Jafar Panahi retorna com um filme que soa, ao mesmo tempo, como denúncia e fábula: Foi Apenas um Acidente parte de um acontecimento corriqueiro — um cão atropelado — e tensiona esse núcleo até transformá-lo numa espécie de parábola moral sobre memória, violência de Estado e as pequenas violências cotidianas que se enraízam numa sociedade anestesiada. A direção de Panahi mantém a austeridade e a aparente simplicidade que marcaram sua obra anterior, mas aqui há uma ambição narrativa mais expansiva: a história costura diferentes vidas — um mecânico marcado por torturas passadas, um casal recém-casado, um homem de aparência comum cujo passado volta à superfície — e monta, com uma precisão cirúrgica, uma cadeia de causas e efeitos que oscila entre o realismo social e o surrealismo quase folclórico. Esta construção torna o filme simultaneamente imediato e inquietante, como se cada tomada escondesse um ressentimento pronto para explodir.
No campo técnico, Panahi e sua equipe trabalham com um aparato deliberadamente contido. A câmera privilegia planos médios e longos que respeitam a ação e as ressonâncias do espaço — desertos, oficinas, interiores modestos — concedendo ao espectador tempo para observações silenciosas: micro-gestos, olhares desviados, silêncios que pesam como provas. A fotografia explora uma paleta terrosa que acentua o calor inclemente dos cenários e, ao mesmo tempo, sublinha a aridez moral dos acontecimentos. A montagem opta por cortes que não apressam a emoção: há uma paciência editorial que transforma pequenas elipses em pulsações dramáticas, e que permite que a comédia amarga e o horror social coexistam sem que o filme se torne didático. O design de som, por sua vez, é econômico e contundente — barulhos cotidianos ganham contornos ameaçadores quando posicionados ao lado de silêncios prolongados, fazendo do som um aliado da inquietação.
As performances são o eixo humano que mantém o filme ancorado. Vahid Mobasseri (o mecânico) entrega uma presença enigmática: sua corporalidade carrega cicatrizes que nunca precisam ser explicitadas em diálogos, e sua voz, quando usada, soa mascarada por uma resignação que alterna com lampejos de fúria contida. Maryam Afshari compõe a figura feminina central com uma mistura de doçura e estoicismo; há uma calma tensa na maneira como ela habita o espaço ao redor do marido e da comunidade. Ebrahim Azizi e os demais do elenco secundário proporcionam pequenos ruídos morais — personagens aparentemente banais que, aos poucos, revelam zonas cinzentas de cumplicidade e medo. Panahi dirige esses intérpretes com parcimônia, pedindo à atuação uma espécie de realismo calmo que, quando se rompe, produz momentos verdadeiramente memoráveis.
Politicamente, o filme não se esconde: fala de tortura, da lógica de impunidade, do papel da delação e da memória ferida de quem passou por prisões e interrogatórios. O que Panahi faz de mais interessante é deslocar o foco do grande debate ideológico para a vida concreta dos afetados — mostrar como o trauma institucional molda decisões íntimas, arrasta relações e produz vinganças que nem sempre se distinguem claramente da justiça. Além disso, a própria história de produção — filmada sob condições de extremo aperto, com equipe reduzida e estratégias clandestinas para driblar restrições — acrescenta uma camada de significado: o filme é, também, documento de resistência. Essas circunstâncias de realização reverberam na tela, imprimindo ao trabalho uma urgência que não é retórica, mas prática.
A recepção crítica e dos festivais reforça a potência da obra: a passagem pelo circuito internacional trouxe reconhecimento pesado — prêmios e elogios que colocaram o filme no centro das discussões sobre cinema e compromisso cívico. Parte desse reconhecimento se deve à capacidade de Panahi de articular um cinema engajado sem sacrificar a dimensão estética; o filme é, portanto, uma prova de como a forma e a mensagem podem se reforçar mutuamente quando manuseadas com sensibilidade. Ao mesmo tempo, há quem aponte certas fragilidades no equilíbrio entre sátira e tragédia: em momentos, o tom migra rápido demais entre o grotesco e o realismo documental, o que pode desfazer, para alguns espectadores, a coesão emocional do conjunto. Ainda assim, essa instabilidade tonal também funciona como tática: impede leituras unívocas e mantém o espectador em alerta.
Num plano mais íntimo, o filme funciona como reflexão sobre responsabilidade coletiva. A sequência em que os personagens se organizam para confrontar um passado violento — tentando definir culpados, vítimas e, por fim, um mecanismo de reparação — é tratada por Panahi com uma ambiguidade ética que evita lições fáceis. É nessa ambiguidade que o filme encontra sua força dramática: não se trata de apontar soluções, mas de expor as rachaduras morais que permitem que atrocidades continuem ocorrendo. Assim, Foi Apenas um Acidente mantém-se firme como um exercício de empatia crítica: obriga-nos a olhar para as pequenas decisões — aceitar um suborno, justificar um silêncio, fechar os olhos — que, acumuladas, geram catástrofes sociais.
Há também, entre as camadas do filme, um humor negro e uma leveza absurda que Panahi usa como contraponto ao peso das cenas mais duras. Esses momentos oferecem respirações que não aliviam, mas reorganizam a experiência emocional: rir diante do inaceitável torna-se, no contexto do filme, reflexo de sobrevivência psicológica. Essa estratégia narrativa — alternar risos deslocados e choques morais — confere ao longa uma textura própria, complexa, capaz de se manter viva depois do fim dos créditos. Em última instância, o trabalho de Panahi aqui é o de um contador de histórias que não se contenta com a exposição direta do sofrimento; prefere, ao contrário, desfiar camadas de responsabilidade e deixar que o público costure as implicações.
Concluo dizendo que Foi Apenas um Acidente é uma obra feita de recortes precisos: textura visual contida, direção de atores atenta ao detalhe, montagem que respeita o ritmo dramático e uma carga política que nunca se sobrepõe à moral humana das cenas. Não é um filme perfeito — a oscilação tonal pode incomodar e há momentos em que a alegoria ameaça ofuscar a narrativa concreta —, mas é um esforço de cinema engajado e esteticamente maduro, dotado de cenas que permanecerão na memória por sua intensidade silenciosa. É um Panahi que escava, com delicadeza e coragem, as feridas de um país e, ao fazê-lo, entrega ao cinema contemporâneo uma fábula inquieta sobre culpa, memória e possibilidade de reparação. Para quem busca um cinema que combine pulso político com sutileza formal, este filme oferece muito do que se espera de um autor que jamais abandonou a aposta na arte como forma de insubmissão.
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