Sugarcane, o longa-documentário de Emily Kassie e Julian Brave NoiseCat, chega ao espectador com a força de uma denúncia histórica gravada na alma: a tragédia das escolas residenciais indígenas no Canadá, que separaram, silenciaram e vitimaram milhares de crianças. Dirigido com uma câmera que busca ao mesmo tempo compaixão e verdade crua, o filme foi aplaudido em Sundance e indicado ao Oscar de Melhor Documentário.
Por trás dessa edição dramática de prêmios e reconhecimento, esconde-se, no entanto, uma sensação de desconexão: a narrativa se mostra obtusa, desconcertada, e frequentemente falha em estabelecer um ponto de empatia que nos ancore na implacável história. Em vez de guiar, o filme parece remar contra sua própria estrutura dramática.
O documentário se propõe a escavar os segredos terríveis das escolas residenciais – infanticídio, abuso físico, psicológico, espiritual – mas sua forma de decupar essas atrocidades deixa a desejar. A cidade de Williams Lake, a Missão St. Joseph, os túmulos não marcados — tudo isso emerge com uma fragmentação que nos afasta ao invés de nos envolver. Há dor, há culpa, há silêncio — mas não um fio narrativo sólido que deixe claro por que devemos nos envolver emocionalmente. O espectador presencia depoimentos intensos, mas sem uma ponte que o leve ao íntimo dessas histórias.
O trabalho dos editores Nathan Punwar e Maya Daisy Hawke, elogiado em premiações, infelizmente, não reverbera na tela como um ponto positivo. Embora o material bruto seja poderoso — depoimentos marcantes como os de Ed Archie NoiseCat (pai de Julian), sobreviventes e líderes locais emergindo com uma voz que se deseja ancestral — a montagem se arrasta, tropeça, cria lapsos onde personagens desaparecem ou mudam de foco sem aviso.
Em vez de um fio contínuo, percebemos recortes abruptos: uma cena termina e a seguinte brota do nada, muitas vezes centrada em paisagens majestosas ao invés de nos rostos e histórias que deveriam nos tocar. Os personagens, por isso, se tornam figuras perdidas, engolfadas por um ritmo irregular. Sua aura humana — frágil, potente, digna — acaba submersa pelo ritmo que se recusa a sustentar atenção.
Sugarcane inicia como um claro chamado à investigação — como se acordássemos junto dos diretores diante da descoberta de túmulos e nos pusessem de imediato a vasculhar a memoria coletiva. Mas a jornada não avança com força: o filme parece começar do zero, rodada após rodada, sem rumo definido. Ele retrata esse recomeço da investigação (como se fosse planejado, quase um documentário procedural), mas ao final, não traz nem conclusões palpáveis, nem vingança, nem expectativa de rastreamento dos culpados — como, por exemplo, implementar um arco sobre “o único padre ainda vivo”.
Essa ausência de desfecho cria uma frustração legítima: quando encaramos tantas atrocidades, esperamos indignação, posicionamento, uma condução moral, um nome a punir, uma pergunta final — seja feita à justiça ou aos espectadores. Mas Sugarcane se satisfaz com o silêncio resignado, posicionando-se como um documento de testemunho quase contemplativo — que honra o passado, sim, mas falha em buscar justiça presente — sem perseguir os perpetradores, sem mostrar investigações concretas. Fica a sensação de que tudo termina em vazio moral.
A proposta de expor um problema nacional ganha intensidade quando o filme destaca que até mesmo figuras centrais — como o então primeiro-ministro Justin Trudeau — pareciam ignorar ou minimizar o alcance da situação. O documentário mostra breves cenas de desculpas oficiais — tanto do Papa quanto de Trudeau — mas essas imagens parecem inserções tardias e superficiais, quase peças de repertório exigidas para validar a narrativa global.
Esse distanciamento, a meu ver, torna Sugarcane um filme de nicho: investe sobretudo no interior vasto do Canadá, nas comunidades locais, nas paisagens introvertidas, como se o tema fosse concernente apenas àqueles que o vivem diretamente. Ao mesmo tempo em que traz voz aos sobreviventes, elide a dimensão política e nacional, relegando o filme a um território íntimo demais, incapaz de ecoar além do perímetro geográfico e emocional das reservas.
Não se pode negar: o filme é visualmente impactante. A fotografia de Emily Kassie e Christopher LaMarca, vencedora em prêmios de cinematografia, traz tomadas amplas e contemplativas da natureza: florestas, campos nevados, rios, silêncios visuais marcantes. São composições belíssimas, que lembram pinturas em movimento.
Mas o que há de poético nessas sequências parece se tornar uma armadilha: há muitos takes silenciosos, com paisagens e personagens em pose estática, que, embora lindos, não agregam conteúdo dramático nem contribuem para o embate emocional que se espera. Produzido pela National Geographic, o filme exibe sua vocação visual — mas em excesso. O espectador se deleita pela estética, mas sente ausência de contaminação narrativa: o que acontece ali? Para onde nos levam esses horizontes? A beleza sem propósito emocional não sustenta a tensão que um tema desse calibre exige.
Sugarcane é um filme paradoxal: sua relevância histórica é inegável, sua gestão sensível das vozes indígenas ressoa como um ato de justiça. Mas artisticamente, ele tropeça em seu próprio potencial. Sua narrativa fragmentada dificulta o engajamento emocional pleno; sua montagem errática dispersa personagens importantes; sua trajetória investigativa começa cheia de vigor e termina sem destino definitivo; suas paisagens grandiosas deslizam como belas distrações em vez de âncoras dramáticas.
Em suma, Sugarcane é um documentário honesto, importante, que registra uma ferida histórica. Mas falha em transformar essa ferida em uma narrativa estruturada, em uma jornada com direções claras. Acaba se convertendo mais em um objeto de observação estética e testemunho factual do que em uma experiência que persegue justiça, conclusão, ou urgência dramática—um filme de nicho, lindo, relevante, mas distante demais.
Isso não apaga o valor do depoimento emocional e histórico do filme — ele traz luz, traz memória, traz cura. Mas numa sala escura, esperávamos também um impulso: não só ver a dor, mas sentir o ímpeto da pergunta, da busca, da responsabilização. E aí Sugarcane nos deixa com desejo de um caminho mais firme, mais claro. Nesse sentido, ele emociona, sim — mas não conduz.
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