutileza, controle, ambiguidade e profundidade psicológica. Norman Bates é, ao mesmo tempo, doce e ameaçador, vulnerável e insondável, humano e estranho. Não há exageros, não há caricatura, não há tentativa de assustar pelo grotesco: é o terror do real, do pequeno gesto, da frase dita com hesitação, do sorriso que parece esconder algo que não se mostra. O olhar de Perkins — essa alternância entre fragilidade e mistério — carrega uma densidade que torna impossível desgrudar os olhos de sua presença. Cada cena com ele é carregada de tensão invisível, quase física.

A construção do personagem é tão detalhada que mesmo seus silêncios dizem muito. O modo como arruma um pássaro empalhado na parede, o jeito com que desvia os olhos ao responder uma pergunta, a leve curva dos lábios quando demonstra desconforto — tudo sugere um mundo interno profundo, fraturado, intenso. Perkins criou não só um personagem icônico, mas um arquétipo. Norman Bates se tornou referência para décadas de cinema psicológico, da literatura ao teatro, da televisão às mais diversas narrativas contemporâneas. O horror moderno, em muitas de suas vertentes, nasce desse olhar, desse sorriso tímido, desse jovem aparentemente inofensivo que conversa sobre passarinhos empalhados.

Hitchcock sabia exatamente o que tinha em mãos. Sua direção é de precisão absoluta — cada enquadramento, cada movimento de câmera, cada corte de montagem existe com propósito. A famosa cena do chuveiro, por exemplo, já foi discutida exaustivamente, mas o que a torna tão impactante não é apenas a violência sugerida, e sim a maneira como ela é construída: cortes rápidos, angulação que fragmenta o corpo, ausência de exposição gráfica, montagem rítmica que acelera e para abruptamente. Bernard Herrmann complementa com a trilha sonora mais icônica do suspense: aqueles violinos agudos, cortantes, quase como lâminas sonoras. Sem a música, a cena já seria brilhante; com ela, tornou-se eterna.

Herrmann, aliás, merece destaque especial. Sua trilha sonora não apenas acompanha o filme — ela o define. Cada nota parece pulsar como um coração acelerado, como uma respiração presa no peito. A música em Psicose funciona como extensão direta da interioridade dos personagens. Não há espaço para tranquilidade; há ansiedade, expectativa, inquietação. O tema musical da estrada, quando Marion foge, é um turbilhão de pensamentos não ditos — a trilha nos coloca dentro da cabeça dela. E quando está no Bates Motel, o silêncio é tão calculado quanto a música, criando aquele espaço onde o suspense se torna respiração suspensa.

A fotografia de John L. Russell, em preto e branco, não é mero recurso técnico; é uma decisão estética que aproxima o filme do expressionismo emocional. As sombras, as diagonais, o contraste entre luz e escuridão revelam um universo psicológico fragmentado. O motel parece sempre maior por dentro do que seu exterior sugere. A casa no topo da colina — silhueta contra o céu — é pura imagética de pesadelo. Tudo é real e irreal ao mesmo tempo.

A montagem de George Tomasini, colaborador frequente de Hitchcock, é outro pilar essencial. Ele entende o tempo do suspense como poucos editores na história do cinema. Ele sabe quando segurar um plano um segundo mais que o necessário, sabe quando cortar no instante exato em que o olhar do espectador começa a buscar resposta. Psicose é, nesse sentido, uma aula sobre como a narrativa cinematográfica se constrói também no intervalo entre as imagens.

Janet Leigh entrega uma interpretação profunda, marcada pela inquietação emocional. Sua Marion é uma mulher que vacila entre culpa, medo e esperança — e seu destino surpreendente, inesperado, marca um dos momentos mais revolucionários do cinema narrativo. Hitchcock quebra convenções, joga o espectador no completo desconhecido. A partir daí, o filme se transforma e nós nos transformamos com ele. Nada é seguro. Nada é previsível.

E quanto à atmosfera, Psicose cria um microcosmo à parte. O Bates Motel não é apenas cenário; é uma espécie de purgatório, um lugar onde almas perturbadas se encontram consigo mesmas. O clima é envolvente, úmido, silencioso. Cada corredor parece ecoar segredos. Cada porta trancada parece guardar um mundo inteiro de histórias não contadas. Hitchcock cria um senso espacial que convida o espectador não apenas a observar, mas a habitar o filme.

Quando o filme avança para sua revelação final, não há sensação de resolução simples. Existe, sim, uma compreensão psicológica, uma descida às profundezas do humano. Norman Bates se torna o espelho de algo coletivo — o lado oculto, reprimido, silenciado. E o plano final, com aquele sorriso, aquele olhar que carrega algo além das palavras, é um dos momentos mais arrepiantes de toda a história do cinema. Anthony Perkins encerra o filme como um ícone absoluto — sua atuação é tão magnífica que parece pairar sobre a tela mesmo depois do fim, quase como um fantasma que não se dissipa.

Psicose não é apenas cinematografia brilhante. É arquitetura emocional. É arte pulsante. É o cinema usando tudo o que pode — imagem, som, silêncio, movimento — para criar algo que não apenas se vê, mas se sente profundamente.

E é exatamente por isso que permanece, para mim, meu filme preferido de todos os tempos. Cada vez que assisto, ele me devolve ao estado primordial do cinema: o da descoberta, da surpresa, do arrepio, da sensação de que estamos diante de algo maior do que nós. O melhor filme de suspense de todos os tempos não é aquele que apenas inquieta, mas aquele que permanece, assombra, acompanha, respira junto.

Psicose é esse filme.

Uma obra que vive.

E que seguirá viva enquanto houver olhos dispostos a encarar o que espreita atrás da porta entreaberta, enquanto houver ouvidos sensíveis ao violino que corta o silêncio, enquanto houver corações que reconhecem, mesmo que em segredo, que o medo mais profundo é sempre o que vem de dentro.

outubro 11, 2025

O Massacre da Serra Elétrica (1974)

 


Título original: The Texas Chainsaw Massacre
Direção: Tobe Hooper
Sinopse: A jovem Sally fica sabendo que o túmulo de seu avô pode ter sido vandalizado e decide cair na estrada com o irmão e um grupo de amigos para visitar o local e investigar. Depois de um desvio para a antiga casa de fazenda de seus parentes, os jovens descobrem uma família de canibais morando na assustadora residência ao lado. O mais insano membro do clã é Leatherface, que usa uma máscara confeccionada com pele humana e estraçalha suas vítimas usando uma serra elétrica.


O Massacre da Serra Elétrica raramente aparece em conversas sobre cinema apenas como filme de terror: é antes um ensaio em celuloide sobre trabalho bruto, exaustão americana e o horror que nasce quando a indústria e a carne se confundem. A obra de Tobe Hooper, concebida e filmada nos limites da independência e da necessidade, não se sustenta pelo choque gratuito, mas por um design sensorial implacável — e por isso continua a arredar, a inquietar e a influenciar gerações de autores. Direção, argumento e produção partilham um mesmo gesto: recusar o verniz, expor a matéria-prima do pavor. 

Logo no início, o filme impõe uma textura: um 16mm granulado, movente e sujo que parece moer a paisagem até restar apenas os ossos daquilo que chamamos mundo rural. A opção técnica — filmar em 16mm com equipamento leve e película de sensibilidade baixa — conferiu mobilidade e uma qualidade documental às imagens; a câmera de Daniel Pearl não busca a beleza, busca a presença. O enquadramento é frequentemente instável, próximo do corpo, como se pretendesse obrigar o espectador a respirar o mesmo ar úmido, sujo e pegajoso dos personagens. Essa escolha estética transforma o solo texano em uma pele doente e em ruínas, e a montagem, seca e afiada, não concede descanso. 

As interpretações são paradoxalmente naturais e performáticas — um equilíbrio delicado que o filme explora com persistência. Marilyn Burns, no papel de Sally, é o eixo emocional: ela não precisa de gritos performados para ser crível; as suas reações são físicas e verdadeiras, fruto de uma direção que encoraja a improvisação e do ambiente extremo das filmagens. Gunnar Hansen, como Leatherface, opera num registro quase mímico: sua presença é primitiva, quase animal, e a máscara que usa (composta de peles, tecido e sutilezas grotescas) permite que a figura exista como hieróglifo do medo mais do que como indivíduo. A construção de personagens no filme segue uma lógica de folclore macabro — são arquétipos deformados por uma economia de meios que prefere sugerir do que mostrar. 

Do ponto de vista sonoro, O Massacre da Serra Elétrica é crucialmente eficaz porque subverte expectativas: os ruídos mecânicos, os rangidos da casa, a serra como instrumento rítmico, tudo contribui para uma partitura não-melódica que penaliza o conforto. Tobe Hooper e a equipe tiraram partido de objetos reais e de uma mixagem que privilegia efeitos táteis — o som da serra não é apenas efeito, é declaração de intenção. A trilha, quando presente, evita a orquestração clássica do terror; em troca, o silêncio e ruídos cotidianos tornam-se instrumentos de suspense. 

Narrativamente, o filme é minimalista: um grupo de jovens, uma viagem, um encontro com aquilo que o espaço rural esconde. Essa simplicidade é uma força. Ao cortar o excesso narrativo, Hooper cria uma experiência que se aproxima da fábula, porém uma fábula contaminada pela crueza documental. A sensação de “baseado em fatos reais” — uma decisão de marketing que fez parte da estratégia de lançamento — reforça esse efeito, borrando as fronteiras entre representação e registro. Mais do que chocar por violência explícita, o filme insinua violência através de detalhes: cortes rápidos, olhares que se prolongam, objetos familiares transformados em instrumentos de tortura. O resultado é um cinema que obriga o corpo do espectador a recordar o corpo que assiste — uma experiência quase visceral.

É importante tratar também do contexto de produção, porque o modo como o filme foi feito é parte do seu significado. Com orçamento mínimo, equipe essencialmente local e gravações sob condições físicas severas (calor extremo, rotina intensa), a película nasceu de uma pressão que se imprimia no rosto dos atores e no fotograma. Histórias de sets perigosos, uso de adereços macabros, improvisos de produção e o próprio desinvestimento comercial tornam-se matéria-prima que se deposita na tela. Essa aridez de bastidores alimenta a sensação de autenticidade: o suor, a poeira e a exaustão não são efeitos, são testemunhos. 

Cinco décadas depois, a ressonância histórica do filme é clara: além de ter sido determinante para a confirmação do subgênero slasher, ele introduziu cânones visuais e morais — o vilão mascarado gigante, o uso de ferramentas industriais como armas, a figura da sobrevivente final — que cineastas posteriores refinariam e popularizariam. Mas reduzir O Massacre da Serra Elétrica a um “pai do slasher” é perder sua outra dimensão: como fábula sobre desindustrialização e canibalização do indivíduo por uma economia de carne (literal e metafórica). O filme lê a decadência rural e industrial da América do pós-guerra como terreno fértil para uma violência que é, antes de tudo, econômica. 

A recepção inicial foi ambivalente e controversa — crítico e público reagiram com nojo, admiração contida e debates sobre censura — e o filme foi alvo de proibições e retaliações internacionais. Essa hostilidade não o tornou menos influente; ao contrário, o colocou num lugar de ícone subversivo que seria reverenciado por cineastas e teóricos do horror nas décadas seguintes. Em reconhecimento a essa importância cultural, a obra foi posteriormente preservada e celebrada por instituições que tradicionalmente abrigam as obras-primas — uma reavaliação tardia, porém merecida, que confirma sua dupla natureza: obra de exploração e também documento cultural. 

Esteticamente, o filme equilibra um fetichismo pelo objeto — pela serra, pelos restos do matadouro, pelas fotografias queimadas — com um minimalismo formal que impede qualquer catarse fácil. A violência que vemos e, sobretudo, a que adivinhamos, funciona por acumulação: repetição de rituais grotescos, montagem que recusa alívio e enquadramentos claustrofóbicos que comprimem tempo e espaço. A direção de arte, alinhada à fotografia, cria um universo doméstico transformado em lugar de sacrifício e memória canibal. Não se trata apenas de chocar: trata-se de tornar palpável a sensação de que a modernidade, reduzida a ferramentaria industrial e a economia de cadáveres, engoliu a si própria. 

É justo reconhecer também as imperfeições que humanizam o filme. A falta de recursos às vezes resulta em lacunas narrativas e sequências abruptas; a opção por uma estética documental pode afastar espectadores que buscam um terror mais polido. Mas essas fraquezas não diminuem a coerência do projeto — antes, acentuam sua integridade: trata-se de um filme feito do mesmo material que critica, e essa contaminação é, em última análise, o que o torna tão potente. A pequena beleza amarga do filme está em sua fidelidade à sua própria condição de produto marginal que, por ironia, veio a moldar a indústria que desprezava. 

Por fim, o que resta depois do impacto inicial? O Massacre da Serra Elétrica permanece relevante porque sua linguagem corporal — fotografia, som, montagem, performance — continua a encontrar eco em diretores que procuram o horror como diagnóstico social e não apenas como espetáculo gore. É um filme que funciona como um espelho perigoso: se o encararmos de frente, há o risco de ver, refletida, a própria cara da nossa indiferença. Raros filmes conseguem ser, ao mesmo tempo, invenção formal e documento cultural; mais raros ainda são os que envelhecem enriquecendo seu significado sem perder a capacidade de ferir. É por isso que, mesmo hoje, a obra de Hooper guarda uma fúria estética e uma precisão moral que exigem ser vistas — não como um troféu de choque, mas como uma peça cruel e honesta de cinema que continua a nos perguntar o que aceitamos como normal.

outubro 09, 2025

TRON: Ares (2025)

 


Título original: TRON: Ares
Direção: Joachim Rønning
Sinopse: Um programa altamente sofisticado, Ares, é enviado do mundo digital para o mundo real em uma missão perigosa, marcando o primeiro encontro da humanidade com seres de I.A..


Desligue o cérebro para imergir em uma realidade paralela. O novo TRON: Ares é um espetáculo visual sem comparação. Isso já de cara estabelece o tom do que Joachim Rønning entrega: um futuro digital tão vibrante quanto ameaçador, tons de neon estourados, paisagens virtuais arquitetadas com luxo técnico e uma ambição estética que poucas produções blockbuster ousam sustentar hoje. O filme acerta quase tudo no aparato técnico e na atmosfera sonora e visual — a ponto de quase perdoarmos suas fraquezas narrativas. E digo “quase”, porque elas existem — e, ainda assim, não atrapalham demasiadamente essa experiência cinematográfica hipnótica.

Quando o trailer surgiu pela primeira vez, fomos avisados: veja em 3D, em XD, em IMAX. Vale a pena. E é exatamente isso: o cinema imersivo é quase um personagem adicional em TRON: Ares. As cenas dentro do Grid, os efeitos de luz e reflexo, os visuais computadorizados evocando os primórdios do universo Tron — tudo isso ganha nova força no tamanho certo, com som potente e imagem que corta nossos sentidos. A montagem, elegante e precisa, combina com os efeitos sonoros para nos puxar para dentro desse mundo eletrônico; os cortes, os cliques, as trilhas — tudo se arremessa num ritmo que nos deixa quase sem fôlego.

O elenco traz Jared Leto como o titular Ares, Greta Lee como Eve Kim, Evan Peters como Julian Dillinger, Jodie Turner-Smith como Athena, Jeff Bridges retomando Kevin Flynn, entre outros. O papel de Bridges é menor — e é uma pena a participação tão pequena de Jeff Bridges, sempre o Flynn original. No entanto, sua aparição, por mais breve, funciona como um impulso de nostalgia, de ligação com os dois filmes anteriores, especialmente para quem acompanha a saga desde 1982. Ele retorna como uma “cópia digital” de Flynn, consciente, existindo no Grid offline ou versões paralelas — um retorno que desafia a morte vista em Legacy e torna seu personagem uma lembrança viva e simbólica do que o Tron sempre representou. 

A trama se move em terreno já bastante conhecido: corporações rivalizando, inteligências artificiais ganhando auto-consciência, códigos míticos que concedem poder, dilemas éticos entre máquina e humano. TRON: Ares introduz o “Permanence Code”, código escondido por Flynn para permitir que construções digitais possam permanecer fora do Grid por mais tempo, superando uma limitação anterior, o que traz o conflito central: Julian Dillinger quer explorar Ares e essa tecnologia para ganhos — militares, corporativos — enquanto Ares, uma vez lançado ao mundo real, começa a questionar seus parâmetros. 

Porém o roteiro é sim muito raso, sem nenhuma novidade — apesar de trazer a questão da inteligência artificial. O filme não inventa nada. Muito do que foi usado aqui já havia sido, há muitas décadas, pensado por Stanley Kubrick. Resultou, após sua morte, em A.I.: Inteligência Artificial (2001). Vemos mais uma vez aqui a fábula do eletrônico (mecha) que quer ser um humano (orga). Porém com o passar dos anos, e superficializando mais, a entrega de TRON: Ares é magnífica. Rønning parece mais preocupado em moldar o espetáculo do que em aprofundar o personagem que, embora tente — Ares, Eve, Athena —, acabam um pouco aquém de se tornarem figuras plenamente tridimensionais. Há tensão, há dilemas morais, mas sem a densidade filosófica que o tema de IA pede.

Tecnicamente, o filme impressiona. Os efeitos visuais, com CGI de ponta e trabalho de computação gráfica que remete ao Tron original nos momentos em que Ares retorna ao mundo computacional da época — essa recriação de Grid clássico é um deleite para quem acompanha desde 1982. As sequências de ação combinam estética moderna com homenagem retro, há uso frequente de light cycles, de prédios digitalizados, de efeitos de expansão digital que se ligam visualmente ao que Wendy Carlos fez no original — embora adaptado com mais recursos, mais brilho, mais saturação, mais reflexo. Os cenários reais versus os virtuais contrastam bastante — por exemplo, a passagem do digital ao mundo físico é trabalhada com cenas de luz intensa, corredores escuros, superfícies brilhantes, reflexos quase espelhados; a cinematografia entende que Tron é sobre visualidade, sobre espelhos de luz e sobre a sensação de que, ao pisar no mundo digital, você esteja entrando num sonho tecnológico.

A montagem é excepcional — ela dialoga muito bem com a trilha sonora, e há momentos que parecem que o filme foi construído para aquelas faixas. A trilha sonora dispensa comentários. Feita pelo Nine Inch Nails, ela bebe diretamente na fonte do Daft Punk de Tron: O Legado (2010). Parece que o filme foi feito com base na trilha e não o contrário. Trent Reznor e Atticus Ross (sob o nome Nine Inch Nails) compõem 24 faixas, com produção, mixagem, programação e performance deles mesmos, sem orquestra, apostando em texturas eletrônicas, síntese, ruído, luzes pulsantes e atmosferas densas. Faixas como "Init", "Forked Reality", "As Alive As You Need Me to Be" e "Shadow Over Me" se alternam entre tensão pura, ambientação sonora, e até melodias vocais que surgem em momentos chaves, reforçando a emoção e identidade do filme. 

A mistura de visuais, montagem, som e música cria momentos memoráveis: efeitos sonoros cortam nossos ouvidos no cinema, especialmente nas cenas de transição do digital para o real, nas explosões de luz, nas lutas entre programas humanizados ou quase humanos, tudo isso orquestrado (no sentido de “organizado com precisão”) com cortes bruscos, silêncios curtos, retumbos e ressonâncias eletrônicas que mexem com o corpo.

Sobre as atuações: Jared Leto entrega o que dele se espera: presença, uma certa ambiguidade, vaivém entre frieza tecnológica e centelhas de humanidade. Não surpreende, mas sustenta Ares bem. Eve (Greta Lee) é simpática no papel de humano que entra no conflito, mas poderia ter sido mais explorada. Athena (Jodie Turner-Smith) é visualmente potente, impondo-se como antagonista ou aliada contingente, mas suas motivações ficam na superfície. E Evan Peters — meu incômodo eterno com Evan Peters, um ator que só sabe interpretar a si mesmo, fazendo caras de psicopata que não cabem em um filme como TRON. É a mesma expressão que ele tem em American Horror Story ou em Monstro: Dahmer. Péssima escalação, um péssimo ator. Ainda assim, Peters tem momentos de expressividade, mas pouco disso é usado para enriquecer o filme. Jeff Bridges, apesar de breve, faz o que pode, e o retorno simbólico de Flynn funciona mais como ressonância nostálgica do que como arco dramático novo.

O design de produção, o uso de iluminação, o contraste de cenários de alta tecnologia — laboratórios, rastros de luz, corredores limpos de metal, superfícies refletoras, painéis abandonados do Grid original — tudo isso está afinado com uma direção de arte refinada. Os figurinos, os efeitos de maquiagem ou transformação digital, os veículos de luz: todos impecavelmente trabalhados.

Claro, há problemas: o ritmo em certos trechos parece dar pequenas pausas que convidam à reflexão — mas o filme raramente se aprofunda. As perguntas propostas — o que nos torna humanos? Até que ponto uma IA pode ou deve transcender seus limites? — são levantadas, mas resolvidas de maneira muito direta, sem sutilezas. As reviravoltas são previsíveis, os arcos de personagem não se arriscam muito, e o confronto final apela ao espetáculo mais do que ao significado profundo. Ainda assim, isso não é um defeito fatal: é parte do gênero blockbuster, do entretenimento de massa — e nesse quesito TRON: Ares se sai maravilhosamente.

Para quem conhece a saga dos filmes desde 1982, é um deleite rever as cenas computadorizadas como no original quando Ares volta ao mundo computacional da época. Há homenagens visuais e conceituais — Grid, discos de identidade, luzes cortantes, reflexos, o espírito dos efeitos de luz e sombra, da matemática visual que fez o Tron original se destacar — tudo isso ressuscitado com novas ferramentas, brilho e escala. Essas passagens remetem aos momentos icônicos do original, e para esse espectador veterano, são verdadeiros abraços ao passado.

No balanço final, TRON: Ares é um filme que talvez não vá figurar entre os mais filosóficos da ficção científica, mas dificilmente será esquecido pelos sentidos. É entretenimento de primeira, para ser visto como experiência, menos como tratado. Talvez, se tivesse um roteiro mais ousado e mais investimento em desenvolvimento de personagens, poderia ter sido ainda mais. Mas no cenário atual do cinema, esse é o tipo de blockbuster raro que se preocupa tanto com a qualidade visual, com a harmonia entre som e imagem, com a sensação de que estamos entrando em outro universo — e consegue de fato nos transportar.

Se você desligar o cérebro, deixar de exigir originalidade dramática, aceitar que já viu variações dessa história antes, TRON: Ares entrega exatamente o que promete. Um espetáculo. E, por isso, merece ser visto na tela grande, absorvido pelas luzes, pelo som, pela imersão — e apreciado por aquilo que faz melhor: ser visão, ser ruído, ser luz.

outubro 07, 2025

Uma Batalha Após a Outra (2025)

 


Título original: One Battle After Another
Direção: Paul Thomas Anderson
Sinopse: Quando seu antigo inimigo ressurge após 16 anos, um grupo de ex-revolucionários se reúne para resgatar a filha de um dos seus membros.


Desde o início, o filme já prenuncia seus problemas: a maneira como exalta terroristas. A premissa de ex-revolucionários, idealizados, libertários forjando ações violentas contra o governo ou contra forças militares, com toda pompa e “heroísmo”, soa perigosamente parecida com glorificação. E isso continua ao longo do filme. Esse tipo de obra que coloca terroristas como protagonistas heroicos me incomoda profundamente: não é só questão de opinião, é questão de ética no cinema. É como uma versão americana do brasileiro O Que É Isso, Companheiro? — filme pífio, que celebra terroristas como heróis nacionais, o mesmo tipo de tratamento “idealizador” recebe aqui em Uma Batalha Após a Outra.

Vou arriscar dizer: desde Titanic que eu sempre detestei Leonardo Di Caprio. Acho péssimo ator, com aquela mesma cara de sonso em todos os filmes dele. E aqui ele interpreta Bob Ferguson, ex-revolucionário, pai de Willa, etc. O papel pede uma certa intensidade, certo grau de carisma, de conflito — mas sua expressão parece congelada num molde “o peso da revolução” sem nunca realmente mostrar variações profundas. Eu cheguei a torcer o filme inteiro para o personagem dele ser morto pelo Coronel Lockjaw (Sean Penn). Simplesmente porque seria uma resolução mais dramática e coerente com muitas das tensões que o roteiro planta, mas se recusa a colher.

Em contrapartida, Sean Penn está excelente. Quando o filme acerta, o mérito é dele. Ele interpreta o coronel Lockjaw, vilão militar, perturbado, odioso, com uma brutalidade que quase beira o grotesco, mas ele consegue dar camadas, dar presença. Ele é um dos poucos pontos altos do filme. Acho que ele consegue fazer algo interessante justamente porque o roteiro já o entrega quase como caricatura, e ainda assim Penn consegue extrair algo que incomoda de verdade, algo visceral.

Falando em roteiro: fraco e previsível. Mesmo quem vê poucos filmes ou não acompanha sinopses, já na primeira hora dá para saber para onde tudo vai: o ex-revolucionário que vive escondido, a filha desaparece, o antagonista ressurge, há perseguições, confrontos morais, e no final uma cena de grande tensão que resolve o conflito com sangue, olhar de redenção ou sacrifício. É tudo clichê. A viagem emocional parece de mão única: se metaforizam lutas revolucionárias, se demonizam militares, forças de segurança, policiais, espectadores “de direita”. É um filme claramente político, de viés de esquerda, que demoniza qualquer força de segurança e pessoas de direita como vilões contumazes. Lastimável. Há uma polarização forçada, uma divisão simplista entre “bons” e “maus” ideológicos, sem espaço para nuance, para ambiguidade, para mostrar que realidades sociais são muito mais complexas.

Tecnicamente há momentos de beleza — por exemplo, a fotografia, assinada por Michael Bauman, capta belas paisagens, contrastes entre ambientes urbanos amontoados e desertos, cenas de perseguição com bons enquadramentos, bons usos de profundidade de campo, bons planos de paisagens. Também há mérito em algumas sequências de ação, em tomadas amplas, em cores que destacam o peso do deserto ou da fronteira, do isolamento. Contudo, essas virtudes visuais quase não compensam os defeitos estruturais.

A edição tenta manter ritmo, mas falha: o filme é arrastado, extremamente longo — quase 3 horas (162 minutos) de duração. Há cenas de perseguição exageradamente longas que deveriam tensionar, mas entediam: estendem-se além do necessário, repetem motivos visuais que não acrescentam, os cortes não resolvem a lentidão, no lugar de sufocar criam sono. A trilha sonora, de Jonny Greenwood, normalmente um compositor que admiro muito, aqui me irritou demais: nas cenas de perseguição especialmente, ele usa uma nota só — uma espécie de tom repetido — por minutos a fio; aquilo para os ouvidos foi insuportável. O que poderia sustentar tensão, vira monotonia enfadonha.

Personagens: rasos, caricatos, unidimensionais, não cativam de modo algum. Bob é idealizado, abatido, mas pouco convincente emocionalmente; Willa tem algum potencial, mas falta profundidade, falta desenvolvimento que vá além: “filha resolvendo problemas do pai”, etc. Perfidia, a revolucionária que comanda o grupo, é inspirada no discurso de resistência, mas falta diálogo interior, falha interna, contradições reais. Os antagonistas, além de Lockjaw, também pouco mais que símbolos: o “funcionário do governo mau”, o militar corrupto, etc. Não há realmente surpreendente. Até senti que boa parte do elenco está preso a uma visão de pinceladas grossas de papel político.

O viés político, como já disse, é tão transparente que transforma o filme quase em panfleto: exaltação do “ativo revolucionário”, demonização de quem está do outro lado (policiais, militares, forças de segurança, pessoas de direita) como se todo mundo que não está na causa fosse automaticamente culpado ou mau. Um discurso de esquerda simplista, que ignora os excessos, os abusos, de quem luta, ou de quem supostamente é o “vilão”, apenas para afirmar “resistência é sempre nobre, o Estado/instituições são sempre corruptas”. Isso faz o filme perder credibilidade para mim.

Se quisermos entrar em aspectos técnicos adicionais: o som, quando há silêncio, poderia funcionar melhor; mas muitas vezes o filme preenche tudo, não deixa espaço para respirar. O desenho de som nas cenas de ação é barulhento, mas não estimulante — parece querer “bombar”, impressionar, e acaba sendo sobrecarregado. A mixagem prioriza efeitos grandiosos (explosões, tiros, perseguições), mas esquece de balancear com expressão emocional sutil.

A direção de Paul Thomas Anderson mostra ambição: tentar combinar épico, thriller, ação, política, drama familiar e até humor ácido. Mas a ambição parece desmedida para o roteiro que ele construiu — porque sem momentos de verdadeira virada, de surpresa, de dúvida genuína, tudo fica previsível. A montagem de tempo sofre: há desvios que prolongam cenas de perseguição, diálogos expositivos que se repetem, flashbacks ou interlúdios políticos que contribuem pouco para a densidade emocional ou, pior, atrapalham o ritmo.

Mesmo visualmente bonito, em muitos momentos parece que se quer impressionar com escala, com plano amplo, com ruído de helicóptero, filmagem de fronteira, muralhas, bases militares, mas falta alma. Toda vez que eu pensava que o conflito interno de um personagem ia emergir — Bob, Lockjaw, Perfidia — o filme silencia, volta a ação, volta à perseguição ou ao espetáculo. Faltam cenas de silêncio, de internalização, de sombra — de demonstração de fraquezas reais, algo que vá além do manifesto político.

No final, a resolução, esperada, é tão previsível que não surpreende. O filme chega a uma cena de clímax com perseguição de carro, confronto militar, confronto moral, sacrifício ou revelação, como se estivéssemos assistindo a fórmula genérica de “filme de ação político com herói idealista contra vilão abusador”. E isso leva à sensação de desperdício: já que o orçamento é enorme, a produção esforçada, elenco de peso — tudo para entregar algo que parecia muito ambicioso mas que no fim não escapa do lugar-comum.

Em suma: Uma Batalha Após a Outra tem lampejos — bons atores (especialmente Sean Penn), bons visuais, ideias interessantes —, mas no conjunto falha em ser um filme que penitencie, que provoque reflexão genuína além do que já se viu, que desenvolva personagens complexos ou que escape do panfleto ideológico. É uma obra mais de discurso do que de emoção ou de dúvida. Para mim, não passa de mais um filme que exalta terroristas como heróis, que insiste no maniqueísmo, que explora pretensamente a resistência como causa estética, mas raramente como conflito moral real.

outubro 06, 2025

Twinless (2025)

 


Título original: Twinless
Direção: James Sweeney
Sinopse: “Twinless” é uma dramédia que segue a improvável amizade entre dois homens enlutados, Roman (Dylan O’Brien) e o personagem de James Sweeney, que se conhecem num grupo de apoio após a morte dos seus irmãos gêmeos. A trama aprofunda a relação deles à medida que segredos do passado emergem, questionando as linhas entre identidade e obsessão.


Twinless chega como um desses raros filmes que parecem ao mesmo tempo íntimos e expansivos: uma dramaturgia de câmera que se abre em implicações morais e psicológicas tão amplas que seu alcance ecoa muito além dos vinte e poucos personagens que povoam suas cenas. James Sweeney assina roteiro e direção com uma clareza de propósito pouco comum em cineastas tão jovens — uma mão que tenta (e consegue) equilibrar o humor seco com a dor verdadeira, a comédia negra com uma certa brutalidade emocional. O filme teve sua estreia em Sundance e saiu do festival com o tipo de recepção que transforma um título pequeno em referência — o caminho típico dos filmes que, sem alardes industriais, acabam sendo citados pelos espectadores como acontecimentos.

Do ponto de vista narrativo, o filme parte de uma premissa desconcertante na sua simplicidade: Roman (interpretado por Dylan O’Brien) é um homem dilacerado pela perda do irmão idêntico, Rocky; num grupo de apoio para “twinless” — gêmeos que perderam seu outro — ele conhece Dennis (James Sweeney), e a amizade que nasce entre os dois vai revelando camadas de desejo, mentira e culpa. O roteiro é econômico e às vezes metódico, mas essa contenção é deliberada: Sweeney trabalha com repetições, pequenos rituais (gestos, pedidos de “para viagem”, hábitos alimentares) que funcionam como metrônomos emocionais — e que o filme usa para criar uma sensação de memória coletiva, de um passado que insiste em reaparecer no presente. O jogo de duplicidade no enredo — e a virada moral central, que expõe motivações ocultas e um acidente fatal com implicações diretas — é tratado sem artifícios narrativos gratuitos; o choque vem do choque das verdades singulares que os personagens se impõem.

A peça central — e aqui é preciso ser direto — é a performance dupla de Dylan O’Brien como Roman e Rocky. Há uma precisão física e um minimalismo vocal que definem cada irmão: Rocky é calor e perigosidade contida; Roman é o negativo dessa energia, uma espécie de ausência que ocupa espaço. O’Brien encontra, com sutilezas microfísicas, as diferenças entre dois corpos iguais; é um trabalho de sombras, de olhar e de respiração, que exige da mise-en-scène uma coreografia precisa de cortes e enquadramentos para que não haja confusão e para que se preserve a ilusão dramática. Sweeney, interpretando Dennis, equilibra a autoexposição do personagem com uma direção que, por vezes, o deixa em cena com uma crueza quase documental — uma escolha que tanto humaniza quanto desnuda suas falhas. Esses contrapontos de atuação sustentam grande parte da tensão moral do filme. 

Tecnicamente, Twinless é um estudo de economia formal. A fotografia de Greg Cotten privilegia tons frios quando a narrativa escava a ausência e abre-se para uma paleta mais saturada nos fragmentos de flashback que trazem Rocky à vida — a câmera se move menos nos momentos de luto e mais nos momentos de confusão social, sugerindo que a dor se instala quando o mundo exige interação. A montagem de Nikola Boyanov é cirúrgica: repetições são cortadas com sutileza para criar eco, e os elos temporais entre lembrança e presente são preservados por um ritmo que aceita pausas desconfortáveis, respirações longas e silêncios que fazem ruído. A trilha de Jung Jae-il acompanha sem manipular; ela é um punhado de texturas que empurra o espectador para dentro das cenas, sem entregá-las por completo. Esses elementos técnicos não são exibicionistas: funcionam como suporte invisível de um drama que já é forte por si só. 

Há também algo de formalmente arriscado na forma como Sweeney alterna tonalidades — de um primeiro ato quase aconchegante, com comédia social seca e diálogos que soam autênticos, para um segundo movimento onde o filme se torna mais escuro, quase um thriller psicológico. Essa mudança de registro poderia cair no derrapante, mas o risco aqui é justificado pela coerência interna do roteiro: a mentira central que Dennis conta ao se aproximar de Roman não é um truque de trama gratuito, é uma ferida cuja cicatrização (ou não) define o caráter dos protagonistas. Ele é um "gêmeo sobrevivente" (leiam sobre isso). Ainda assim, o filme não evita a ambiguidade moral — em vez disso, a cultiva; e essa decisão estética é uma das razões pelas quais a experiência fica presa na mente após os créditos finais. 

Não posso ignorar, ao comentar a recepção, o incidente que cercou a exibição inicial: clipes íntimos vazaram online durante o circuito de festival, forçando medidas de remoção e repercutindo nas redes e na imprensa sobre o abuso da exposição não autorizada de material sensível. Foi um lembrete desagradável da agressividade do público das redes, e de como a circulação prévia de imagens pode ferir o processo de relação entre obra e espectador, sobretudo quando envolve cenas vulneráveis. As falas públicas de atores e produtores condenando a divulgação deixaram claro que aquilo feriu mais do que a estratégia de marketing — feriu a confiança do ato coletivo de ver um filme numa experiência de estreia. 

Sobre a peça íntima que o filme constrói: há momentos em que a comédia e o escárnio social se tornam instrumentos para revelar uma tristeza muito maior — e é aí que Twinless encontra sua voz mais singular. Não é apenas uma fábula sobre perda; é uma exploração do que a identidade faz quando uma metade desaparece. O filme questiona como nos definimos pelo reflexo do outro, e como o corpo de alguém que foi amado pode se transformar em palco de culpa, desejo e redenção. Em muitos cortes de câmera, Sweeney parece interessado não em responder, mas em mostrar as fraturas: a cena do hotel, o diner que funciona como lugar de reconciliação fragmentada, os momentos domésticos onde o silêncio pesa mais do que qualquer diálogo. Essas escolhas conferem à obra uma textura que é rara: áspera quando precisa e delicada quando o assunto é o interior dos personagens.

E eu digo aqui, de foro íntimo, sentimentos sintetizam um pouco do meu impacto pessoal diante do filme — não como dados frios, mas como declarações sentidas: muito provavelmente o melhor filme do ano até agora; em muitos, muitos aspectos me toca de tantas formas diferentes e profundas que é realmente quase impossível colocar em palavras. Colocadas no texto, essas frases não são hipérbole vazia: elas representam a intensidade de uma experiência cinematográfica que, em tempos de narrativas por decreto e efeitos retóricos, devolve ao espectador uma sensação de afeto e desconforto autênticos.

Há, claro, arestas a aparar. Alguns críticos apontaram que certos momentos — especialmente o clímax em que tensões explodem fisicamente — sofrem de pequenas imprecisões de tom; a transição do humor para o horror íntimo poderia, em mãos menos competentes, virar caricatura. Mas o que distingue Twinless é que essas imprecisões existem dentro de um corpo cinematográfico cheio de coerência emocional: as falhas são quase palpáveis porque o filme ousa demais para permanecer frio. Isso o aproxima mais da aventura do que do exercício seguro. 

No conjunto, Twinless funciona como um pouco de tecido humano costurado com precisão: atuações que não fingem, direção que respeita o recorte e a respiração das cenas, e uma estética técnica que não busca ostentação, mas eficácia dramática. É também um filme cheio de perguntas: sobre culpa, sobre a responsabilidade afetiva que temos uns pelos outros, e sobre como a identidade se dobra quando o outro se vai. Em tempos de cinema que frequentemente prefere dar respostas fáceis, Sweeney toma a decisão contrária: multiplicar fraturas, abrir fissuras e convidar o público a passar a mão nelas.

Se me pedirem uma conclusão curta, digo que Twinless é um exemplo admirável de cinema contemporâneo que se faz pequeno em escala e grande em ambição humana. É um filme que respira com os personagens, que se permite desconforto e que, por isso mesmo, permanece. Para quem busca experiências que misturem humor ácido, tragédia íntima e inquietação moral — sem pressa de fechar as perguntas —, Twinless é um filme que exige e recompensa. E, no meu caso, deixa a impressão de que veremos, por muito tempo, ecos do que ele disse e do modo como disse.