Há filmes cujo valor se encontra menos naquilo que dizem e mais na forma como o dizem. A Greve, primeiro longa-metragem de Sergei Eisenstein, é um exemplo cristalino dessa máxima. O cineasta russo, que mais tarde se tornaria uma das figuras mais influentes da teoria e prática do cinema mundial, estreia aqui não apenas um filme, mas um método; uma gramática visual que alteraria para sempre a maneira como filmes seriam montados, percebidos e sentidos. Entretanto, se a técnica se ergue como uma montanha, a narrativa que sustenta essa estrutura revela-se frágil, panfletária e caricatural. Ao assistir hoje, quase um século depois, o impacto estético permanece vibrante, enquanto o impacto ideológico dissolve-se em fumaça.
Antes de qualquer discussão, é necessário registrar que a avaliação desta obra se apoia fortemente na sua execução formal — montagem, ritmo, composição visual — e, em menor grau, no poder simbólico do desfecho. As três estrelas e meia que atribuí ao filme são, em enorme parte, pela impecável construção técnica que Eisenstein apresenta, elaborando ideias de montagem que, na época, estavam muito além da imaginação da maioria dos realizadores contemporâneos. Eisenstein não era apenas um diretor; era um arquiteto da percepção. Não é à toa que ele escreveria, anos mais tarde, dois memorandos essenciais para o estudo da história do cinema: A Forma do Filme e O Sentido do Filme. Neles, o diretor não se limitava a observar que a montagem construía sentido — ele literalmente aplicava fórmulas matemáticas à estrutura de corte, à dinâmica de choque entre planos, ao ritmo musical das transições. Em A Greve, essa concepção ainda embrionária já demonstra força surpreendente.
A sensação ao assistir ao filme é a de que a imagem está em constante combustão. Eisenstein não monta para “conectar” cenas, mas para fazer explodir significados. O ritmo visual, por vezes acelerado, por vezes convulsivo, antecipa técnicas que se tornariam clássicas décadas depois — e que alcançariam ápice expressivo no cinema de Alfred Hitchcock, especialmente em Psicose (1960). A famosa sequência do chuveiro funciona, aliás, como um herdeiro direto desse estilo: cortes bruscos, tempo interno da imagem quebrado para provocar choque físico, associação sonora que intensifica a sensação de violência mesmo quando nada explícito é mostrado. Eisenstein já estava fazendo isso em 1925, com precisão quase cirúrgica. É estonteante, dá vertigem, é fenomenal.
Contudo — e aqui começa o outro lado —, se a forma é brilhante, o conteúdo é tão raso e infantilizado quanto um cartaz escolar de propaganda ideológica. A Greve foi, literalmente, um filme encomendado pelo regime soviético nos seus primeiros anos, destinado a promover o ideal heroico da classe trabalhadora contra os malvados proprietários dos meios de produção. Mas o que poderia ter sido um retrato potente das tensões sociais transforma-se em comédia involuntária. Os patrões são mostrados como figuras grotescas, esfregando as mãos em gestos caricatos dignos de um vilão de desenho animado. Os trabalhadores aparecem como mártires exagerados, sempre dotados daquela expressão de sofrimento elevado a um patamar melodramático quase circense. É impossível não rir — e ao rir, o filme perde o seu próprio propósito.
A greve, retratada como libertação heroica, logo se mostra um desastre humano. A fome se instala, crianças desesperam-se, famílias entram em colapso. E não há qualquer nuance. A dor é pintada como insígnia de orgulho revolucionário, como se a miséria fosse uma forma de elevação espiritual. O filme, tentando exaltar os trabalhadores, termina por demonstrar com clareza desconfortável o resultado prático das promessas revolucionárias: muitos discursos, pouca comida. Eis aqui, ironicamente, o maior êxito crítico de A Greve quando observada com distância histórica: ao promover a greve como única via de emancipação, expõe o próprio fracasso desta ideia quando aplicada a uma sociedade real. Se os “oprimidos” cruzam os braços, surgem outros tantos dispostos a assumir seus postos — trabalhadores que, por sua vez, também lutam para sobreviver. A lógica interna do filme revela, sem querer, a fraqueza econômica e social do sistema que tentava defender. Um experimento já ultrapassado no momento mesmo de seu nascimento.
É impossível observar A Greve hoje sem compreender que se trata de um gesto propagandístico. A URSS recém-instalada buscava construir símbolos, mitologias, heróis. Eisenstein foi convocado como engenheiro dessas imagens (assim como Riefenstahl faria depois com o nazismo). Mas a história o ultrapassa, e a própria obra evidencia algo que o regime tentou mascarar: um sistema político não se sustenta em slogans. A greve, como apresentada, não liberta; rompe, destrói, esvazia. E o filme termina, ironicamente, afirmando o oposto daquilo que queria dizer. É o famoso tiro pela culatra.
E, no entanto, apesar de tudo isso, A Greve permanece um filme fundamental — não pelo que narra, mas por como narra. A construção das massas como unidade dramática, o uso de montagem como instrumento ideológico e sensorial, a fusão entre forma e movimento, tudo isso influenciaria cineastas como Dziga Vertov, Pudovkin, Hitchcock, Godard, Coppola e tantos outros. A técnica transcende a ideologia. Eisenstein, consciente ou não, estava criando a espinha dorsal de uma linguagem que faria do cinema não apenas uma arte de mostrar imagens, mas de organizar pensamentos através delas.
No fim das contas, A Greve é uma obra que se divide. Metade brilhante, metade vazia. Metade revolução formal, metade cartaz panfletário. Mas, como toda peça que marca uma era, ela permanece viva. Não se assiste a A Greve para acreditar nela, mas para enxergar a história de uma linguagem que ainda respiramos — e, principalmente, para perceber que a força do cinema não está no que ele afirma, mas no que ele revela sem querer.
E, no caso deste filme, o que ele revela é poderoso demais para ser ignorado. Elegante ou não, simpático ou não, Eisenstein abriu mão da neutralidade. E ao fazê-lo, expôs tanto sua genialidade quanto o fracasso de um sonho político que nunca se concretizou.
Às vezes, o cinema ilumina o mundo. Outras vezes, o entrega ao ridículo. A Greve faz os dois ao mesmo tempo — razão pela qual continua, até hoje, impossível de esquecer.
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