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outubro 30, 2025

Tubarão (1975)

 


Título original: Jaws
Direção: Steven Spielberg
Sinopse: Um terrível ataque a banhistas é o sinal de que a praia da pequena cidade de Amity virou refeitório de um gigantesco tubarão branco, que começa a se alimentar dos turistas. Embora o prefeito queira esconder os fatos da mídia, o xerife local pede ajuda a um ictiologista e a um pescador veterano para caçar o animal. Mas a missão vai ser mais complicada do que eles imaginavam.


Tubarão — aquela sequência de notas que entrou no imaginário coletivo e não mais saiu, a imagem do azul sereno rasgada por um bocão mecânico e a sensação de que, a cada mergulho, o cinema reinventou o medo — chega aos cinquenta anos como um pequeno colosso intocado: remasterizado em 4K e retomando as salas com a mesma violência elegante com que atropelou as expectativas do público em 1975. Ver Tubarão numa cópia restaurada hoje não é apenas um gesto de nostalgia; é assistir ao encontro perfeito entre um frescor de juventude autoral e um conjunto técnico cuja simplicidade foi, e continua sendo, o que o torna monumental. 

O que impressiona primeiro, ainda que seja uma impressão quase invisível, é a fluidez com que o filme corre — a tal ponto que perdemos a noção do tempo dentro da projeção. Spielberg, então um jovem diretor com pressa de fazer história, aprendeu na maré alta de problemas de produção a domar o ritmo: o mal funcionamento do tubarão mecânico — o famoso "Bruce" — forçou escolhas que se mostraram geniais. A falha técnica, longe de comprometer o filme, impôs uma economia formal: a câmera aponta, insinua, recua; a música de John Williams (que ganhou o Oscar e se tornou um ícone cultural) faz metade do trabalho do monstro; e a edição de Verna Fields, premiada pela Academia, costura silêncio, corte e disparo de pânico com precisão de relojoeiro. Esse jogo de ausência e promessa constrói uma suspensão contínua — e é essa suspensão que faz o tempo evaporar dentro da sala. 

Há uma inteligência técnica notável em como Tubarão cria ponto de vista sem mostrar. A famosa alternância de dois sons da partitura — simples, primitiva, imediatamente interpretada como “o que se aproxima” — é um estudo sobre sugestão. John Williams transforma dois tons em personagem: o som, por repetição e expectativa, vira processo narrativo; é ele que anuncia a "cena" do tubarão antes que qualquer dente apareça na tela, condicionando a respiração do espectador. Essa decisão musical convive com um design de som que privilegia efeitos que não imitam o realismo documentarista, mas que o amplificam: bolhas, água, cordas que cortam o espaço sonoro como lâminas. O resultado é um equilíbrio entre o que se ouve e o que se vê, onde ambos se alimentam para produzir suspense absoluto. 

No elenco, a triangulação entre Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw é uma lição de economia dramática. Scheider é o homem prático, a autoridade cujo ceticismo convive com uma ansiedade contida; Dreyfuss, com sua energia histérica, encarna o cientista tão fascinante quanto frustrado; Shaw afunda-se em arcaísmos marinhos e transforma o personagem Quint numa peça de teatro bruto e musical, cuja chegada é uma explosão de voz, história e ameaça. Cada ator entrega nuance sem excessos, permitindo que a economia do roteiro e o pulso da realização encontrem em cada gesto o seu peso exato. A dinâmica entre os três no barco — momento central onde a dramaturgia e o espetáculo técnico convergem — é um dos melhores exemplos de trabalho de elenco em que a fala e a pausa valem igualmente. 

Tecnicamente, a cinematografia de Bill Butler merece destaque pela sua ambiguidade calculada: ele ilumina como se tivesse medo de revelar demais, privilegia horizontes vazios e planos médios que sugerem o dentro do mar sem mostrá-lo por inteiro. As escolhas de enquadramento transformam a água em uma superfície de tragédia: vastidão que engole índices visuais, camadas cromáticas que passam do turquesa pastoral ao negro ameaçador. A câmera — muitas vezes a bordo (literalmente) do Orca — tem uma fisicalidade que faz o espectador sentir o balanço, o sal, a vertigem do mar. A direção de Spielberg aqui é um estudo de compromisso entre narrativa e espetáculo: ele explora travellings, planificações e closes com um senso de peso que, hoje, soa como aula de como manejar o suspense sem artifícios modernos. 

A edição funciona como músculo do filme. Verna Fields foi premiada por uma montagem que respira entre a contenção e a explosão: cortes repentinos para o mar aberto, dilatações em sequências de silêncio e, logo em seguida, cortes frenéticos quando a violência se impõe. É uma montagem que entende o corpo do público: sabe quando desacelerar para que a câmera, a música e a imaginação façam o trabalho sujo; e sabe quando golpear. A cena da festa na praia, a sequência do ataque ao menino, o funeral improvisado — cada um desses blocos depende de um ritmo interno meticulosamente construído, e a montagem é a ferramenta que dá forma a esse fluxo emocional. 

Falemos do tubarão mecânico porque é quase impossível dissociar a lenda do filme das histórias de bastidor: o aparelho, chamado nos sets de Bruce, viveu uma vida própria — problemático em alto-mar, sensível à corrosão do sal e sujeito a constantes panes. Essas dificuldades empurraram Spielberg a abandonar a exibição direta do monstro por longos trechos, e a consequência estética foi sublime: a imagem que faltava despertou imaginação e pavor. Assim, o filme ganhou um antagonista mais eficaz do que qualquer efeito realista poderia oferecer, porque o medo é narrado como ausência e antecipação. A própria gênese do blockbuster moderno nasce, ironicamente, de um colapso técnico que obrigou o cinema a ser mais criativo. 

No contexto histórico e de indústria, Tubarão é o divisor de águas: primeiro verdadeiro fenômeno de verão que redefiniu a lógica de lançamento das grandes produções — o chamado “summer blockbuster”. O impacto econômico e cultural foi imediato: bilheteria recorde, marketing massivo, filas e um medo coletivo que fez praias vazias por semanas. Mas o legado não é apenas comercial; foi também estético. Após Tubarão, o espaço do suspense mainstream foi reconfigurado: filmes passaram a pensar em escala, em campanha e em como transformar simplicidade de premissa em experiência monumental. É curioso pensar que um filme tão enxuto, formalmente tão contido, inaugurou um caminho que privilegiaria o espetáculo elevado e, paradoxalmente, a simplicidade ter sido o motor dessa ambição.

A restauração em 4K e as exibições comemorativas (incluindo versões em IMAX para algumas reexibições) são mais do que um capricho nostálgico: são a reafirmação de que a textura do filme — do ruído das ondas ao brilho do sol sobre a pele — merece ser vista com a maior fidelidade possível. O 4K aprofunda detalhes; mostra a pele dos atores, a ferrugem do convés, os micro-movimentos do mar com uma nitidez que revela o quanto a mise-en-scène de Tubarão é projetada. Ainda assim, a restauração não transforma o filme num objeto de museu estéril; ao contrário, devolve ao público o frescor de uma experiência sensorial que, em 1975, chocou e hoje comove pela precisão de suas escolhas. Ver o rosto de Quint em close, ou o movimento quase imperceptível de Dreyfuss ao observar o horizonte, ganha nova carga quando a imagem é devolvida ao seu esplendor técnico. 

E há, por fim, a questão ética e ecológica que o filme deixou como sombra: a imagem do tubarão como monstro contribuiu, por décadas, para um medo que teve consequências reais para a conservação marinha. Esse diálogo entre ficção e mundo real é complexo — Peter Benchley, autor do romance, e sua mulher passaram a trabalhar com conservação mais tarde, tentando mitigar implicações indesejadas. Tubarão nos lembra que o cinema, quando atinge as massas, molda percepções e que a beleza do ofício também carrega responsabilidade. 

Assistir hoje, na melhor cópia possível, é confirmar que o filme não envelheceu por imposição de moda, mas amadureceu por virtude. A fluidez da qual falo — essa sensação de "não ver o tempo passar" — nasce justamente da soma de escolhas discretas: trilha que cria antecipação, direção que privilegia sugestão, montagem que regula a adrenalina e performances que resistem à grandiloquência. Não há exagero técnico nem afetação de estilo; há, sim, um controle de efeito que transforma cada minuto em componente de um mecanismo de suspense perfeito. Quando o bote balança, quando a montagem decide que o barulho do mar é silêncio e quando a música monta a tensão como quem afia uma lâmina, o espectador não contabiliza cenas; entrega-se ao fluxo. Isso é rara perfeição narrativa. 

Concluo dizendo que Tubarão é uma obra em que técnica e mito se confundem. É filme que ensinou gerações de cineastas a transformar limitação em invenção, a transformar economia formal em intensidade dramática e a entender que, no cinema, o invisível pode ser muito mais temível que qualquer prótese mecânica. Ver Tubarão agora, restaurado, é perceber que sua grandiosidade não reside no monstro mostrado, mas no pacto silencioso entre plateia e filme: o pacto de ser levado, de deixar o relógio do lado de fora e de ser obrigado a imaginar o pior — e, nesse imaginar, encontrar uma das mais puras experiências cinematográficas já realizadas. Em uma época em que tantos filmes se confundem entre barulho e excesso, Tubarão se mantém como prova de que o cinema, quando dominado com economia e precisão, ainda tem o poder de petrificar o corpo e encantar a mente. E é por isso que, mesmo meio século depois, continua entre os melhores presentes que a sétima arte pode nos dar.