Bancando o Águia (Sherlock Jr., 1924) é o tipo de filme que lembra por que Buster Keaton virou sinônimo de inteligência física e rigor formal. Ao mesmo tempo, revendo-o hoje, fica claro que, apesar de seu brilho e de alguns momentos realmente antológicos, ele não é o cume do artista — é uma peça compacta, elegante e engenhosa, mas não a que melhor sintetiza a amplitude poética e o fôlego épico que Keaton alcançaria em outros títulos. Como entretenimento, porém, funciona com a precisão de um relógio suíço: em 45 minutos, apresenta uma ideia central fortíssima (o sonho do projecionista que entra no filme), a desenvolve com invenções visuais inesquecíveis e encerra com uma piscadela romântica que, por si só, explica a persistência do seu charme.
Tecnicamente, Bancando o Águia é uma vitrine do que o cinema mudo tinha de mais ousado em 1924, com uma sofisticação de efeitos e de precisão de mise-en-scène que impressiona mesmo em comparação a longas posteriores. A fotografia é assinada por Elgin Lessley e Byron Houck, dupla crucial para que as proezas de ilusão funcionassem milimetricamente. Não é só a nitidez dos planos, mas a forma como o enquadramento “prepara” cada gag, como se a câmera fosse cúmplice dos truques. Lessley, em particular, já era conhecido por experimentar exposições múltiplas e coreografias óticas; com Houck, constrói uma gramática visual que permite ao protagonista literalmente “atravessar” a tela e saltar de cenário em cenário, em cortes que obedecem rigorosa continuidade espacial. A lenda de que Keaton e sua equipe usaram instrumentos de agrimensura para alinhar a posição do corpo e da câmera a cada transição tem fundamento: era a única maneira de manter o alinhamento perfeito quando o personagem é “expulso” e “puxado” de volta ao interior do filme. O resultado até hoje parece bruxaria, mas é apenas planejamento extremo, bom senso de luz e um senso quase matemático de espaço.
Essa sequência — a do projecionista que caminha do fosso da orquestra até a tela e, de um salto, entra no filme — não é só uma demonstração de virtuosismo técnico: é também a declaração estética de Bancando o Águia. Keaton constrói uma reflexão cristalina sobre a ilusão cinematográfica, sobre como o recorte e o corte transformam a realidade em sonho. A cada mudança brusca de cenário (praça, lago, precipício, deserto), o corpo de Keaton é violentado pela continuidade formal que o cinema impõe. O humor nasce do choque, da “tirania” do raccord: o mundo físico é um brinquedo cruel a serviço do encadeamento dos planos. Há, nesse gesto, um comentário metalinguístico que antecipa o cinema moderno — e não é por acaso que muitos historiadores o situam como uma das formas pioneiras do “filme dentro do filme”, ainda que o recurso já existisse pontualmente, raramente com tal centralidade temática e precisão coreográfica.
Se o bloco do sonho carrega a reputação do filme, não se deve subestimar a carpintaria cômica das sequências “no mundo real”. Keaton interpreta um operador de projeção que aspira ser detetive, vítima de uma armação banal que o acusa de roubo. A maneira como o roteiro — creditado a Jean Havez, Joe Mitchell e Clyde Bruckman — organiza os mal-entendidos é exemplar do humor “limpo” do período: gestos mínimos deflagram dominós de equívocos, sem necessidade de verborragia ou de caricatura rasteira. A direção de arte de Fred Gabourie e o desenho de figurinos de Clare West ajudam a manter o universo num registro meio atemporal, de postal, que favorece a clareza de leitura dos planos e a frontalidade dos gags; tudo é desenhado para a câmera, para a leitura do gesto, para a projeção do corpo no espaço. É uma economia também moral: o protagonista só será perdoado quando o cinema (literalmente) ajudá-lo, e o filme, astuto, faz do próprio dispositivo a ferramenta de redenção.
Como espetáculo físico, Bancando o Águia ainda espanta. A sequência da moto, com Keaton à mercê do veículo, é um manual de encenação de risco sob controle: a câmera não “arrebata” a ação; ela a observa o suficiente para que o espectador compreenda as trajetórias, as distâncias, as margens de segurança — e ria porque sabe que a margem é mínima. O célebre episódio da caixa d’água do trem, durante o qual Keaton sofreu uma queda violenta, ilustra de maneira quase dolorosa a dedicação do comediante ao real. Anos depois, um exame revelaria que aquela pancada lhe fraturou uma vértebra, descoberta tardia que só alimentou o mito de um artista que não poupava o próprio corpo. É impossível não assistir a essas cenas sem sentir, hoje, um misto de deslumbramento e apreensão: o riso vem do timing, mas também do reconhecimento de que o corpo humano é o primeiro e mais maleável dos efeitos especiais.
Do ponto de vista de linguagem, o filme é uma aula de montagem rítmica. A progressão das gags obedece a uma curva quase musical: introdução (instalação do desejo e do equívoco), desenvolvimento (exacerbação do caos lógico dentro do sonho) e coda (o retorno à cabina e a resolução afetiva). A edição evita truques exibicionistas gratuitos; ao contrário, aposta em cortes secos que reforçam a precisão coreográfica. Repare como os cortes de cenário durante o sonho nunca “traem” a posição relativa de Keaton: ou ele se vê expulso por uma mudança abrupta que o joga ao chão, ou o plano seguinte “puxa” o corpo para uma situação nova — a piada está sempre no atrito entre a continuidade presumida e a descontinuidade brutal. É a prova de que não existe gag boa sem geografia clara.
Ainda assim, e aqui entra a ressalva, Bancando o Águia não é o Keaton mais completo. Falta-lhe a dimensão épica e a engenharia narrativa de trabalhos como A General, em que a aventura se expande para além da ideia central e envolve uma orquestra de elementos dramáticos, cenográficos e históricos. Em Bancando o Águia, há um núcleo conceitual quase perfeito — o sonho metalinguístico —, mas o que o circunda, apesar de eficiente, é mais leve, menos ressonante. A própria duração curta ajuda a manter o filme enxuto, porém limita a sedimentação emocional: terminamos encantados, mas talvez não exatamente tocados. Muitos críticos e listas canônicas elevam Bancando o Águia ao topo da filmografia de Keaton, mas, em perspectiva, parece mais justo vê-lo como um pico reluzente numa cordilheira onde existem cumes mais vastos.
No desenho de personagens, Keaton mais uma vez se vale da sua persona do “homem de pedra”: máscara impassível, olhar ligeiramente melancólico, economia de gestos. Kathryn McGuire, como a garota, oferece o contrapeso de graça e leveza, e Ward Crane compõe um antagonista elegante, funcional ao conflito. O elenco é usado quase como notação musical: cada figura entra e sai para marcar o tempo de um gag, não para monopolizar a cena. Nesse sentido, o filme é coreografado como um balé mecânico, no qual portas, janelas, bicicletas, cadeiras e chapéus são tão protagonistas quanto os atores — extensão do conceito de que o cinema é, fundamentalmente, o arranjo das forças do mundo material.
A trilha musical varia conforme a edição exibida — sendo um título mudo, Bancando o Águia multiplicou ao longo das décadas as partiturais possíveis —, mas o que interessa é como o gesto visual pede música: as pausas, as acelerações e os “silêncios” pedem sublinhados que o ouvido completa. É um filme que você “escuta” nos golpes de timing da montagem, nos saltos e contratempos das quedas, nos “crescendo” da perseguição. A comicidade física, aqui, tem cadência quase sinfônica.
Do ponto de vista histórico, o filme cristaliza uma virada essencial do cinema: a consciência do meio sobre si mesmo. Ao fazer do sonho um “atalho” para discutir a ilusão, Keaton não está apenas brincando com um dispositivo; ele antecipa uma visão moderna do espectador como cúmplice da maquinaria. A entrada do projecionista na tela dá corpo a uma fantasia coletiva — quem nunca quis atravessar a superfície luminosa? — e, ao mesmo tempo, lembra que estamos sempre do lado de cá, projetando desejos. Por isso sua famosa cena final, quando o herói imita, sem jeito, os gestos românticos do casal que vê na tela, é tão comovente: o cinema nos oferece modelos, mas a vida real tropeça, hesita e precisa encontrar um jeito próprio de tocar o outro.
É também um marco na cultura dos efeitos especiais pré-digitais. Os truques não vivem de pós-vida técnica; vivem de dramaturgia. O “como” importa porque serve ao “porquê”. Keaton tinha um senso artesanal de causa e efeito que permanece exemplar: toda ilusão nasce de uma necessidade dramática, nunca de uma vontade vazia de deslumbrar. Quando atravessa a tela, o faz porque deseja entrar na história — e o filme se estrutura para responder a esse impulso. A técnica, como deveria ser, está a serviço do desejo humano.
Há, claro, arestas. A leveza narrativa por vezes roça o episódico, sobretudo fora do sonho; algumas gags, tomadas isoladamente, parecem vinhetas brilhantes à espera de um encadeamento mais robusto. A própria solução do conflito é veloz, quase “mecânica”, como se o filme se apressasse para a piscadela final. Nada disso reduz o prazer do conjunto, mas explica por que Bancando o Águia — por mais encantador e inventivo — pode soar menos pleno que as obras em que Keaton expandiu sua ambição espacial e dramática.
Em termos de legado, porém, é difícil exagerar sua influência. A ideia de personagem entrando na “outra realidade” projetada voltaria em fantasias várias; a precisão dos cortes inspirou gerações de montadores; e a ética de Keaton — de encenar no corpo, de desenhar a gag no espaço e não na tesoura — permanece farol para qualquer cineasta interessado em humor físico. Não à toa, o filme ocupa posição de destaque em retrospectos e listas de melhores comédias americanas, justamente pelo caráter pioneiro e pela virtuosidade concentrada que exibe.
No fim, Bancando o Águia é isso: um tesouro de invenções, um laboratório de linguagem e um espetáculo ágil que se consome com alegria. Talvez não seja o Keaton mais “completo” — falta-lhe um pouco do pulso épico, da ressonância emocional ampla e do senso de mundo que encontramos em outros títulos do diretor —, mas, como experiência cinéfila, continua irresistível. É o tipo de filme que você mostra para lembrar que o cinema pensava a si mesmo desde muito cedo, e que um homem, uma câmera e uma ideia podem dobrar a realidade. Saímos dele com a certeza de que Keaton dominava a gramática do riso como poucos — e com a impressão, carinhosamente incômoda, de que seus sonhos, por mais breves, sempre falavam mais alto do que qualquer truque.
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