Há uma grandiosidade que salta aos olhos em O Ladrão de Bagdá (The Thief of Bagdad, 1924) que não depende só do tamanho de seus cenários ou do desfile de trucagens que fazem cavalos voarem e tapetes deslizarem pelos céus. Essa grandiosidade nasce de uma aposta estética total — e, sobretudo, de um corpo em movimento: o de Douglas Fairbanks, produtor, idealizador e estrela, que transforma a tela num parque de possibilidades físicas e num catálogo de encantamentos visuais. Raoul Walsh assina a direção, mas o filme é, antes de tudo, a materialização de um sonho de Fairbanks de expandir seu carisma atlético para além da capa e da espada, tomando como base contos das Mil e Uma Noites e convertendo-os em espetáculo moderno, com intertítulos espirituosos e uma cadência circense que busca constantemente o assombro. A escala do projeto — com cenários monumentais e efeitos “de feira” depurados pela maquinaria do estúdio — se impõe desde o primeiro plano de uma Bagdá imaginada, “cidade dos sonhos do Oriente antigo”, que Walsh e a equipe erguem com uma precisão geométrica e um gosto art déco que já anunciava o casamento entre arquitetura e fantasia que marcaria parte do cinema de aventura nas décadas seguintes. É um cinema que se maravilha com a própria capacidade de fabricar maravilhas. E, ao mesmo tempo, é um filme refém do seu encantamento: quanto mais cresce o aparato, mais nítidas ficam as fragilidades dramáticas — a leveza vira frivolidade, a fábula se dilui, a repetição pesa.
A narrativa segue Ahmed, ladrão inveterado e hedonista que aprende, com dolorosa demora, que “felicidade deve ser conquistada” — ideia martelada por intertítulos e provas épicas, espécie de gamificação moral da aventura romântica que o conduz ao amor pela filha do califa. O enredo é raso, por desenho: pretexto para o acúmulo de episódios e números de habilidade em que Fairbanks assume a tela como ginásio, quicando por balcões, varandas e mastaréus como se cada obstáculo pedisse uma resposta coreográfica. A primeira hora é um manual de como encadear gags físicas sem perder o impulso: Walsh filma com agilidade e limpidez, e Arthur Edeson — que mais tarde assinaria imagens imortais de Frankenstein (1931) e Casablanca (1942) — encontra aqui um vocabulário de grandes planos gerais, silhuetas recortadas e truques ópticos que sustentam a ilusão sem exibir as emendas. O filme não busca “invisibilidade clássica” porque orgulha-se de seu artesanato; cada aparição de cordas mágicas, cada salto, cada transição para uma paisagem fabulosa pede para ser notado, e o espectador de 1924 certamente notou. Essa combinação de leveza atlética e engenharia visual colocaria O Ladrão de Bagdá no panteão dos épicos do período e o consagraria como a obra mais querida do próprio Fairbanks, além de pavimentar a persona do astro que ele vinha burilando desde A Marca do Zorro (1920) e Robin Hood (1922).
Mas o filme não é apenas a vitrine de Fairbanks: é também um triunfo de concepção plástica. William Cameron Menzies, creditado na direção de arte e no desenho de produção, organiza o espaço com uma inteligência gráfica que se tornou escola — interiores que parecem maquetes oníricas, arcos repetidos que criam ritmos visuais, escadarias que convidam à acrobacia, pátios vazios cujo “ar” é preenchido pelo traço dos cenários e pela coreografia dos figurantes. A Bagdá que o filme inventa é menos “lugar” e mais “ideia de lugar”, um Oriente sintetizado na mesa de desenho: isto é, um Oriente visto pelo olho da fantasia ocidental. Os volumes monumentais, os minaretes que se multiplicam, os portais com arabescos simplificados, tudo está em função de uma cenografia que quer, simultaneamente, ser palco e personagem. Visualmente, a obra é coesa ao extremo — e aí mora parte de seu poder hipnótico. A iconografia do “Oriente mágico” é levada ao paroxismo, com invenções que, à época, deviam soar de um exotismo irresistível; hoje, inevitavelmente, acusam o peso do orientalismo, reduzindo culturas complexas a um tapete de signos decorativos. Ainda assim, é difícil negar que Menzies (que mais tarde assinaria a arquitetura futurista de Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936) e influenciaria gerações como designer de produção) encontra aqui uma síntese luminosa da fantasia árabe pelo filtro do modernismo hollywoodiano, uma espécie de “arabesco industrial” que dá a Walsh e Edeson um campo de jogo perfeitamente legível.
O ouvido também tem seu quinhão de encantamento: a partitura original de Mortimer Wilson — hoje reconstruída e gravada em edições modernas — organiza o filme como poema sinfônico, atribuindo leitmotivs aos personagens e articulando crescendos e repousos com uma disciplina quase wagneriana transposta para o cinema mudo. Essa música não “cobre” as imagens; ela as modela, desenha pontes, dá corpo emotivo onde os intertítulos pouco fazem além de apontar a ação. Se a estrutura dramática do roteiro — assinado por Achmed Abdullah e Lotta Woods, a partir de uma história do próprio Fairbanks (sob o pseudônimo “Elton Thomas”) — por vezes faz água, a orquestra de Wilson vem tapar os buracos, insinuando densidade nas passagens episódicas e evitando que o filme se torne uma sucessão de quadros soltos. O resgate moderno dessa partitura, com performances conduzidas por Mark Fitz-Gerald e registros em disco, sublinha o quanto O Ladrão de Bagdá foi pensado como uma experiência total de espetáculo, não só visual, mas sinfônica.
O elenco, embora girando ao redor da estrela absoluta, oferece pequenos brilhos que a história do cinema saberia reconhecer depois. Julanne Johnston faz uma princesa de gestos mínimos, quase um ícone, como pedia a fábula. Anna May Wong surge como a escrava mongol pérfida, presença elétrica nas brechas que o roteiro lhe permite; o filme serviu de trampolim para a sua projeção, e a câmera já capta nela a precisão felina que, anos depois, roubaria olhares em O Expresso de Shanghai (1932). A galeria de coadjuvantes — de Snitz Edwards a Charles Belcher — joga com tipos bem definidos, mais caricatura do que psicologia, o que condiz com o painel fabular, mas também limita as sombras morais que hoje buscamos instintivamente. Nesse sentido, as personagens de O Ladrão de Bagdá não “respiram” para além do mito: servem ao balé dos cenários e à coreografia do herói, com Walsh mantendo a engrenagem girando, raramente se demorando num rosto para escutar hesitações.
A fotografia de Edeson merece atenção pela forma como concilia amplitude e nitidez. Em planos gerais arejados, a câmera parece recuar um passo extra para “mostrar o trabalho” — isto é, para que vejamos não só o corpo de Fairbanks em piruetas, mas o desenho total do espaço que o corpo percorre. Isso tem um custo: a mise-en-scène privilegia o espetáculo panorâmico em detrimento do close-up como ferramenta dramática. Há, claro, momentos de engenho óptico, composições de sombras e recortes que anunciavam o expressionismo à americana que o próprio Edeson aperfeiçoaria em Frankenstein (1931) e O Homem Invisível (1933); porém, no conjunto, a imagem sempre retorna ao largo, à planta baixa da ação, como se o filme quisesse que estivéssemos de pé, num teatro, vendo a cena inteira. Essa opção conversa com a monumentalidade dos sets, com o desenho “gráfico” de Menzies, e com a fisicalidade de Fairbanks; e também explica por que, passado o encantamento inicial, certas passagens soam repetitivas: a linguagem volta ao mesmo registro de exibição, e a reiteração do assombro vira rotina. Ainda assim, quando o filme precisa de truques — a corda que sobe sem apoio, o tapete encantado, a aparição de monstros —, a fotografia harmoniza as sobreposições e as trucagens com uma sobriedade que sustenta a credulidade sem chamar atenção ao mecanismo.
É inevitável falar do tempo. Dependendo da cópia e da restauração, a duração varia substancialmente, mas o sentimento que fica é semelhante: O Ladrão de Bagdá é amplo a ponto de, em alguns trechos, alongar-se além do necessário. O que no início é estado de graça — as entradas e saídas de Ahmed, o zigue-zague entre a picardia e o romantismo — aos poucos se converte numa procissão de set pieces que exigem paciência do público contemporâneo, acostumado a estruturas mais compactas. Na seção das “provas” do herói, a dramaturgia vira checklist de marcos fantásticos, cada um deles imaginativo, mas, em bloco, exaustivo. Walsh, mestre da ação que no futuro comandaria A Grande Jornada (The Big Trail, 1930) e Fúria Sanguinária (White Heat, 1949), ainda estava aqui sob a batuta do produtor-estrela; sua direção é eficiente e elegante, porém raramente impõe ritmo contra o desejo de Fairbanks por “mais uma maravilha”. O resultado é um filme que deslumbra quase continuamente, mas nem sempre envolve: admira-se a habilidade, aprecia-se a carpintaria, mas falta, às vezes, a ferida emocional que transformaria o conto em catarse.
Ainda assim, o legado histórico é difícil de superestimar. A produção foi caríssima para o seu tempo e um sucesso formidável, prova de que o público abraçou a fantasia quando levada a sério, com investimento total no design e na mecânica de efeitos. Em 1996, a Biblioteca do Congresso incluiria o filme no National Film Registry, reconhecendo seu valor cultural, histórico e estético; décadas antes, o próprio Fairbanks já o apontava como seu predileto, e não é difícil entender por quê: aqui, seu corpo encontra o cenário ideal, e sua visão de cinema — um casamento de circo, balé e gravura orientalista — ganha escala de monumento. Até a crítica institucional acabaria por abraçá-lo no rol dos grandes do gênero fantástico.
Do ponto de vista de hoje, O Ladrão de Bagdá é uma joia com arestas. É extraordinário como peça de design e como laboratório de efeitos, é encantador como vitrine de uma estrela acrobata no auge, e é arqueologicamente fascinante como documento de um Hollywood que acreditava com fervor no poder da artifício. Mas a sensibilidade contemporânea também escuta os silêncios da obra: a redução do “Oriente” a cenário, a planificação das personagens femininas, a moral de conto de fadas servida em pratos repetidos. Entre a leveza e o vazio há uma linha tênue, e o filme a cruza de tempos em tempos — sobretudo quando confunde excesso com maravilhamento. Por isso, talvez a melhor maneira de vê-lo hoje seja aceitar seu pacto: olhar com olhos de 1924, permitir-se o espanto, e ao mesmo tempo manter o ouvido atento aos limites desse espanto. Quando a corda se ergue sozinha e o tapete voa, o cinema de Walsh e Fairbanks lembra que a imagem ainda era um truque novo, uma arte de prestidigitadores seríssimos; e quando, ao fim, a moral é martelada outra vez, lembramos que todo truque tem seu preço. No balanço, fica um épico fabular de beleza evidente, que ainda ilumina telas com a mesma luz de estúdio que moldou minaretes e sombras — um filme que, deslumbrante e desigual, permanece de pé como monumento de um sonho, desses que a gente admira de longe, com deleite, mas sem esquecer que o mármore, por vezes, é mais frio que a carne.