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agosto 23, 2025

Gremlins (1984)

 


Título original: Gremlins
Direção: Joe Dante
Sinopse: O jovem Billy ganhou um novo bichinho de estimação e com ele três conselhos que nunca... nunca poderia esquecer. 1) não deixe que ele se molhe 2) mantenha-o afastado da luz forte 3) não importa o quanto ele chore, o quanto ele suplique, nunca lhe dê comida após a meia-noite. Prepare-se para muita confusão pois alguma coisa vai dar muito errado.


Gremlins é daqueles filmes que você dá o play “só pra revisitar uma cena” e, quando percebe, está agarrado ao sofá até os créditos finais, feliz como quem reencontra um velho amigo. Joe Dante, vindo de uma linhagem de B-movies espirituosos e sátiras amorosas ao cinema de gênero, lapidou aqui um clássico oitentista que ainda pulsa — um feitiço de humor negro natalino que atravessa décadas sem perder o brilho. Lançado em 8 de junho de 1984, com produção executiva de Steven Spielberg, roteiro de Chris Columbus, fotografia de John Hora e montagem de Tina Hirsch, o filme foi sucesso estrondoso de crítica e público, arrecadando mais de US$ 200 milhões mundo afora a partir de um orçamento enxuto, e consolidando-se como peça-chave da cultura pop daquele verão americano em que Gremlins “dividiu as atenções” com Ghostbusters

Parte do encanto é como Dante mistura tons aparentemente inconciliáveis: um conto natalino de província, com luzinhas na neve e vitrine de loja de brinquedos, vai progressivamente se abrindo para uma anarquia cartunesca com dentes afiados. A “regra” das regras — não molhar, não dar comida depois da meia-noite, não expor à luz — é o gatilho perfeito para mover a narrativa do aconchego ao caos, mantendo sempre um pé na comédia e outro no horror leve. Não há gordura aqui: a estrutura é simples e deliciosa de acompanhar, e o ritmo é daqueles que fisga o espectador de todas as idades — do adolescente do VHS ao adulto que hoje, em 2025, topa ver pela primeira vez e descobre, com surpresa, como tudo funciona soberbamente bem. 

Rever o filme hoje é um teletransporte instantâneo para os anos 80. O cenário de Kingston Falls — com sua praça central, o cinema local e a loja de departamento — é o arquétipo da pequena cidade americana de backlot, fotografada com um carinho que confere textura de postal. Não por acaso, parte essencial desse charme vem de Courthouse Square, no Universal Studios, o mesmo espaço cenográfico que viraria Hill Valley em De Volta Para o Futuro: a geografia afetiva do set está impressa em cada plano, embalando a narrativa com familiaridade e memória coletiva. 

Tecnicamente, Gremlins é um triunfo do artesanato analógico. Antes que “CGI” virasse resposta para tudo, Dante convoca um exército de marionetistas e animatrônicos comandados por Chris Walas para dar vida àquelas criaturinhas endiabradas. O filme foi concebido para pôr atores e bonecos no mesmo espaço, trocando energia real em cena — e a câmera de John Hora sabe exatamente onde estar para transformar borracha e cabos em personagens pulsantes. O resultado são texturas físicas, olhares e microgestos que a plateia sente de fato; a viscosidade do caos gremlin é tátil, quase cheirosa. E quando a direção pede cartoon, os bonecos respondem com timing cômico impecável, sem nunca cair no farsesco barato. 

No centro emocional da história, claro, está Gizmo — uma das criações mais irresistíveis que o cinema já inventou. Howie Mandel dá voz ao pequeno Mogwai com um timbre meio assobiado, de ninar, e Walas projeta um rosto que equilibra vulnerabilidade e traquinagem. É impossível não se apaixonar por ele, mesmo quando um arrepio cutuca a nuca ao imaginar que uma gota d’água fora de hora pode multiplicar o “fofo” em puro pandemônio. Gizmo é a síntese do filme: ternura e perigo, pelúcia e dentes, infância e madrugada. É aquele tipo de design de personagem que você guarda no coração e, décadas depois, só de ouvir dois acordes do tema já volta a sorrir. 

Do outro lado do espelho, Stripe e sua quadrilha representam o prazer anárquico do slapstick levado à beira do grotesco. Dante abraça uma iconografia Looney Tunes — há, inclusive, a cinefilia explícita do diretor ao convidar Chuck Jones para um cameo — e a deforma com pequenas crueldades cartunescas que, ainda assim, se mantêm no território do riso nervoso. Esse manejo de tom, sempre calibrado, é reforçado pela montagem de Tina Hirsch, que sabe segurar a gag um segundo além do confortável, e pela lente de John Hora, que alterna sombras e cores natalinas como quem tempera uma sobremesa com uma pitada de pimenta. 

Se Gremlins vive até hoje, muito se deve à sua trilha sonora imortal. Jerry Goldsmith cria um score que é ao mesmo tempo perversamente festivo e melódico, costurando o rag cadenciado de “The Gremlin Rag” com motivos para Gizmo que parecem caixinhas de música iluminadas por lâmpadas de árvore de Natal. A partitura brinca com texturas eletrônicas, orquestração esperta e um senso de ironia sonora que cola nas imagens feito chiclete — a música não ilustra: ela comenta, provoca, acrescenta camada e, às vezes, conduz a comédia ao lado mais travesso. É música que gruda na cabeça e no coração, uma dessas assinaturas sonoras que atravessam gerações e viram memórias coletivas. 

Também a trilha “diegeticamente oitentista”: das canções que pipocam aqui e ali ao desenho de som que transforma a cidade numa pequena sinfonia natalina interrompida por gargalhadas gremlinescas, tudo evoca uma época específica — vitrines, rádios, o calor das lâmpadas incandescentes — sem parecer museu. Ver o filme hoje é sentir de novo o cheiro do plástico dos brinquedos novos, lembrar dos comerciais de fim de ano e da promessa de que algo mágico poderia acontecer na sala de estar. Essa evocação não é só decoração: Dante usa o Natal como contraste permanente, a inocência dos sinos contra o ranger de dentes das pequenas criaturas.

O design de produção e a decupagem potencializam a fisicalidade do perigo. Repare como a casa dos Peltzer vira um parque de diversões infernal para os gremlins: a cozinha, com seus eletrodomésticos, ecoa o gag cinema de aparelhos; a loja de departamentos no clímax sintetiza a batalha entre o consumo (bonecos, manequins, ferramentas) e a biologia cínica dos monstrinhos. O set de Kingston Falls, com sua praça e fachadas familiares, torna a desordem mais saborosa justamente por profanar um cartão-postal — quando a anarquia toma a rua principal, a sensação é de pastelão natalino possuído.

Historicamente, Gremlins ainda acendeu uma discussão essencial sobre classificação indicativa. Seus sustos e miudezas maliciosas, dentro de um filme vendido como “diversão familiar”, ajudaram a pavimentar o caminho para a criação do selo PG-13 em 1984 — uma zona intermediária que reconhecia filmes com intensidade acima do “apenas PG”, sem empurrá-los para o R. É curioso como a própria ambivalência do filme, sua graça sombria, acabou moldando a forma como Hollywood organiza expectativas de público até hoje. 

O elenco funciona como relógio, liderado pelo carisma “de garoto da porta ao lado” de Zach Galligan e pela presença doce e ligeiramente melancólica de Phoebe Cates. Em papéis de apoio, Hoyt Axton e Frances Lee McCain dão a base afetuosa da família, enquanto Polly Holliday encarna, com gosto, a vilania cômica de Mrs. Deagle — um alvo perfeito para a sátira que Dante flecha sem piedade. Pequenas participações especiais (incluindo o próprio Spielberg e o compositor Jerry Goldsmith) são piscadelas cinéfilas que ampliam o jogo lúdico. Nada disso funcionaria sem a precisão dos efeitos práticos: a equipe de Chris Walas dá vida a dezenas de marionetes com personalidade distinta, e o filme vira um balé de mãos invisíveis operando pálpebras, mandíbulas e orelhas — a coreografia do caos.

Também vale notar como Dante filma a violência sempre um passo antes de se tornar gratuita. As gags mais ácidas — um liquidificador descontrolado, um micro-ondas vingativo, uma escada que vira catapulta — são montadas com uma musicalidade que impede o gore de tomar o quadro, sem esvaziar o impacto. Há aqui a inteligência de alguém que entende o “horror para todos” como território da sugestão e do ritmo, não da exploração. De novo, a trilha de Goldsmith amarra o gesto com ironia: um guizo, um teclado zombeteiro, e pronto — a cena ganha sabor travesso em vez de crueldade.

Quarenta anos depois, a força de Gremlins está na combinação rara de uma engenharia narrativa cristalina com uma execução técnica saborosa. É cinema que se sente nas mãos: o pelo de Gizmo, o brilho viscoso de Stripe, a neve falsa que reflete as vitrines. É um filme que conversa com o espírito natalino sem endeusá-lo, que celebra a cartilha do cartoon sem virar mero pastiche, e que, acima de tudo, confia na imaginação do público. Talvez por isso continue tão vivo — porque nos lembra que a fantasia não precisa de infinitos pixels para existir; basta um punhado de regras, um set reconhecível, uma trilha inesquecível e um diretor que saiba orquestrar o riso e o arrepio. 

E se você está chegando a Gremlins hoje, pela primeira vez em 2025, prepare-se: é “filme gostoso” em estado puro, desses que nos sequestram até o fim, que resistem ao calendário e que tocam aquele sino interno que só o bom entretenimento dispara. A música de Jerry Goldsmith é dessas que a gente assovia sem perceber, Gizmo é um amor — mesmo quando dá um medinho do que ele pode desencadear — e Joe Dante assina um recado que permanece: a infância pode ser travessa, o Natal pode ser punk, e o cinema, quando acerta o tom, continua novo, mesmo quarentão. Alguns clássicos não envelhecem; eles apenas multiplicam o prazer — desde que, claro, você não os alimente depois da meia-noite. 

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