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agosto 27, 2025

O Ladrão de Bagdá (1924)

 


Título original: The Thief of Bagdad
Direção: Raoul Walsh
Sinopse: O ladrão Ahmed, fazendo-se passar por príncipe, penetra no castelo para liderar a revolta contra os invasores mongóis. Conto das mil e uma noites que é considerado um dos mais fantasiosos e divertidos do cinema mudo.


Há uma grandiosidade que salta aos olhos em O Ladrão de Bagdá (The Thief of Bagdad, 1924) que não depende só do tamanho de seus cenários ou do desfile de trucagens que fazem cavalos voarem e tapetes deslizarem pelos céus. Essa grandiosidade nasce de uma aposta estética total — e, sobretudo, de um corpo em movimento: o de Douglas Fairbanks, produtor, idealizador e estrela, que transforma a tela num parque de possibilidades físicas e num catálogo de encantamentos visuais. Raoul Walsh assina a direção, mas o filme é, antes de tudo, a materialização de um sonho de Fairbanks de expandir seu carisma atlético para além da capa e da espada, tomando como base contos das Mil e Uma Noites e convertendo-os em espetáculo moderno, com intertítulos espirituosos e uma cadência circense que busca constantemente o assombro. A escala do projeto — com cenários monumentais e efeitos “de feira” depurados pela maquinaria do estúdio — se impõe desde o primeiro plano de uma Bagdá imaginada, “cidade dos sonhos do Oriente antigo”, que Walsh e a equipe erguem com uma precisão geométrica e um gosto art déco que já anunciava o casamento entre arquitetura e fantasia que marcaria parte do cinema de aventura nas décadas seguintes. É um cinema que se maravilha com a própria capacidade de fabricar maravilhas. E, ao mesmo tempo, é um filme refém do seu encantamento: quanto mais cresce o aparato, mais nítidas ficam as fragilidades dramáticas — a leveza vira frivolidade, a fábula se dilui, a repetição pesa.

A narrativa segue Ahmed, ladrão inveterado e hedonista que aprende, com dolorosa demora, que “felicidade deve ser conquistada” — ideia martelada por intertítulos e provas épicas, espécie de gamificação moral da aventura romântica que o conduz ao amor pela filha do califa. O enredo é raso, por desenho: pretexto para o acúmulo de episódios e números de habilidade em que Fairbanks assume a tela como ginásio, quicando por balcões, varandas e mastaréus como se cada obstáculo pedisse uma resposta coreográfica. A primeira hora é um manual de como encadear gags físicas sem perder o impulso: Walsh filma com agilidade e limpidez, e Arthur Edeson — que mais tarde assinaria imagens imortais de Frankenstein (1931) e Casablanca (1942) — encontra aqui um vocabulário de grandes planos gerais, silhuetas recortadas e truques ópticos que sustentam a ilusão sem exibir as emendas. O filme não busca “invisibilidade clássica” porque orgulha-se de seu artesanato; cada aparição de cordas mágicas, cada salto, cada transição para uma paisagem fabulosa pede para ser notado, e o espectador de 1924 certamente notou. Essa combinação de leveza atlética e engenharia visual colocaria O Ladrão de Bagdá no panteão dos épicos do período e o consagraria como a obra mais querida do próprio Fairbanks, além de pavimentar a persona do astro que ele vinha burilando desde A Marca do Zorro (1920) e Robin Hood (1922).

Mas o filme não é apenas a vitrine de Fairbanks: é também um triunfo de concepção plástica. William Cameron Menzies, creditado na direção de arte e no desenho de produção, organiza o espaço com uma inteligência gráfica que se tornou escola — interiores que parecem maquetes oníricas, arcos repetidos que criam ritmos visuais, escadarias que convidam à acrobacia, pátios vazios cujo “ar” é preenchido pelo traço dos cenários e pela coreografia dos figurantes. A Bagdá que o filme inventa é menos “lugar” e mais “ideia de lugar”, um Oriente sintetizado na mesa de desenho: isto é, um Oriente visto pelo olho da fantasia ocidental. Os volumes monumentais, os minaretes que se multiplicam, os portais com arabescos simplificados, tudo está em função de uma cenografia que quer, simultaneamente, ser palco e personagem. Visualmente, a obra é coesa ao extremo — e aí mora parte de seu poder hipnótico. A iconografia do “Oriente mágico” é levada ao paroxismo, com invenções que, à época, deviam soar de um exotismo irresistível; hoje, inevitavelmente, acusam o peso do orientalismo, reduzindo culturas complexas a um tapete de signos decorativos. Ainda assim, é difícil negar que Menzies (que mais tarde assinaria a arquitetura futurista de Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936) e influenciaria gerações como designer de produção) encontra aqui uma síntese luminosa da fantasia árabe pelo filtro do modernismo hollywoodiano, uma espécie de “arabesco industrial” que dá a Walsh e Edeson um campo de jogo perfeitamente legível.

O ouvido também tem seu quinhão de encantamento: a partitura original de Mortimer Wilson — hoje reconstruída e gravada em edições modernas — organiza o filme como poema sinfônico, atribuindo leitmotivs aos personagens e articulando crescendos e repousos com uma disciplina quase wagneriana transposta para o cinema mudo. Essa música não “cobre” as imagens; ela as modela, desenha pontes, dá corpo emotivo onde os intertítulos pouco fazem além de apontar a ação. Se a estrutura dramática do roteiro — assinado por Achmed Abdullah e Lotta Woods, a partir de uma história do próprio Fairbanks (sob o pseudônimo “Elton Thomas”) — por vezes faz água, a orquestra de Wilson vem tapar os buracos, insinuando densidade nas passagens episódicas e evitando que o filme se torne uma sucessão de quadros soltos. O resgate moderno dessa partitura, com performances conduzidas por Mark Fitz-Gerald e registros em disco, sublinha o quanto O Ladrão de Bagdá foi pensado como uma experiência total de espetáculo, não só visual, mas sinfônica. 

O elenco, embora girando ao redor da estrela absoluta, oferece pequenos brilhos que a história do cinema saberia reconhecer depois. Julanne Johnston faz uma princesa de gestos mínimos, quase um ícone, como pedia a fábula. Anna May Wong surge como a escrava mongol pérfida, presença elétrica nas brechas que o roteiro lhe permite; o filme serviu de trampolim para a sua projeção, e a câmera já capta nela a precisão felina que, anos depois, roubaria olhares em O Expresso de Shanghai (1932). A galeria de coadjuvantes — de Snitz Edwards a Charles Belcher — joga com tipos bem definidos, mais caricatura do que psicologia, o que condiz com o painel fabular, mas também limita as sombras morais que hoje buscamos instintivamente. Nesse sentido, as personagens de O Ladrão de Bagdá não “respiram” para além do mito: servem ao balé dos cenários e à coreografia do herói, com Walsh mantendo a engrenagem girando, raramente se demorando num rosto para escutar hesitações.

A fotografia de Edeson merece atenção pela forma como concilia amplitude e nitidez. Em planos gerais arejados, a câmera parece recuar um passo extra para “mostrar o trabalho” — isto é, para que vejamos não só o corpo de Fairbanks em piruetas, mas o desenho total do espaço que o corpo percorre. Isso tem um custo: a mise-en-scène privilegia o espetáculo panorâmico em detrimento do close-up como ferramenta dramática. Há, claro, momentos de engenho óptico, composições de sombras e recortes que anunciavam o expressionismo à americana que o próprio Edeson aperfeiçoaria em Frankenstein (1931) e O Homem Invisível (1933); porém, no conjunto, a imagem sempre retorna ao largo, à planta baixa da ação, como se o filme quisesse que estivéssemos de pé, num teatro, vendo a cena inteira. Essa opção conversa com a monumentalidade dos sets, com o desenho “gráfico” de Menzies, e com a fisicalidade de Fairbanks; e também explica por que, passado o encantamento inicial, certas passagens soam repetitivas: a linguagem volta ao mesmo registro de exibição, e a reiteração do assombro vira rotina. Ainda assim, quando o filme precisa de truques — a corda que sobe sem apoio, o tapete encantado, a aparição de monstros —, a fotografia harmoniza as sobreposições e as trucagens com uma sobriedade que sustenta a credulidade sem chamar atenção ao mecanismo. 

É inevitável falar do tempo. Dependendo da cópia e da restauração, a duração varia substancialmente, mas o sentimento que fica é semelhante: O Ladrão de Bagdá é amplo a ponto de, em alguns trechos, alongar-se além do necessário. O que no início é estado de graça — as entradas e saídas de Ahmed, o zigue-zague entre a picardia e o romantismo — aos poucos se converte numa procissão de set pieces que exigem paciência do público contemporâneo, acostumado a estruturas mais compactas. Na seção das “provas” do herói, a dramaturgia vira checklist de marcos fantásticos, cada um deles imaginativo, mas, em bloco, exaustivo. Walsh, mestre da ação que no futuro comandaria A Grande Jornada (The Big Trail, 1930) e Fúria Sanguinária (White Heat, 1949), ainda estava aqui sob a batuta do produtor-estrela; sua direção é eficiente e elegante, porém raramente impõe ritmo contra o desejo de Fairbanks por “mais uma maravilha”. O resultado é um filme que deslumbra quase continuamente, mas nem sempre envolve: admira-se a habilidade, aprecia-se a carpintaria, mas falta, às vezes, a ferida emocional que transformaria o conto em catarse.

Ainda assim, o legado histórico é difícil de superestimar. A produção foi caríssima para o seu tempo e um sucesso formidável, prova de que o público abraçou a fantasia quando levada a sério, com investimento total no design e na mecânica de efeitos. Em 1996, a Biblioteca do Congresso incluiria o filme no National Film Registry, reconhecendo seu valor cultural, histórico e estético; décadas antes, o próprio Fairbanks já o apontava como seu predileto, e não é difícil entender por quê: aqui, seu corpo encontra o cenário ideal, e sua visão de cinema — um casamento de circo, balé e gravura orientalista — ganha escala de monumento. Até a crítica institucional acabaria por abraçá-lo no rol dos grandes do gênero fantástico. 

Do ponto de vista de hoje, O Ladrão de Bagdá é uma joia com arestas. É extraordinário como peça de design e como laboratório de efeitos, é encantador como vitrine de uma estrela acrobata no auge, e é arqueologicamente fascinante como documento de um Hollywood que acreditava com fervor no poder da artifício. Mas a sensibilidade contemporânea também escuta os silêncios da obra: a redução do “Oriente” a cenário, a planificação das personagens femininas, a moral de conto de fadas servida em pratos repetidos. Entre a leveza e o vazio há uma linha tênue, e o filme a cruza de tempos em tempos — sobretudo quando confunde excesso com maravilhamento. Por isso, talvez a melhor maneira de vê-lo hoje seja aceitar seu pacto: olhar com olhos de 1924, permitir-se o espanto, e ao mesmo tempo manter o ouvido atento aos limites desse espanto. Quando a corda se ergue sozinha e o tapete voa, o cinema de Walsh e Fairbanks lembra que a imagem ainda era um truque novo, uma arte de prestidigitadores seríssimos; e quando, ao fim, a moral é martelada outra vez, lembramos que todo truque tem seu preço. No balanço, fica um épico fabular de beleza evidente, que ainda ilumina telas com a mesma luz de estúdio que moldou minaretes e sombras — um filme que, deslumbrante e desigual, permanece de pé como monumento de um sonho, desses que a gente admira de longe, com deleite, mas sem esquecer que o mármore, por vezes, é mais frio que a carne.

agosto 24, 2025

Sugarcane (2024)

 


Título original: Sugarcane
Direção: Emily Kassie, Julian Brave NoiseCat
Sinopse: Uma investigação sobre abusos e o desaparecimento de crianças em uma escola residencial indígena, desencadeia um acerto de contas na reserva indígena de Sugarcane nas proximidades.


Sugarcane, o longa-documentário de Emily Kassie e Julian Brave NoiseCat, chega ao espectador com a força de uma denúncia histórica gravada na alma: a tragédia das escolas residenciais indígenas no Canadá, que separaram, silenciaram e vitimaram milhares de crianças. Dirigido com uma câmera que busca ao mesmo tempo compaixão e verdade crua, o filme foi aplaudido em Sundance e indicado ao Oscar de Melhor Documentário.

Por trás dessa edição dramática de prêmios e reconhecimento, esconde-se, no entanto, uma sensação de desconexão: a narrativa se mostra obtusa, desconcertada, e frequentemente falha em estabelecer um ponto de empatia que nos ancore na implacável história. Em vez de guiar, o filme parece remar contra sua própria estrutura dramática.

O documentário se propõe a escavar os segredos terríveis das escolas residenciais – infanticídio, abuso físico, psicológico, espiritual – mas sua forma de decupar essas atrocidades deixa a desejar. A cidade de Williams Lake, a Missão St. Joseph, os túmulos não marcados — tudo isso emerge com uma fragmentação que nos afasta ao invés de nos envolver. Há dor, há culpa, há silêncio — mas não um fio narrativo sólido que deixe claro por que devemos nos envolver emocionalmente. O espectador presencia depoimentos intensos, mas sem uma ponte que o leve ao íntimo dessas histórias.

O trabalho dos editores Nathan Punwar e Maya Daisy Hawke, elogiado em premiações, infelizmente, não reverbera na tela como um ponto positivo. Embora o material bruto seja poderoso — depoimentos marcantes como os de Ed Archie NoiseCat (pai de Julian), sobreviventes e líderes locais emergindo com uma voz que se deseja ancestral — a montagem se arrasta, tropeça, cria lapsos onde personagens desaparecem ou mudam de foco sem aviso.

Em vez de um fio contínuo, percebemos recortes abruptos: uma cena termina e a seguinte brota do nada, muitas vezes centrada em paisagens majestosas ao invés de nos rostos e histórias que deveriam nos tocar. Os personagens, por isso, se tornam figuras perdidas, engolfadas por um ritmo irregular. Sua aura humana — frágil, potente, digna — acaba submersa pelo ritmo que se recusa a sustentar atenção.

Sugarcane inicia como um claro chamado à investigação — como se acordássemos junto dos diretores diante da descoberta de túmulos e nos pusessem de imediato a vasculhar a memoria coletiva. Mas a jornada não avança com força: o filme parece começar do zero, rodada após rodada, sem rumo definido. Ele retrata esse recomeço da investigação (como se fosse planejado, quase um documentário procedural), mas ao final, não traz nem conclusões palpáveis, nem vingança, nem expectativa de rastreamento dos culpados — como, por exemplo, implementar um arco sobre “o único padre ainda vivo”.

Essa ausência de desfecho cria uma frustração legítima: quando encaramos tantas atrocidades, esperamos indignação, posicionamento, uma condução moral, um nome a punir, uma pergunta final — seja feita à justiça ou aos espectadores. Mas Sugarcane se satisfaz com o silêncio resignado, posicionando-se como um documento de testemunho quase contemplativo — que honra o passado, sim, mas falha em buscar justiça presente — sem perseguir os perpetradores, sem mostrar investigações concretas. Fica a sensação de que tudo termina em vazio moral.

A proposta de expor um problema nacional ganha intensidade quando o filme destaca que até mesmo figuras centrais — como o então primeiro-ministro Justin Trudeau — pareciam ignorar ou minimizar o alcance da situação. O documentário mostra breves cenas de desculpas oficiais — tanto do Papa quanto de Trudeau — mas essas imagens parecem inserções tardias e superficiais, quase peças de repertório exigidas para validar a narrativa global.

Esse distanciamento, a meu ver, torna Sugarcane um filme de nicho: investe sobretudo no interior vasto do Canadá, nas comunidades locais, nas paisagens introvertidas, como se o tema fosse concernente apenas àqueles que o vivem diretamente. Ao mesmo tempo em que traz voz aos sobreviventes, elide a dimensão política e nacional, relegando o filme a um território íntimo demais, incapaz de ecoar além do perímetro geográfico e emocional das reservas.

Não se pode negar: o filme é visualmente impactante. A fotografia de Emily Kassie e Christopher LaMarca, vencedora em prêmios de cinematografia, traz tomadas amplas e contemplativas da natureza: florestas, campos nevados, rios, silêncios visuais marcantes. São composições belíssimas, que lembram pinturas em movimento.

Mas o que há de poético nessas sequências parece se tornar uma armadilha: há muitos takes silenciosos, com paisagens e personagens em pose estática, que, embora lindos, não agregam conteúdo dramático nem contribuem para o embate emocional que se espera. Produzido pela National Geographic, o filme exibe sua vocação visual — mas em excesso. O espectador se deleita pela estética, mas sente ausência de contaminação narrativa: o que acontece ali? Para onde nos levam esses horizontes? A beleza sem propósito emocional não sustenta a tensão que um tema desse calibre exige.

Sugarcane é um filme paradoxal: sua relevância histórica é inegável, sua gestão sensível das vozes indígenas ressoa como um ato de justiça. Mas artisticamente, ele tropeça em seu próprio potencial. Sua narrativa fragmentada dificulta o engajamento emocional pleno; sua montagem errática dispersa personagens importantes; sua trajetória investigativa começa cheia de vigor e termina sem destino definitivo; suas paisagens grandiosas deslizam como belas distrações em vez de âncoras dramáticas.

Em suma, Sugarcane é um documentário honesto, importante, que registra uma ferida histórica. Mas falha em transformar essa ferida em uma narrativa estruturada, em uma jornada com direções claras. Acaba se convertendo mais em um objeto de observação estética e testemunho factual do que em uma experiência que persegue justiça, conclusão, ou urgência dramática—um filme de nicho, lindo, relevante, mas distante demais.

Isso não apaga o valor do depoimento emocional e histórico do filme — ele traz luz, traz memória, traz cura. Mas numa sala escura, esperávamos também um impulso: não só ver a dor, mas sentir o ímpeto da pergunta, da busca, da responsabilização. E aí Sugarcane nos deixa com desejo de um caminho mais firme, mais claro. Nesse sentido, ele emociona, sim — mas não conduz.

agosto 23, 2025

Gremlins (1984)

 


Título original: Gremlins
Direção: Joe Dante
Sinopse: O jovem Billy ganhou um novo bichinho de estimação e com ele três conselhos que nunca... nunca poderia esquecer. 1) não deixe que ele se molhe 2) mantenha-o afastado da luz forte 3) não importa o quanto ele chore, o quanto ele suplique, nunca lhe dê comida após a meia-noite. Prepare-se para muita confusão pois alguma coisa vai dar muito errado.


Gremlins é daqueles filmes que você dá o play “só pra revisitar uma cena” e, quando percebe, está agarrado ao sofá até os créditos finais, feliz como quem reencontra um velho amigo. Joe Dante, vindo de uma linhagem de B-movies espirituosos e sátiras amorosas ao cinema de gênero, lapidou aqui um clássico oitentista que ainda pulsa — um feitiço de humor negro natalino que atravessa décadas sem perder o brilho. Lançado em 8 de junho de 1984, com produção executiva de Steven Spielberg, roteiro de Chris Columbus, fotografia de John Hora e montagem de Tina Hirsch, o filme foi sucesso estrondoso de crítica e público, arrecadando mais de US$ 200 milhões mundo afora a partir de um orçamento enxuto, e consolidando-se como peça-chave da cultura pop daquele verão americano em que Gremlins “dividiu as atenções” com Ghostbusters

Parte do encanto é como Dante mistura tons aparentemente inconciliáveis: um conto natalino de província, com luzinhas na neve e vitrine de loja de brinquedos, vai progressivamente se abrindo para uma anarquia cartunesca com dentes afiados. A “regra” das regras — não molhar, não dar comida depois da meia-noite, não expor à luz — é o gatilho perfeito para mover a narrativa do aconchego ao caos, mantendo sempre um pé na comédia e outro no horror leve. Não há gordura aqui: a estrutura é simples e deliciosa de acompanhar, e o ritmo é daqueles que fisga o espectador de todas as idades — do adolescente do VHS ao adulto que hoje, em 2025, topa ver pela primeira vez e descobre, com surpresa, como tudo funciona soberbamente bem. 

Rever o filme hoje é um teletransporte instantâneo para os anos 80. O cenário de Kingston Falls — com sua praça central, o cinema local e a loja de departamento — é o arquétipo da pequena cidade americana de backlot, fotografada com um carinho que confere textura de postal. Não por acaso, parte essencial desse charme vem de Courthouse Square, no Universal Studios, o mesmo espaço cenográfico que viraria Hill Valley em De Volta Para o Futuro: a geografia afetiva do set está impressa em cada plano, embalando a narrativa com familiaridade e memória coletiva. 

Tecnicamente, Gremlins é um triunfo do artesanato analógico. Antes que “CGI” virasse resposta para tudo, Dante convoca um exército de marionetistas e animatrônicos comandados por Chris Walas para dar vida àquelas criaturinhas endiabradas. O filme foi concebido para pôr atores e bonecos no mesmo espaço, trocando energia real em cena — e a câmera de John Hora sabe exatamente onde estar para transformar borracha e cabos em personagens pulsantes. O resultado são texturas físicas, olhares e microgestos que a plateia sente de fato; a viscosidade do caos gremlin é tátil, quase cheirosa. E quando a direção pede cartoon, os bonecos respondem com timing cômico impecável, sem nunca cair no farsesco barato. 

No centro emocional da história, claro, está Gizmo — uma das criações mais irresistíveis que o cinema já inventou. Howie Mandel dá voz ao pequeno Mogwai com um timbre meio assobiado, de ninar, e Walas projeta um rosto que equilibra vulnerabilidade e traquinagem. É impossível não se apaixonar por ele, mesmo quando um arrepio cutuca a nuca ao imaginar que uma gota d’água fora de hora pode multiplicar o “fofo” em puro pandemônio. Gizmo é a síntese do filme: ternura e perigo, pelúcia e dentes, infância e madrugada. É aquele tipo de design de personagem que você guarda no coração e, décadas depois, só de ouvir dois acordes do tema já volta a sorrir. 

Do outro lado do espelho, Stripe e sua quadrilha representam o prazer anárquico do slapstick levado à beira do grotesco. Dante abraça uma iconografia Looney Tunes — há, inclusive, a cinefilia explícita do diretor ao convidar Chuck Jones para um cameo — e a deforma com pequenas crueldades cartunescas que, ainda assim, se mantêm no território do riso nervoso. Esse manejo de tom, sempre calibrado, é reforçado pela montagem de Tina Hirsch, que sabe segurar a gag um segundo além do confortável, e pela lente de John Hora, que alterna sombras e cores natalinas como quem tempera uma sobremesa com uma pitada de pimenta. 

Se Gremlins vive até hoje, muito se deve à sua trilha sonora imortal. Jerry Goldsmith cria um score que é ao mesmo tempo perversamente festivo e melódico, costurando o rag cadenciado de “The Gremlin Rag” com motivos para Gizmo que parecem caixinhas de música iluminadas por lâmpadas de árvore de Natal. A partitura brinca com texturas eletrônicas, orquestração esperta e um senso de ironia sonora que cola nas imagens feito chiclete — a música não ilustra: ela comenta, provoca, acrescenta camada e, às vezes, conduz a comédia ao lado mais travesso. É música que gruda na cabeça e no coração, uma dessas assinaturas sonoras que atravessam gerações e viram memórias coletivas. 

Também a trilha “diegeticamente oitentista”: das canções que pipocam aqui e ali ao desenho de som que transforma a cidade numa pequena sinfonia natalina interrompida por gargalhadas gremlinescas, tudo evoca uma época específica — vitrines, rádios, o calor das lâmpadas incandescentes — sem parecer museu. Ver o filme hoje é sentir de novo o cheiro do plástico dos brinquedos novos, lembrar dos comerciais de fim de ano e da promessa de que algo mágico poderia acontecer na sala de estar. Essa evocação não é só decoração: Dante usa o Natal como contraste permanente, a inocência dos sinos contra o ranger de dentes das pequenas criaturas.

O design de produção e a decupagem potencializam a fisicalidade do perigo. Repare como a casa dos Peltzer vira um parque de diversões infernal para os gremlins: a cozinha, com seus eletrodomésticos, ecoa o gag cinema de aparelhos; a loja de departamentos no clímax sintetiza a batalha entre o consumo (bonecos, manequins, ferramentas) e a biologia cínica dos monstrinhos. O set de Kingston Falls, com sua praça e fachadas familiares, torna a desordem mais saborosa justamente por profanar um cartão-postal — quando a anarquia toma a rua principal, a sensação é de pastelão natalino possuído.

Historicamente, Gremlins ainda acendeu uma discussão essencial sobre classificação indicativa. Seus sustos e miudezas maliciosas, dentro de um filme vendido como “diversão familiar”, ajudaram a pavimentar o caminho para a criação do selo PG-13 em 1984 — uma zona intermediária que reconhecia filmes com intensidade acima do “apenas PG”, sem empurrá-los para o R. É curioso como a própria ambivalência do filme, sua graça sombria, acabou moldando a forma como Hollywood organiza expectativas de público até hoje. 

O elenco funciona como relógio, liderado pelo carisma “de garoto da porta ao lado” de Zach Galligan e pela presença doce e ligeiramente melancólica de Phoebe Cates. Em papéis de apoio, Hoyt Axton e Frances Lee McCain dão a base afetuosa da família, enquanto Polly Holliday encarna, com gosto, a vilania cômica de Mrs. Deagle — um alvo perfeito para a sátira que Dante flecha sem piedade. Pequenas participações especiais (incluindo o próprio Spielberg e o compositor Jerry Goldsmith) são piscadelas cinéfilas que ampliam o jogo lúdico. Nada disso funcionaria sem a precisão dos efeitos práticos: a equipe de Chris Walas dá vida a dezenas de marionetes com personalidade distinta, e o filme vira um balé de mãos invisíveis operando pálpebras, mandíbulas e orelhas — a coreografia do caos.

Também vale notar como Dante filma a violência sempre um passo antes de se tornar gratuita. As gags mais ácidas — um liquidificador descontrolado, um micro-ondas vingativo, uma escada que vira catapulta — são montadas com uma musicalidade que impede o gore de tomar o quadro, sem esvaziar o impacto. Há aqui a inteligência de alguém que entende o “horror para todos” como território da sugestão e do ritmo, não da exploração. De novo, a trilha de Goldsmith amarra o gesto com ironia: um guizo, um teclado zombeteiro, e pronto — a cena ganha sabor travesso em vez de crueldade.

Quarenta anos depois, a força de Gremlins está na combinação rara de uma engenharia narrativa cristalina com uma execução técnica saborosa. É cinema que se sente nas mãos: o pelo de Gizmo, o brilho viscoso de Stripe, a neve falsa que reflete as vitrines. É um filme que conversa com o espírito natalino sem endeusá-lo, que celebra a cartilha do cartoon sem virar mero pastiche, e que, acima de tudo, confia na imaginação do público. Talvez por isso continue tão vivo — porque nos lembra que a fantasia não precisa de infinitos pixels para existir; basta um punhado de regras, um set reconhecível, uma trilha inesquecível e um diretor que saiba orquestrar o riso e o arrepio. 

E se você está chegando a Gremlins hoje, pela primeira vez em 2025, prepare-se: é “filme gostoso” em estado puro, desses que nos sequestram até o fim, que resistem ao calendário e que tocam aquele sino interno que só o bom entretenimento dispara. A música de Jerry Goldsmith é dessas que a gente assovia sem perceber, Gizmo é um amor — mesmo quando dá um medinho do que ele pode desencadear — e Joe Dante assina um recado que permanece: a infância pode ser travessa, o Natal pode ser punk, e o cinema, quando acerta o tom, continua novo, mesmo quarentão. Alguns clássicos não envelhecem; eles apenas multiplicam o prazer — desde que, claro, você não os alimente depois da meia-noite. 

agosto 22, 2025

Prédio Vazio (2025)

 


Título original: Prédio Vazio
Direção: Rodrigo Aragão
Sinopse: A jovem Luna parte em uma jornada em busca de sua mãe que desapareceu no último dia de carnaval em Guarapari. Suas buscas a levam a um antigo edifício que parece vazio, mas que na verdade é habitado por almas atormentadas.


Rodrigo Aragão, veterano do horror nacional, entrega com Prédio Vazio (2025) um filme que, mais do que falhar, desmorona de forma constrangedora. Ambientado em Guarapari, o gênero aqui parece prostituído por escolhas estéticas que nunca colam, numa produção que mais parece uma experiência experimental falha de escola de cinema.

Logo se nota que Prédio Vazio, apesar de sonhar alto com influências de Dario Argento, terror psicológico japonês e o grotesco de Zé do Caixão, se perde em sua pretensão. A proposta poderia, quem sabe, soar interessante — um terror urbano, num prédio abandonado povoado por almas atormentadas; uma fotografia vibrante, atmosfera sufocante, cor e sombra disputando a tela. Mas o abismo entre a ideia e o produto final é vasto. O que poderia ser um deslumbre visual se transforma num desfile de mediocridade técnica e narrativa.

Aragão se orgulha de utilizar efeitos práticos — e vai lá tentar emocionar com tubos de sangue, próteses e maquiagem artesanal. O problema? A execução é tão precária que o que chega à tela cheira a caridade em vez de arte. Os modelos se desfazem sob a iluminação, a textura é plástica, os demônios — se é que podemos chamar assim — parecem bonecos de quinta categoria. É impossível não cochilar diante de cenas que tentam ser bizarras, mas acabam apenas bizarras de tão mal feitas. Se houvesse um manual de "como destruir uma boa ideia com técnicas pífias", Prédio Vazio seria a ilustração curricular.

Dizem que o filme foi feito com cerca de R$ 100 mil, orçamento modesto e apoio de edital — realidade comum no cinema nacional. Mas isso não justifica o nível de incompetência técnica manifesta. Compare isso com A Herança (2024), de João Cândido Zacharias — também de baixo orçamento, mas que fez um trabalho que beira a perfeição. A Herança mostra que criatividade, bom senso e profissionalismo podem erguer uma obra com menos, enquanto Prédio Vazio desce ladeira abaixo. Portanto, faltar dinheiro não é desculpa quando se tem talento — talento que simplesmente aqui evapora.

Lorena Corrêa (Luna), Caio Macedo (o namorado) e Rejane Arruda (a mãe) representam de forma tão apática, tão sem química, que me fez lembrar dos diretores que viram cada departamento como “o que tem que ser feito” — e atores que só repetem falas como papagaios. São pausas intermináveis entre as falas, olhares vazios, reações tardias — tudo grita “turma de audiovisual tentando ser atriz”. Gilda Nomacce, a zeladora, até tenta salvar algumas cenas, mas sequer é bem aproveitada pela montagem — que parece desconectada de qualquer lógica emocional. O elenco, como um todo, entrega performances que beiram risíveis, onde o exagero não funciona como linguagem poética, mas sim como piada involuntária.

A história de Luna indo atrás da mãe desaparecida após um sonho premonitório é quase uma piada de mau gosto. A motivação é rasa e as relações familiares são pouco críveis. Toda a jornada se desenrola como uma sucessão de cenas desconexas, fragmentadas, que lembram curtas metragens aleatórios costurados sem cola: vislumbres do grotesco, aparições que não explicam, diálogos fragmentados, pausas que brotam do nada. Nora, a construção da mitologia, dá poções sem sabor — um caldo de “quero dizer algo” que não diz nada de fato, um vazio que dança na tela. O edifício que deveria aterrorizar soa como cenário de peça escolar mal ensaiada.

A proposta — terror urbano, esteticamente ousado e profundamente brasileiro, com um olhar sobre abandono urbano e emocional — é eficiente em palavras, mas na prática é devorada pela própria pretensão. Ao contrário do que se pretendia, não há sustos — os poucos que tentam existir nascem e morrem na mesma cena, sem impacto. O que resta é a frustração. A obra não provoca reflexão, nem incômodo visceral num bom sentido — só deixa um gosto de promessa não cumprida. Cinematicamente, é um edifício que desaba sob o próprio peso ambicioso.

Sem dúvida, assistir Prédio Vazio é uma experiência aterrorizante — mas no pior sentido: não de terror visceral, mas de ser uma produção tão mal feita que se torna difícil de acreditar que chegou à tela. E esse tipo de horror — o horror de ver tanto potencial devastado — é o mais doloroso.

agosto 20, 2025

A Hora do Mal (2025)

 


Título original: Weapons
Direção: Zach Cregger
Sinopse: Quando todas as crianças de uma mesma classe - exceto uma – somem misteriosamente na mesma noite e exatamente ao mesmo tempo, todos da cidade começam a se questionar quem ou o que está por trás deste estranho desaparecimento.


Zach Cregger retorna ao cinema depois do estrondoso sucesso de Noites Brutais (2022) com A Hora do Mal (Weapons, 2025), e o faz de maneira ousada, ainda que irregular, num projeto que custou cerca de 38 milhões de dólares e reúne um elenco robusto, liderado por Josh Brolin, Julia Garner, Alden Ehrenreich e Austin Abrams. O filme chega ao público embalado pela promessa de ser o grande terror do ano, mas logo nos primeiros minutos percebemos que não se trata exatamente disso. Não estamos diante de um terror puro, repleto de sustos e criaturas sombrias; o que se revela na tela é um suspense sombrio, meticuloso, que prefere explorar tensões psicológicas, silêncios incômodos e a banalidade do cotidiano em pequenas cidades americanas. Cregger, que também assina o roteiro e participa da trilha sonora ao lado dos irmãos Ryan e Hays Holladay, opta por um formato que privilegia o acúmulo de estranheza até explodir em um terceiro ato devastador.

A fotografia de Larkin Seiple, conhecido por seus trabalhos em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e Um Cadáver Para Sobreviver, contribui para a atmosfera gélida de Maybrook, cidade fictícia onde a trama se passa. As cores frias e os enquadramentos meticulosamente compostos tornam os subúrbios americanos uma espécie de território fantasmagórico, uma prisão luminosa em que o ordinário se transforma em ameaça. A câmera é paciente, observa cada detalhe da vida dos personagens, mas justamente por isso se arrasta em excesso. Esse é talvez o maior problema do filme: a narrativa parece testar a paciência do público em sua primeira hora, insistindo em apresentar histórias paralelas que demoram demais a encontrar conexão.

A escolha de dividir a obra em blocos narrativos, quase capítulos independentes, ecoa a tradição de Quentin Tarantino ou até mesmo de Paul Thomas Anderson em Magnólia. Cada personagem tem sua trajetória apresentada com tempo, espaço e profundidade, o que em tese poderia criar um mosaico fascinante sobre uma comunidade inteira à beira do colapso. Contudo, o recurso já não soa inovador e, pela extensão das sequências, perde parte da força. Há um certo excesso em prolongar cada arco individual, e em alguns momentos o espectador se vê entediado, à espera de que algo mais incisivo aconteça. É um filme que, paradoxalmente, prende pelo incômodo e irrita pela morosidade.

Mas é justamente essa construção lenta que pavimenta o caminho para um desfecho de tirar o fôlego. Se os dois primeiros terços da projeção podem ser descritos como um teste de resistência, o clímax vem como uma explosão incontrolável que sacode a plateia. O último ato é puro impacto cinematográfico: cenas que beiram o absurdo, violência estilizada e momentos que provocam riso nervoso diante do ridículo e, ao mesmo tempo, arrepio pelo horror do que está em tela. A habilidade de Cregger em manipular emoções conflitantes é notável; há instantes em que não sabemos se rimos de nervoso ou se desviamos o olhar pela brutalidade. É esse choque entre o grotesco e o engraçado, entre o surreal e o aterrorizante, que confere ao filme uma identidade singular.

A classificação etária de 18 anos, no entanto, parece mais ligada ao peso psicológico e ao teor das imagens do que a um terror explícito. Não há um banho de sangue prolongado ou sustos fáceis que justifiquem a restrição; o que existe é uma atmosfera sufocante, acompanhada por momentos de violência repentina que chocam mais pela maneira como são inseridos na narrativa do que pela quantidade. É um filme que incomoda pelo que sugere e pela maneira como apresenta a fragilidade humana diante de situações absurdas.

As atuações são consistentes e funcionam como o eixo de sustentação dessa trama fragmentada. Josh Brolin (Archer), em mais uma performance sólida, encarna a figura de um homem atormentado que carrega a cidade às costas. Julia Garner (Justine) entrega uma personagem enigmática, de presença magnética, enquanto Alden Ehrenreich (Paul) surpreende ao conferir humanidade a um papel que poderia facilmente resvalar no estereótipo. Austin Abrams (James), por sua vez, representa a juventude perdida em meio ao caos, ampliando o leque de perspectivas que o filme se propõe a mostrar. Nenhum deles rouba a cena de forma isolada, mas o conjunto funciona como um coral de vozes distintas que compõem a atmosfera opressiva de Maybrook.

Do ponto de vista técnico, a montagem merece destaque por sua capacidade de amarrar linhas narrativas aparentemente desconexas. Mesmo que o ritmo seja questionável, a costura final revela um desenho coeso, em que cada personagem contribui para o grande mosaico que culmina no desfecho. A trilha musical, minimalista e sombria, reforça a sensação de inquietude e ajuda a sustentar as longas pausas dramáticas que pontuam o filme.

O maior mérito de A Hora do Mal é justamente provocar sentimentos contraditórios. É um filme que entedia e fascina, que arrasta e surpreende, que provoca riso e medo ao mesmo tempo. Custou-me encontrar a medida certa para avaliá-lo, e isso é sinal de que a obra não se esgota facilmente. Ela se mantém viva na memória, gera discussão, incomoda e instiga. É uma experiência cinematográfica imperfeita, mas profundamente marcante. Zach Cregger, ainda que tropece no excesso de confiança e no ritmo desigual, demonstra coragem ao criar uma obra que se arrisca a ser detestada por uns e reverenciada por outros.

No fim das contas, A Hora do Mal é um filme que acorda quem estava sonolento na poltrona, sacode o espectador no momento em que menos se espera e deixa uma sensação difícil de traduzir em palavras. Não é terror no sentido convencional, mas é um suspense que mexe com os nervos, com a percepção e com as fronteiras entre o ridículo e o assustador. Um filme bipolar, mas justamente por isso instigante, que faz pensar — e pensar é sempre o melhor efeito que o cinema pode causar.

agosto 19, 2025

Juntos (2025)

 


Título original: Together
Direção: Michael Shanks
Sinopse: O que poderia ser uma oportunidade para recomeçar logo se transforma em um verdadeiro pesadelo, quando uma força sobrenatural começa a corromper sua relação, suas mentes e seus corpos. À medida que se afastam de tudo o que conheciam, o casal descobre que, para permanecerem juntos, terão que enfrentar um horror muito maior do que o que os separava.


Há filmes que nascem sob o signo da promessa, carregando nos ombros a expectativa de reinventar um gênero ou ao menos de abalar seu terreno já consolidado. Juntos (Together, 2025), dirigido por Michael Shanks, parecia ser um desses casos. Selecionado em Sundance e imediatamente cercado por um hype impressionante, o longa se apresentou ao público como uma ousada investida no body horror contemporâneo, com a peculiaridade de unir romance e grotesco em uma mesma equação. A ideia, ao menos no papel, era fascinante: um casal que, em meio a crises afetivas e pessoais, descobre-se literalmente colado um ao outro, fundindo-se em carne, pele e nervos. Era a metáfora perfeita para discutir a codependência emocional, o medo da dissolução da identidade e a fronteira sempre perigosa entre amor e aprisionamento. Porém, na tela, tudo isso se desfaz de maneira dolorosa. A promessa do perturbador dá lugar ao risível, e aquilo que deveria ser um exercício angustiante de horror corporal se converte em uma comédia involuntária — e, portanto, em um fracasso quase absoluto.

A primeira grande decepção surge já na constatação de que as cenas de impacto, aquelas que deveriam carregar o peso do choque, já haviam sido todas reveladas nos cartazes e trailers promocionais. O marketing, em vez de aguçar a curiosidade, esgotou antecipadamente qualquer surpresa. Ao assistir ao filme, percebe-se que nada além do que foi divulgado se apresenta na tela. O grotesco já está gasto antes mesmo de começar, e o espectador, em vez de ser confrontado por imagens inesperadas, é apenas lembrado do material promocional. Um erro estratégico grave, mas também uma falha de concepção: se todo o impacto visual se resume a uma dúzia de imagens fixas, não há narrativa, não há tensão, não há desconforto verdadeiro. O horror torna-se previsível, e previsibilidade é veneno para um gênero que depende da inquietação constante.

Outro ponto que mina qualquer força dramática é o desempenho de seus protagonistas. Alison Brie e Dave Franco, casal fora das telas, eram a aposta certeira de química imediata e cumplicidade natural. Estranhamente, o que se vê em Juntos é o oposto: atuações mecânicas, desprovidas de intensidade, onde a naturalidade se converte em artificialidade. Não há energia entre eles, não há pulsão de vida, e essa falta de conexão mina completamente a experiência. O projeto, que se vendia como uma investigação sobre a intimidade levada ao limite da fusão física, fracassa justamente naquilo que deveria ser sua base: a intimidade. O corpo pode estar colado, mas a alma parece distante. É um paradoxo cruel: a união literal não gera aproximação, mas sim um abismo.

E é nesse abismo que o filme cai, sem possibilidade de resgate. Shanks tenta equilibrar as camadas de horror corporal com um drama sobre a crise conjugal, mas o resultado é tão desequilibrado que a obra escorrega para a comédia involuntária. As imagens que deveriam repugnar acabam provocando riso. Não aquele riso nervoso que muitas vezes acompanha os filmes de Cronenberg, mas uma gargalhada sincera, de quem percebe o ridículo no lugar do aterrorizante. O filme, sem querer, torna-se autoparódia. Em um ano em que obras como A Substância (2024) mostraram como é difícil lidar com o grotesco sem cair na caricatura, Juntos repete o erro de transformar o horror em um espetáculo risível. O problema é que, ao contrário de Jérémy Clapin ou de Julia Ducournau, Shanks não domina a ambiguidade entre o absurdo e o assustador; ele simplesmente perde o controle da própria obra.

A direção de Shanks até demonstra alguma inventividade visual em momentos isolados. Há enquadramentos que buscam a claustrofobia, planos fechados que tentam transmitir a sensação de aprisionamento físico e psicológico, mas nada disso se sustenta quando o conteúdo narrativo é frágil. A fotografia, por vezes limpa demais, não colabora com o desconforto. O body horror exige textura, exige sujeira, exige uma visceralidade que arranhe a pele do espectador. Aqui, tudo parece asséptico, quase clínico, e essa assepsia visual elimina qualquer potencial de repulsa. O horror, afinal, não é apenas o que se mostra, mas o que se sugere, e o que Juntos sugere é sempre pouco.

O ápice da decepção, contudo, está reservado para os minutos finais. É nesse momento que o filme deveria alcançar seu ponto máximo de tensão, oferecendo ao público uma síntese perturbadora da fusão dos corpos e do esfacelamento da individualidade. Em vez disso, o roteiro opta por uma saída didática, quase infantil, explicando em detalhes o que está acontecendo. O que deveria ser simbólico é reduzido a uma explicação literal, quase esquemática, como se o espectador não fosse capaz de compreender a metáfora por si só. A revelação da anomalia que gruda o casal — e que dá origem a uma entidade grotesca chamada Tillie — deveria ser um espetáculo de terror. O que se vê, porém, é um arremedo de explicação científica mal enjambrada, que retira qualquer mistério e encerra o filme com uma nota pífia. É um desfecho que não apenas decepciona, mas insulta a inteligência do público.

Ao final da sessão, a sensação que prevalece é a do tédio. Não houve susto, não houve desconforto, não houve o nojo físico que o body horror costuma provocar. Houve, sim, um riso insistente, fruto não da subversão ou do absurdo controlado, mas da falha crua de execução. É irônico pensar que uma ideia tão promissora — explorar literalmente o aprisionamento amoroso e o sufocamento de duas pessoas que se tornam uma só — tenha se transformado em algo tão vazio. O hype, alimentado pela originalidade do conceito e pela força dos materiais promocionais, esvaziou-se em poucos minutos de projeção. O que resta é um filme que tenta ser muitas coisas, mas não consegue ser nada: não é horror, não é drama, não é comédia. É apenas uma promessa quebrada.

Juntos é um exemplo perfeito de como o cinema de gênero pode naufragar quando não há consistência entre proposta e execução. A originalidade do ponto de partida não basta; é preciso que ela seja sustentada por atuações sólidas, por uma direção consciente e, sobretudo, por uma capacidade de perturbar genuinamente o espectador. Michael Shanks, que parecia prestes a conquistar espaço como um novo nome a ser observado no cinema de horror, entrega aqui um projeto frouxo, sem coragem e sem impacto. O resultado é um filme que, em vez de colar, descola-se diante de nossos olhos — e se perde em meio a gargalhadas não desejadas. Um cinema que nasceu para unir, mas que termina apenas separando a expectativa da realidade.

agosto 15, 2025

Filhos (2024)

 


Título original: Vogter
Direção: Gustav Möller
Sinopse: Eva é uma agente penitenciária idealista que enfrenta um dilema quando um jovem que faz parte de seu passado é transferido para a prisão onde ela trabalha. Sem revelar esse segredo, ela pede para ser alocada no bloco do rapaz, o mais violento da instituição. E assim começa um perturbador thriller psicológico, em que o sentido de justiça de Eva coloca a sua moralidade e o seu futuro em jogo.


Filhos (Vogter, 2024), de Gustav Möller, é daquelas raras experiências que lembram por que o cinema dinamarquês permanece um dos mais agudos termômetros morais do nosso tempo: ele encara a vida como ela é — sem adornos, sem aliviar o tom, drástica, autêntica, feroz. Möller, que já havia comprimido o mundo inteiro dentro de um fone de ouvido em Culpa (Den Skyldige, 2018), volta a construir um thriller psicológico de tirante moral quase insuportável, agora confinado não a uma central telefônica, mas às paredes úmidas e verticais de uma prisão. E o faz com uma precisão de relojoeiro: cada plano, cada respiração, cada silêncio serve à mesma pergunta incômoda — o que resta de nós quando a justiça se mistura ao desejo de vingança?

A premissa é tão simples quanto à beira do intolerável: Eva Hansen (Sidse Babett Knudsen), agente penitenciária exemplar, descobre que o assassino de seu filho foi transferido para a unidade em que trabalha. Em segredo, ela solicita ser realocada para o bloco mais duro do presídio, exatamente onde ele ficará detido. A partir daí, o filme recusa a facilidade das respostas, escalando um jogo de xadrez emocional e ético em que a protagonista precisa encarar a colisão entre seus ideais e a gravidade de sua dor. Esse é o chão factual sobre o qual Möller ergue o labirinto: competição oficial em Berlim (estreia em 22 de fevereiro de 2024), coprodução Dinamarca–Suécia e um elenco encabeçado por Knudsen e Sebastian Bull, que faz de Mikkel um enigma de carne e osso, tão ameaçador quanto vulnerável. 

O filme é magistral em absolutamente todos os aspectos — e não é hipérbole. Começa pela escolha de linguagem: a câmera de Jasper J. Spanning gruda em Eva como uma consciência externa, acompanhando-a de perto, quase sempre a uma distância que nos nega o alívio do enquadramento arejado. Essa proximidade não é mero recurso documental; é uma forma de ética visual. Ao restringir nosso campo, Möller e Spanning nos prendem à percepção da protagonista, tornando qualquer gesto — um olhar de soslaio no corredor, a hesitação ao virar a chave — um sismo íntimo. Críticos notaram esse seguimento obstinado da personagem, e não é casual que a mise-en-scène adote um enquadramento mais estreito (um “aperto” formal que dialoga com o confinamento), ecoando a tradição do “Academy ratio” como ferramenta de clausura dramática. 

Se a câmera oferece o grilhão, a montagem de Rasmus Stensgaard Madsen é o pulso. Há um rigor matemático na duração dos planos e nas elipses que avançam a narrativa sempre um passo antes de qualquer catarse. Madsen poda explicações, recusa flashbacks explicativos, e assim o espectador é convidado a preencher lacunas com suposições que o filme, sutilmente, sabota na cena seguinte. A trilha de Jon Ekstrand, por sua vez, costura o tecido de tensão com drones eletrônicos e cordas contidas, mais insinuadas do que proclamadas; é uma música que se comporta como sombra — cresce, enrijece o ar, mas quase nunca pede para ser “ouvida”, e sim sentida nas vísceras. 

A grandeza de Filhos se revela no modo como ele captura o espaço prisional não como cenário, e sim como organismo vivo. Paredes e portas se tornam extensões de vontades — tanto das que querem se proteger quanto das que desejam ferir. Não por acaso, alguns compararam o olhar naturalista de Möller ao de Um Profeta (Un prophète, 2009), de Jacques Audiard: a prisão como microcosmo moral onde hierarquias, rituais e códigos informais moldam cada gesto. O filme dinamarquês, porém, é ainda mais ascético. A linguagem elimina os excessos dramatúrgicos para apostar numa dramaturgia da retenção — uma arte de segurar mais do que de mostrar. 

Nada disso funcionaria sem o eixo interpretativo. Sidse Babett Knudsen compõe Eva como um campo de batalha interno: o rosto, inicialmente firme e profissional, vai ganhando fissuras, traços de febre contida, microdesvios de olhar que traem algo não digerido. Em sua contenção, ela encontra um crescendo que raramente explode — e, por isso mesmo, nos estrangula. Sebastian Bull, por outro lado, esculpe Mikkel como presença física ameaçadora que, de súbito, se ilumina por contradições: um tom de voz brando, um recolhimento quase infantil, e logo em seguida um jato de violência. A crítica internacional foi praticamente unânime em reconhecer a força desse duelo, descrevendo as performances como “forçosas” e “totalmente persuasivas”. Em tela, é um cabo de guerra sem vencedor possível: a cada aproximação, um abismo abre. 

O roteiro, assinado por Möller e Emil Nygaard Albertsen, trabalha na fricção entre sistemas — o jurídico, o penitenciário, o ético — e um sistema ainda mais complexo: o luto. Não há flashcards de motivação, não há discursos. O que existe é a coreografia das pequenas escolhas: quem se senta onde no refeitório, quem observa pelo cantinho da janela, quem decide falar e quem opta pelo silêncio estratégico. O filme entende que a verdadeira brutalidade raramente vem acompanhada de manifesto; ela se instala nos intervalos da rotina — e, quando percebemos, já tomou conta do ar. 

Em termos de desenho sonoro, Filhos aposta numa paisagem de reverberações metálicas, passos, rangidos, respirações que se interceptam. Esse uso de som “a seco” — sem a cola emocional do melodrama — reforça a ambiguidade com que Möller enquadra cada gesto de Eva. A pergunta não é “o que ela fará?”, e sim “o que nós faríamos?” quando a pessoa que representa o pior trauma de nossas vidas está a poucos centímetros, separada apenas por um protocolo e uma chave. Ekstrand, com seus leitos de tensão eletrônica, apenas potencializa esse desconforto: o coração do filme é uma sala de máquinas que nunca desliga. 

A cenografia e o figurino recusam a estilização. É um presídio fotografado como lugar de trabalho — corredores impessoais, iluminação que mais informa do que embeleza. A direção de arte constrói um espaço onde a violência não é espetáculo, mas possibilidade constante. E é precisamente nesse realismo cru que Filhos floresce como obra-prima de suspense psicológico: porque entende que o medo mais profundo não vem do falso susto, e sim da constatação de que, a partir de certo ponto, qualquer decisão é uma derrota. Quando o filme nos oferece saídas, são rampas que conduzem a novas culpas.

Há, também, uma dimensão política sub-reptícia. O texto coloca em fricção práticas de “reabilitação” aparente e a lógica subterrânea de poder que rege as alas, as negociações com internos, as concessões para manutenção da ordem. Eva encarna esse paradoxo: representante do Estado que, ao mesmo tempo, precisa sobreviver como indivíduo ferido dentro de uma colmeia de alianças e ameaças. Os homens ao redor — colegas, superiores, presos — não são “tipos”; são peças numa rede de gestão de risco. O filme recusa caricaturas e, por isso, pede mais do espectador: que observe, que julgue e, enfim, que desista de julgar.

Möller domina a progressão dramática com a serenidade de quem sabe exatamente onde quer nos deixar: em suspensão. Filhos prende o espectador do início ao fim — e, mais importante, nos mantém em zona de incerteza radical sobre onde a história vai desembocar. Não é um suspense que se organiza em degraus de reviravolta; é uma espiral. A cada volta, entendemos um pouco mais e, paradoxalmente, sentimos que sabemos menos. Quando o desfecho se impõe (não direi como), ele não nos entrega alívio, mas um espelho incômodo: perceber que, se compartilhássemos da história de Eva, talvez nossas convicções mais sólidas também se desfizessem ao toque do real.

Reforça essa amplitude o fato de Filhos surgir em Berlim, vitrine em que o cinema europeu costuma testar seus nervos éticos mais expostos. Ter sido selecionado para a competição oficial não é mero selo de prestígio; é sinal de que Möller trafega numa frequência rara, aquela em que o thriller se torna radiografia moral. E fora dos festivais, o filme tem construído reputação crítica consistente, com leituras que destacam o vigor das atuações, a construção atmosférica e a tensão mantida como corda retesada do primeiro ao último minuto. 

Tecnicamente, o conjunto é de uma coesão exemplar. O som trabalha como pele; a fotografia, como respiração; a montagem, como ritmo cardíaco; a direção, como sistema nervoso. A Nordisk Film, o Danish Film Institute e o time de produção consolidam uma obra cuja arquitetura industrial serve a um cinema de grande densidade humana — prova de um ecossistema audiovisual que sabe investir em histórias de risco sem diluir sua potência em fórmulas. Nos créditos, além de Möller, lá estão nomes que importa fixar: o já citado Spanning (câmera), Madsen (edição) e Ekstrand (música), o trio que dá a Filhos seu corpo orgânico de tensão. 

No fim, o triunfo de Filhos está no que ele nos tira: certezas. O cinema dinamarquês, mais uma vez, mostra que não precisa colorir a realidade para fazê-la pulsar — basta olhá-la de frente, sem piedade, com a lucidez de quem sabe que a vida raramente oferece epifanias sem custo. A obra de Möller é um golpe de ar frio entrando por uma fresta de aço: não anestesia, não enfeita, não consola. Apenas nos lembra que, de todos os cárceres possíveis, o mais difícil de transpor é aquele que carregamos dentro. E é por isso que Filhos não apenas “funciona” como suspense psicológico: ele permanece. Como uma marca, como um sussurro que não cessa, como uma pergunta que continua nos encarando quando as luzes já acenderam.

Bancando o Águia (1924)

 


Título original: Sherlock Jr.
Direção: Buster Keaton
Sinopse: Um projecionista de cinema que sonha em ser detetive coloca suas escassas habilidades em prática quando é incriminado por um rival por roubar o relógio de bolso do pai de sua namorada.


Bancando o Águia (Sherlock Jr., 1924) é o tipo de filme que lembra por que Buster Keaton virou sinônimo de inteligência física e rigor formal. Ao mesmo tempo, revendo-o hoje, fica claro que, apesar de seu brilho e de alguns momentos realmente antológicos, ele não é o cume do artista — é uma peça compacta, elegante e engenhosa, mas não a que melhor sintetiza a amplitude poética e o fôlego épico que Keaton alcançaria em outros títulos. Como entretenimento, porém, funciona com a precisão de um relógio suíço: em 45 minutos, apresenta uma ideia central fortíssima (o sonho do projecionista que entra no filme), a desenvolve com invenções visuais inesquecíveis e encerra com uma piscadela romântica que, por si só, explica a persistência do seu charme. 

Tecnicamente, Bancando o Águia é uma vitrine do que o cinema mudo tinha de mais ousado em 1924, com uma sofisticação de efeitos e de precisão de mise-en-scène que impressiona mesmo em comparação a longas posteriores. A fotografia é assinada por Elgin Lessley e Byron Houck, dupla crucial para que as proezas de ilusão funcionassem milimetricamente. Não é só a nitidez dos planos, mas a forma como o enquadramento “prepara” cada gag, como se a câmera fosse cúmplice dos truques. Lessley, em particular, já era conhecido por experimentar exposições múltiplas e coreografias óticas; com Houck, constrói uma gramática visual que permite ao protagonista literalmente “atravessar” a tela e saltar de cenário em cenário, em cortes que obedecem rigorosa continuidade espacial. A lenda de que Keaton e sua equipe usaram instrumentos de agrimensura para alinhar a posição do corpo e da câmera a cada transição tem fundamento: era a única maneira de manter o alinhamento perfeito quando o personagem é “expulso” e “puxado” de volta ao interior do filme. O resultado até hoje parece bruxaria, mas é apenas planejamento extremo, bom senso de luz e um senso quase matemático de espaço. 

Essa sequência — a do projecionista que caminha do fosso da orquestra até a tela e, de um salto, entra no filme — não é só uma demonstração de virtuosismo técnico: é também a declaração estética de Bancando o Águia. Keaton constrói uma reflexão cristalina sobre a ilusão cinematográfica, sobre como o recorte e o corte transformam a realidade em sonho. A cada mudança brusca de cenário (praça, lago, precipício, deserto), o corpo de Keaton é violentado pela continuidade formal que o cinema impõe. O humor nasce do choque, da “tirania” do raccord: o mundo físico é um brinquedo cruel a serviço do encadeamento dos planos. Há, nesse gesto, um comentário metalinguístico que antecipa o cinema moderno — e não é por acaso que muitos historiadores o situam como uma das formas pioneiras do “filme dentro do filme”, ainda que o recurso já existisse pontualmente, raramente com tal centralidade temática e precisão coreográfica. 

Se o bloco do sonho carrega a reputação do filme, não se deve subestimar a carpintaria cômica das sequências “no mundo real”. Keaton interpreta um operador de projeção que aspira ser detetive, vítima de uma armação banal que o acusa de roubo. A maneira como o roteiro — creditado a Jean Havez, Joe Mitchell e Clyde Bruckman — organiza os mal-entendidos é exemplar do humor “limpo” do período: gestos mínimos deflagram dominós de equívocos, sem necessidade de verborragia ou de caricatura rasteira. A direção de arte de Fred Gabourie e o desenho de figurinos de Clare West ajudam a manter o universo num registro meio atemporal, de postal, que favorece a clareza de leitura dos planos e a frontalidade dos gags; tudo é desenhado para a câmera, para a leitura do gesto, para a projeção do corpo no espaço. É uma economia também moral: o protagonista só será perdoado quando o cinema (literalmente) ajudá-lo, e o filme, astuto, faz do próprio dispositivo a ferramenta de redenção. 

Como espetáculo físico, Bancando o Águia ainda espanta. A sequência da moto, com Keaton à mercê do veículo, é um manual de encenação de risco sob controle: a câmera não “arrebata” a ação; ela a observa o suficiente para que o espectador compreenda as trajetórias, as distâncias, as margens de segurança — e ria porque sabe que a margem é mínima. O célebre episódio da caixa d’água do trem, durante o qual Keaton sofreu uma queda violenta, ilustra de maneira quase dolorosa a dedicação do comediante ao real. Anos depois, um exame revelaria que aquela pancada lhe fraturou uma vértebra, descoberta tardia que só alimentou o mito de um artista que não poupava o próprio corpo. É impossível não assistir a essas cenas sem sentir, hoje, um misto de deslumbramento e apreensão: o riso vem do timing, mas também do reconhecimento de que o corpo humano é o primeiro e mais maleável dos efeitos especiais. 

Do ponto de vista de linguagem, o filme é uma aula de montagem rítmica. A progressão das gags obedece a uma curva quase musical: introdução (instalação do desejo e do equívoco), desenvolvimento (exacerbação do caos lógico dentro do sonho) e coda (o retorno à cabina e a resolução afetiva). A edição evita truques exibicionistas gratuitos; ao contrário, aposta em cortes secos que reforçam a precisão coreográfica. Repare como os cortes de cenário durante o sonho nunca “traem” a posição relativa de Keaton: ou ele se vê expulso por uma mudança abrupta que o joga ao chão, ou o plano seguinte “puxa” o corpo para uma situação nova — a piada está sempre no atrito entre a continuidade presumida e a descontinuidade brutal. É a prova de que não existe gag boa sem geografia clara.

Ainda assim, e aqui entra a ressalva, Bancando o Águia não é o Keaton mais completo. Falta-lhe a dimensão épica e a engenharia narrativa de trabalhos como A General, em que a aventura se expande para além da ideia central e envolve uma orquestra de elementos dramáticos, cenográficos e históricos. Em Bancando o Águia, há um núcleo conceitual quase perfeito — o sonho metalinguístico —, mas o que o circunda, apesar de eficiente, é mais leve, menos ressonante. A própria duração curta ajuda a manter o filme enxuto, porém limita a sedimentação emocional: terminamos encantados, mas talvez não exatamente tocados. Muitos críticos e listas canônicas elevam Bancando o Águia ao topo da filmografia de Keaton, mas, em perspectiva, parece mais justo vê-lo como um pico reluzente numa cordilheira onde existem cumes mais vastos.

No desenho de personagens, Keaton mais uma vez se vale da sua persona do “homem de pedra”: máscara impassível, olhar ligeiramente melancólico, economia de gestos. Kathryn McGuire, como a garota, oferece o contrapeso de graça e leveza, e Ward Crane compõe um antagonista elegante, funcional ao conflito. O elenco é usado quase como notação musical: cada figura entra e sai para marcar o tempo de um gag, não para monopolizar a cena. Nesse sentido, o filme é coreografado como um balé mecânico, no qual portas, janelas, bicicletas, cadeiras e chapéus são tão protagonistas quanto os atores — extensão do conceito de que o cinema é, fundamentalmente, o arranjo das forças do mundo material.

A trilha musical varia conforme a edição exibida — sendo um título mudo, Bancando o Águia multiplicou ao longo das décadas as partiturais possíveis —, mas o que interessa é como o gesto visual pede música: as pausas, as acelerações e os “silêncios” pedem sublinhados que o ouvido completa. É um filme que você “escuta” nos golpes de timing da montagem, nos saltos e contratempos das quedas, nos “crescendo” da perseguição. A comicidade física, aqui, tem cadência quase sinfônica.

Do ponto de vista histórico, o filme cristaliza uma virada essencial do cinema: a consciência do meio sobre si mesmo. Ao fazer do sonho um “atalho” para discutir a ilusão, Keaton não está apenas brincando com um dispositivo; ele antecipa uma visão moderna do espectador como cúmplice da maquinaria. A entrada do projecionista na tela dá corpo a uma fantasia coletiva — quem nunca quis atravessar a superfície luminosa? — e, ao mesmo tempo, lembra que estamos sempre do lado de cá, projetando desejos. Por isso sua famosa cena final, quando o herói imita, sem jeito, os gestos românticos do casal que vê na tela, é tão comovente: o cinema nos oferece modelos, mas a vida real tropeça, hesita e precisa encontrar um jeito próprio de tocar o outro.

É também um marco na cultura dos efeitos especiais pré-digitais. Os truques não vivem de pós-vida técnica; vivem de dramaturgia. O “como” importa porque serve ao “porquê”. Keaton tinha um senso artesanal de causa e efeito que permanece exemplar: toda ilusão nasce de uma necessidade dramática, nunca de uma vontade vazia de deslumbrar. Quando atravessa a tela, o faz porque deseja entrar na história — e o filme se estrutura para responder a esse impulso. A técnica, como deveria ser, está a serviço do desejo humano.

Há, claro, arestas. A leveza narrativa por vezes roça o episódico, sobretudo fora do sonho; algumas gags, tomadas isoladamente, parecem vinhetas brilhantes à espera de um encadeamento mais robusto. A própria solução do conflito é veloz, quase “mecânica”, como se o filme se apressasse para a piscadela final. Nada disso reduz o prazer do conjunto, mas explica por que Bancando o Águia — por mais encantador e inventivo — pode soar menos pleno que as obras em que Keaton expandiu sua ambição espacial e dramática.

Em termos de legado, porém, é difícil exagerar sua influência. A ideia de personagem entrando na “outra realidade” projetada voltaria em fantasias várias; a precisão dos cortes inspirou gerações de montadores; e a ética de Keaton — de encenar no corpo, de desenhar a gag no espaço e não na tesoura — permanece farol para qualquer cineasta interessado em humor físico. Não à toa, o filme ocupa posição de destaque em retrospectos e listas de melhores comédias americanas, justamente pelo caráter pioneiro e pela virtuosidade concentrada que exibe. 

No fim, Bancando o Águia é isso: um tesouro de invenções, um laboratório de linguagem e um espetáculo ágil que se consome com alegria. Talvez não seja o Keaton mais “completo” — falta-lhe um pouco do pulso épico, da ressonância emocional ampla e do senso de mundo que encontramos em outros títulos do diretor —, mas, como experiência cinéfila, continua irresistível. É o tipo de filme que você mostra para lembrar que o cinema pensava a si mesmo desde muito cedo, e que um homem, uma câmera e uma ideia podem dobrar a realidade. Saímos dele com a certeza de que Keaton dominava a gramática do riso como poucos — e com a impressão, carinhosamente incômoda, de que seus sonhos, por mais breves, sempre falavam mais alto do que qualquer truque.