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agosto 15, 2025

Filhos (2024)

 


Título original: Vogter
Direção: Gustav Möller
Sinopse: Eva é uma agente penitenciária idealista que enfrenta um dilema quando um jovem que faz parte de seu passado é transferido para a prisão onde ela trabalha. Sem revelar esse segredo, ela pede para ser alocada no bloco do rapaz, o mais violento da instituição. E assim começa um perturbador thriller psicológico, em que o sentido de justiça de Eva coloca a sua moralidade e o seu futuro em jogo.


Filhos (Vogter, 2024), de Gustav Möller, é daquelas raras experiências que lembram por que o cinema dinamarquês permanece um dos mais agudos termômetros morais do nosso tempo: ele encara a vida como ela é — sem adornos, sem aliviar o tom, drástica, autêntica, feroz. Möller, que já havia comprimido o mundo inteiro dentro de um fone de ouvido em Culpa (Den Skyldige, 2018), volta a construir um thriller psicológico de tirante moral quase insuportável, agora confinado não a uma central telefônica, mas às paredes úmidas e verticais de uma prisão. E o faz com uma precisão de relojoeiro: cada plano, cada respiração, cada silêncio serve à mesma pergunta incômoda — o que resta de nós quando a justiça se mistura ao desejo de vingança?

A premissa é tão simples quanto à beira do intolerável: Eva Hansen (Sidse Babett Knudsen), agente penitenciária exemplar, descobre que o assassino de seu filho foi transferido para a unidade em que trabalha. Em segredo, ela solicita ser realocada para o bloco mais duro do presídio, exatamente onde ele ficará detido. A partir daí, o filme recusa a facilidade das respostas, escalando um jogo de xadrez emocional e ético em que a protagonista precisa encarar a colisão entre seus ideais e a gravidade de sua dor. Esse é o chão factual sobre o qual Möller ergue o labirinto: competição oficial em Berlim (estreia em 22 de fevereiro de 2024), coprodução Dinamarca–Suécia e um elenco encabeçado por Knudsen e Sebastian Bull, que faz de Mikkel um enigma de carne e osso, tão ameaçador quanto vulnerável. 

O filme é magistral em absolutamente todos os aspectos — e não é hipérbole. Começa pela escolha de linguagem: a câmera de Jasper J. Spanning gruda em Eva como uma consciência externa, acompanhando-a de perto, quase sempre a uma distância que nos nega o alívio do enquadramento arejado. Essa proximidade não é mero recurso documental; é uma forma de ética visual. Ao restringir nosso campo, Möller e Spanning nos prendem à percepção da protagonista, tornando qualquer gesto — um olhar de soslaio no corredor, a hesitação ao virar a chave — um sismo íntimo. Críticos notaram esse seguimento obstinado da personagem, e não é casual que a mise-en-scène adote um enquadramento mais estreito (um “aperto” formal que dialoga com o confinamento), ecoando a tradição do “Academy ratio” como ferramenta de clausura dramática. 

Se a câmera oferece o grilhão, a montagem de Rasmus Stensgaard Madsen é o pulso. Há um rigor matemático na duração dos planos e nas elipses que avançam a narrativa sempre um passo antes de qualquer catarse. Madsen poda explicações, recusa flashbacks explicativos, e assim o espectador é convidado a preencher lacunas com suposições que o filme, sutilmente, sabota na cena seguinte. A trilha de Jon Ekstrand, por sua vez, costura o tecido de tensão com drones eletrônicos e cordas contidas, mais insinuadas do que proclamadas; é uma música que se comporta como sombra — cresce, enrijece o ar, mas quase nunca pede para ser “ouvida”, e sim sentida nas vísceras. 

A grandeza de Filhos se revela no modo como ele captura o espaço prisional não como cenário, e sim como organismo vivo. Paredes e portas se tornam extensões de vontades — tanto das que querem se proteger quanto das que desejam ferir. Não por acaso, alguns compararam o olhar naturalista de Möller ao de Um Profeta (Un prophète, 2009), de Jacques Audiard: a prisão como microcosmo moral onde hierarquias, rituais e códigos informais moldam cada gesto. O filme dinamarquês, porém, é ainda mais ascético. A linguagem elimina os excessos dramatúrgicos para apostar numa dramaturgia da retenção — uma arte de segurar mais do que de mostrar. 

Nada disso funcionaria sem o eixo interpretativo. Sidse Babett Knudsen compõe Eva como um campo de batalha interno: o rosto, inicialmente firme e profissional, vai ganhando fissuras, traços de febre contida, microdesvios de olhar que traem algo não digerido. Em sua contenção, ela encontra um crescendo que raramente explode — e, por isso mesmo, nos estrangula. Sebastian Bull, por outro lado, esculpe Mikkel como presença física ameaçadora que, de súbito, se ilumina por contradições: um tom de voz brando, um recolhimento quase infantil, e logo em seguida um jato de violência. A crítica internacional foi praticamente unânime em reconhecer a força desse duelo, descrevendo as performances como “forçosas” e “totalmente persuasivas”. Em tela, é um cabo de guerra sem vencedor possível: a cada aproximação, um abismo abre. 

O roteiro, assinado por Möller e Emil Nygaard Albertsen, trabalha na fricção entre sistemas — o jurídico, o penitenciário, o ético — e um sistema ainda mais complexo: o luto. Não há flashcards de motivação, não há discursos. O que existe é a coreografia das pequenas escolhas: quem se senta onde no refeitório, quem observa pelo cantinho da janela, quem decide falar e quem opta pelo silêncio estratégico. O filme entende que a verdadeira brutalidade raramente vem acompanhada de manifesto; ela se instala nos intervalos da rotina — e, quando percebemos, já tomou conta do ar. 

Em termos de desenho sonoro, Filhos aposta numa paisagem de reverberações metálicas, passos, rangidos, respirações que se interceptam. Esse uso de som “a seco” — sem a cola emocional do melodrama — reforça a ambiguidade com que Möller enquadra cada gesto de Eva. A pergunta não é “o que ela fará?”, e sim “o que nós faríamos?” quando a pessoa que representa o pior trauma de nossas vidas está a poucos centímetros, separada apenas por um protocolo e uma chave. Ekstrand, com seus leitos de tensão eletrônica, apenas potencializa esse desconforto: o coração do filme é uma sala de máquinas que nunca desliga. 

A cenografia e o figurino recusam a estilização. É um presídio fotografado como lugar de trabalho — corredores impessoais, iluminação que mais informa do que embeleza. A direção de arte constrói um espaço onde a violência não é espetáculo, mas possibilidade constante. E é precisamente nesse realismo cru que Filhos floresce como obra-prima de suspense psicológico: porque entende que o medo mais profundo não vem do falso susto, e sim da constatação de que, a partir de certo ponto, qualquer decisão é uma derrota. Quando o filme nos oferece saídas, são rampas que conduzem a novas culpas.

Há, também, uma dimensão política sub-reptícia. O texto coloca em fricção práticas de “reabilitação” aparente e a lógica subterrânea de poder que rege as alas, as negociações com internos, as concessões para manutenção da ordem. Eva encarna esse paradoxo: representante do Estado que, ao mesmo tempo, precisa sobreviver como indivíduo ferido dentro de uma colmeia de alianças e ameaças. Os homens ao redor — colegas, superiores, presos — não são “tipos”; são peças numa rede de gestão de risco. O filme recusa caricaturas e, por isso, pede mais do espectador: que observe, que julgue e, enfim, que desista de julgar.

Möller domina a progressão dramática com a serenidade de quem sabe exatamente onde quer nos deixar: em suspensão. Filhos prende o espectador do início ao fim — e, mais importante, nos mantém em zona de incerteza radical sobre onde a história vai desembocar. Não é um suspense que se organiza em degraus de reviravolta; é uma espiral. A cada volta, entendemos um pouco mais e, paradoxalmente, sentimos que sabemos menos. Quando o desfecho se impõe (não direi como), ele não nos entrega alívio, mas um espelho incômodo: perceber que, se compartilhássemos da história de Eva, talvez nossas convicções mais sólidas também se desfizessem ao toque do real.

Reforça essa amplitude o fato de Filhos surgir em Berlim, vitrine em que o cinema europeu costuma testar seus nervos éticos mais expostos. Ter sido selecionado para a competição oficial não é mero selo de prestígio; é sinal de que Möller trafega numa frequência rara, aquela em que o thriller se torna radiografia moral. E fora dos festivais, o filme tem construído reputação crítica consistente, com leituras que destacam o vigor das atuações, a construção atmosférica e a tensão mantida como corda retesada do primeiro ao último minuto. 

Tecnicamente, o conjunto é de uma coesão exemplar. O som trabalha como pele; a fotografia, como respiração; a montagem, como ritmo cardíaco; a direção, como sistema nervoso. A Nordisk Film, o Danish Film Institute e o time de produção consolidam uma obra cuja arquitetura industrial serve a um cinema de grande densidade humana — prova de um ecossistema audiovisual que sabe investir em histórias de risco sem diluir sua potência em fórmulas. Nos créditos, além de Möller, lá estão nomes que importa fixar: o já citado Spanning (câmera), Madsen (edição) e Ekstrand (música), o trio que dá a Filhos seu corpo orgânico de tensão. 

No fim, o triunfo de Filhos está no que ele nos tira: certezas. O cinema dinamarquês, mais uma vez, mostra que não precisa colorir a realidade para fazê-la pulsar — basta olhá-la de frente, sem piedade, com a lucidez de quem sabe que a vida raramente oferece epifanias sem custo. A obra de Möller é um golpe de ar frio entrando por uma fresta de aço: não anestesia, não enfeita, não consola. Apenas nos lembra que, de todos os cárceres possíveis, o mais difícil de transpor é aquele que carregamos dentro. E é por isso que Filhos não apenas “funciona” como suspense psicológico: ele permanece. Como uma marca, como um sussurro que não cessa, como uma pergunta que continua nos encarando quando as luzes já acenderam.

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