Twinless chega como um desses raros filmes que parecem ao mesmo tempo íntimos e expansivos: uma dramaturgia de câmera que se abre em implicações morais e psicológicas tão amplas que seu alcance ecoa muito além dos vinte e poucos personagens que povoam suas cenas. James Sweeney assina roteiro e direção com uma clareza de propósito pouco comum em cineastas tão jovens — uma mão que tenta (e consegue) equilibrar o humor seco com a dor verdadeira, a comédia negra com uma certa brutalidade emocional. O filme teve sua estreia em Sundance e saiu do festival com o tipo de recepção que transforma um título pequeno em referência — o caminho típico dos filmes que, sem alardes industriais, acabam sendo citados pelos espectadores como acontecimentos.
Do ponto de vista narrativo, o filme parte de uma premissa desconcertante na sua simplicidade: Roman (interpretado por Dylan O’Brien) é um homem dilacerado pela perda do irmão idêntico, Rocky; num grupo de apoio para “twinless” — gêmeos que perderam seu outro — ele conhece Dennis (James Sweeney), e a amizade que nasce entre os dois vai revelando camadas de desejo, mentira e culpa. O roteiro é econômico e às vezes metódico, mas essa contenção é deliberada: Sweeney trabalha com repetições, pequenos rituais (gestos, pedidos de “para viagem”, hábitos alimentares) que funcionam como metrônomos emocionais — e que o filme usa para criar uma sensação de memória coletiva, de um passado que insiste em reaparecer no presente. O jogo de duplicidade no enredo — e a virada moral central, que expõe motivações ocultas e um acidente fatal com implicações diretas — é tratado sem artifícios narrativos gratuitos; o choque vem do choque das verdades singulares que os personagens se impõem.
A peça central — e aqui é preciso ser direto — é a performance dupla de Dylan O’Brien como Roman e Rocky. Há uma precisão física e um minimalismo vocal que definem cada irmão: Rocky é calor e perigosidade contida; Roman é o negativo dessa energia, uma espécie de ausência que ocupa espaço. O’Brien encontra, com sutilezas microfísicas, as diferenças entre dois corpos iguais; é um trabalho de sombras, de olhar e de respiração, que exige da mise-en-scène uma coreografia precisa de cortes e enquadramentos para que não haja confusão e para que se preserve a ilusão dramática. Sweeney, interpretando Dennis, equilibra a autoexposição do personagem com uma direção que, por vezes, o deixa em cena com uma crueza quase documental — uma escolha que tanto humaniza quanto desnuda suas falhas. Esses contrapontos de atuação sustentam grande parte da tensão moral do filme.
Tecnicamente, Twinless é um estudo de economia formal. A fotografia de Greg Cotten privilegia tons frios quando a narrativa escava a ausência e abre-se para uma paleta mais saturada nos fragmentos de flashback que trazem Rocky à vida — a câmera se move menos nos momentos de luto e mais nos momentos de confusão social, sugerindo que a dor se instala quando o mundo exige interação. A montagem de Nikola Boyanov é cirúrgica: repetições são cortadas com sutileza para criar eco, e os elos temporais entre lembrança e presente são preservados por um ritmo que aceita pausas desconfortáveis, respirações longas e silêncios que fazem ruído. A trilha de Jung Jae-il acompanha sem manipular; ela é um punhado de texturas que empurra o espectador para dentro das cenas, sem entregá-las por completo. Esses elementos técnicos não são exibicionistas: funcionam como suporte invisível de um drama que já é forte por si só.
Há também algo de formalmente arriscado na forma como Sweeney alterna tonalidades — de um primeiro ato quase aconchegante, com comédia social seca e diálogos que soam autênticos, para um segundo movimento onde o filme se torna mais escuro, quase um thriller psicológico. Essa mudança de registro poderia cair no derrapante, mas o risco aqui é justificado pela coerência interna do roteiro: a mentira central que Dennis conta ao se aproximar de Roman não é um truque de trama gratuito, é uma ferida cuja cicatrização (ou não) define o caráter dos protagonistas. Ele é um "gêmeo sobrevivente" (leiam sobre isso). Ainda assim, o filme não evita a ambiguidade moral — em vez disso, a cultiva; e essa decisão estética é uma das razões pelas quais a experiência fica presa na mente após os créditos finais.
Não posso ignorar, ao comentar a recepção, o incidente que cercou a exibição inicial: clipes íntimos vazaram online durante o circuito de festival, forçando medidas de remoção e repercutindo nas redes e na imprensa sobre o abuso da exposição não autorizada de material sensível. Foi um lembrete desagradável da agressividade do público das redes, e de como a circulação prévia de imagens pode ferir o processo de relação entre obra e espectador, sobretudo quando envolve cenas vulneráveis. As falas públicas de atores e produtores condenando a divulgação deixaram claro que aquilo feriu mais do que a estratégia de marketing — feriu a confiança do ato coletivo de ver um filme numa experiência de estreia.
Sobre a peça íntima que o filme constrói: há momentos em que a comédia e o escárnio social se tornam instrumentos para revelar uma tristeza muito maior — e é aí que Twinless encontra sua voz mais singular. Não é apenas uma fábula sobre perda; é uma exploração do que a identidade faz quando uma metade desaparece. O filme questiona como nos definimos pelo reflexo do outro, e como o corpo de alguém que foi amado pode se transformar em palco de culpa, desejo e redenção. Em muitos cortes de câmera, Sweeney parece interessado não em responder, mas em mostrar as fraturas: a cena do hotel, o diner que funciona como lugar de reconciliação fragmentada, os momentos domésticos onde o silêncio pesa mais do que qualquer diálogo. Essas escolhas conferem à obra uma textura que é rara: áspera quando precisa e delicada quando o assunto é o interior dos personagens.
E eu digo aqui, de foro íntimo, sentimentos sintetizam um pouco do meu impacto pessoal diante do filme — não como dados frios, mas como declarações sentidas: muito provavelmente o melhor filme do ano até agora; em muitos, muitos aspectos me toca de tantas formas diferentes e profundas que é realmente quase impossível colocar em palavras. Colocadas no texto, essas frases não são hipérbole vazia: elas representam a intensidade de uma experiência cinematográfica que, em tempos de narrativas por decreto e efeitos retóricos, devolve ao espectador uma sensação de afeto e desconforto autênticos.
Há, claro, arestas a aparar. Alguns críticos apontaram que certos momentos — especialmente o clímax em que tensões explodem fisicamente — sofrem de pequenas imprecisões de tom; a transição do humor para o horror íntimo poderia, em mãos menos competentes, virar caricatura. Mas o que distingue Twinless é que essas imprecisões existem dentro de um corpo cinematográfico cheio de coerência emocional: as falhas são quase palpáveis porque o filme ousa demais para permanecer frio. Isso o aproxima mais da aventura do que do exercício seguro.
No conjunto, Twinless funciona como um pouco de tecido humano costurado com precisão: atuações que não fingem, direção que respeita o recorte e a respiração das cenas, e uma estética técnica que não busca ostentação, mas eficácia dramática. É também um filme cheio de perguntas: sobre culpa, sobre a responsabilidade afetiva que temos uns pelos outros, e sobre como a identidade se dobra quando o outro se vai. Em tempos de cinema que frequentemente prefere dar respostas fáceis, Sweeney toma a decisão contrária: multiplicar fraturas, abrir fissuras e convidar o público a passar a mão nelas.
Se me pedirem uma conclusão curta, digo que Twinless é um exemplo admirável de cinema contemporâneo que se faz pequeno em escala e grande em ambição humana. É um filme que respira com os personagens, que se permite desconforto e que, por isso mesmo, permanece. Para quem busca experiências que misturem humor ácido, tragédia íntima e inquietação moral — sem pressa de fechar as perguntas —, Twinless é um filme que exige e recompensa. E, no meu caso, deixa a impressão de que veremos, por muito tempo, ecos do que ele disse e do modo como disse.
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