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dezembro 08, 2025

O Agente Secreto (2025)

 


Título original: O Agente Secreto
Direção: Kleber Mendonça Filho
Sinopse: No Brasil de 1977, Marcelo, um especialista em tecnologia fugindo de um passado misterioso, volta ao Recife em busca de um pouco de paz, mas percebe que a cidade está longe de ser o refúgio que procura.


Mais um passo firme de Kleber Mendonça Filho dentro de uma filmografia que já nasceu marcada por identidade, O Agente Secreto é daqueles filmes que confirmam maturidade sem perder o frescor. Desde os primeiros minutos, fica claro que estamos diante de uma obra confiante no próprio ritmo, consciente de sua duração e, principalmente, inteligente o suficiente para nunca transformar esse tempo em peso. É um filme relativamente longo, mas nunca cansativo. Pelo contrário: a cadência é tão bem controlada que o espectador atravessa a narrativa com envolvimento constante, quase sem perceber a passagem do tempo, impulsionado mais pela curiosidade e pelo prazer da encenação do que por grandes explosões dramáticas.

Kleber volta a demonstrar um domínio raro da escrita cinematográfica. O roteiro, assinado por ele mesmo, equilibra humor, ironia e tensão política com precisão cirúrgica. O humor nunca soa caricato, nem vira deboche frouxo; surge de situações, diálogos e comportamentos, respeitando os personagens e a época retratada. A ironia também é medida, funcionando mais como comentário de mundo do que como tese. Essa combinação dá leveza ao filme sem esvaziar seu conteúdo, algo especialmente difícil quando se pisa no terreno do Brasil dos anos 70, marcado pelo regime militar. Aqui, a escolha de tom é fundamental: O Agente Secreto fala de repressão, medo e vigilância, mas prefere fazê-lo pelas frestas, pelos detalhes do cotidiano, pelos absurdos normalizados, e não pelo discurso inflamado.

Essa decisão acaba sendo uma das maiores virtudes do longa. Ao contrário de outras produções recentes ambientadas no mesmo período — como Ainda Estou Aqui, que acabou se tornando excessivamente panfletária e ideologicamente estridente —, o filme de Kleber evita qualquer impulso didático ou militante. O viés cômico de muitos personagens funciona como um amortecedor narrativo, impedindo que a obra escorregue para um cinema de palavras de ordem. Isso amplia muito o alcance do filme, tornando-o mais universal e, sem dúvida, mais palatável ao mercado internacional, sem que isso signifique diluição de identidade ou covardia artística.

Visualmente, o filme é um espetáculo de rigor. A reconstituição dos anos 70 impressiona não pelo excesso, mas pela atenção obsessiva aos detalhes. A direção de arte trabalha num nível quase silencioso: figurinos, objetos de cena, interiores, cores e texturas nunca chamam atenção para si, mas constroem um mundo plenamente crível. Existe uma sensação tátil no espaço filmado, como se aquele Brasil estivesse ainda impregnado nas paredes, nos móveis, nos corredores. É um trabalho de precisão histórica que dialoga diretamente com a encenação, reforçando a atmosfera de vigilância constante e tensão latente sem precisar sublinhar nada.

A encenação de Kleber Mendonça Filho continua sendo um de seus maiores trunfos. Ele sabe onde posicionar a câmera, quando se aproximar, quando observar à distância, e como transformar espaços comuns em territórios dramáticos. A mise-en-scène é sempre funcional à narrativa, nunca exibicionista. Os enquadramentos contribuem para essa sensação de mundo fechado, de personagens permanentemente sob observação, o que dialoga de maneira elegante com o próprio título do filme.

No centro da narrativa está Wagner Moura, numa atuação correta, mas longe de surpreender. Ele entrega exatamente o que se espera: competência, presença e aquela expressão já bastante conhecida, que parece acompanhá-lo de filme em filme. Não há nada de errado nisso, mas também não há aquele brilho especial, aquele rompimento com a própria imagem pública que poderia elevar ainda mais o personagem. Moura funciona dentro da proposta do filme, sem comprometer, mas também sem adicionar uma camada realmente memorável. O destaque acaba ficando mais no conjunto do que no protagonismo isolado, o que não é um problema, já que O Agente Secreto é, acima de tudo, um filme de atmosfera e engrenagem coletiva.

O elenco de apoio contribui bastante para essa engrenagem funcionar. Os personagens secundários são bem definidos, carregam humor, estranheza e humanidade, ajudando a criar esse retrato irônico de uma época marcada tanto pelo autoritarismo quanto por uma rotina absurda de normalização do medo. A comicidade nasce justamente dessa contradição: rir não como fuga, mas como forma de sobrevivência.

Ao final, O Agente Secreto se afirma como um dos trabalhos mais equilibrados de Kleber Mendonça Filho. Um filme politicamente consciente sem ser ideologicamente sufocante, tecnicamente refinado sem ostentação, divertido sem ser raso. Ele prova que é possível falar de períodos sombrios da história brasileira com inteligência, humor e sofisticação, sem transformar o cinema em palanque. Talvez não seja um filme que reinvente o diretor, mas é aquele que consolida sua capacidade de dialogar com o passado olhando firmemente para o futuro — e isso, por si só, já é um feito notável.

dezembro 07, 2025

Belén: Uma História de Injustiça (2025)

 


Título original: Belén
Direção: Dolores Fonzi
Sinopse: No conservador norte da Argentina, Julieta é acusada de infanticídio após uma emergência médica. Correndo o risco de ser presa por um crime que não cometeu, sua única esperança é Soledad, advogada destemida que arrisca tudo para defendê-la. Juntas, elas transformam uma batalha judicial num movimento por justiça, solidariedade e direitos das mulheres.


Dolores Fonzi assina com Belén: Uma História de Injustiça um filme que quer ser ao mesmo tempo denúncia, reconstrução jornalística e litígio dramático — uma tentativa óbvia e admirável de transformar um caso real doloroso em narrativa cinematográfica capaz de emocionar e mobilizar. A partir de uma história já conhecida na Argentina — o episódio que abalou Tucumán, quando uma jovem foi acusada após um aborto espontâneo — Fonzi escolhe o ponto de vista da defesa para construir um thriller jurídico de tom militante, encenando o choque entre um sistema punitivo e corpos que exigem empatia. 

A direção de Fonzi revela uma sensibilidade por planos que buscam proximidade com a intimidade das personagens, mas que muitas vezes caem perto do teleobjetivo moralizante. Há, no melhor do filme, sequências de hospital e prisão filmadas com uma frieza clínica que devolve ao espectador a sensação de claustro e de exposição: corredores iluminados por fluorescentes, closes que não perdoam, e uma mise-en-scène que transforma instituições em espaços de vigilância. Esses momentos funcionam porque a câmera se mantém contida, registra o rosto, a respiração, o gesto mínimo — decisões formais que humanizam e evitam o panfletar óbvio. Ao mesmo tempo, quando o filme tenta se ampliar — em discursos públicos, montagens de protesto ou longos interrogatórios midiáticos —, a direção prefere a contundência explícita. O resultado é fraturado: há cenas de grande impacto sensorial e outras onde a intenção política sufoca a narrativa. 

No centro da peça está a protagonista que dá nome ao filme e, sobretudo, a figura da advogada que assume a luta. Fonzi, além de dirigir, interpreta a defensora — e é aqui que o filme ganha e perde. Sua atuação tem momentos de forte presença dramática: olhar determinado, retórica afiada, pequenas fragilidades íntimas que humanizam a militância. Em paralelo, a jovem interpretada por Camila Pláate constrói um personagem de grande economia expressiva — um rosto marcado pela dor e pela confusão, cujo silêncio muitas vezes comunica mais do que qualquer monólogo. A química entre as duas sustenta boa parte do filme e foi justamente reconhecida no circuito de festivais, com destaque para prêmios de atuação que chegaram a acompanhar a produção.

Tecnicamente, Belén é bem resolvido em pontos-chave: a fotografia tende para um naturalismo sombrio que acentua a austeridade do norte argentino, evitando o realismo social glamurizado; a edição busca um ritmo judicial — cortes secos em audiências, respirações mais alongadas nas células e encontros íntimos que deixam o espaço para a interpretação — e a trilha sonora aparece como elemento de tensão mais do que de preenchimento melodramático. Mas é justamente na escrita dramática que o filme oscila. O roteiro, colaborativo e baseado em material jornalístico, alterna sequências de investigação perspicazes com cenas de exposição didática que empobrecem o conflito. Em determinados trechos, o movimento narrativo prefere explicar ao invés de mostrar, e então perde a oportunidade de construir ambivalência: personagens secundários viram arquétipos, e nuances de contexto político são reduzidas a slogans. 

A força política de Belén é inegável e faz parte do mérito do filme: ele recupera um caso que se tornou símbolo da luta pelos direitos reprodutivos e o apresenta como exemplo das contradições de um país que viveu retrocessos e avanços decisivos nos últimos anos. É legítimo — e necessário — que o cinema se envolva com esse tipo de tema. Todavia, o equilíbrio entre militância e dramaturgia não é sempre alcançado. Quando o filme opta pelo tom de proclamação pública, perde o risco narrativo que torna dramas judiciais realmente memoráveis: a dúvida, a complexidade moral, a falha do sistema mostrada sem folclorizar suas vítimas. Em outras palavras, Fonzi prefere denunciar com clareza a manipulação institucional do que explorar as zonas cinzentas onde muitas decisões humanas efetivamente residem. 

Outro ponto ambivalente é o tratamento do poder midiático e do espetáculo do processo: cenas que mostram a cobertura jornalística e o tribunal público têm impacto imediato, mas por vezes caem em um tom exemplificativo — a montagem indica a intenção de provocar indignação sem necessariamente oferecer novos ângulos de reflexão sobre a responsabilidade coletiva. A construção do antagonista institucional é eficaz como símbolo, porém pouco inventiva dramaticamente; faltam camadas que expliquem, por exemplo, por que certos agentes se comportam como agem, além de simplesmente serem postos como representantes do conservadorismo. Ainda assim, a maneira como o longa mobiliza a comunidade e mostra redes de solidariedade é comovente e encontra na dramaturgia judicial momentos de tensão legítima: audiências bem coreografadas, depoimentos que despejam humanidade, e pequenas vitórias simbólicas que servem de catálise emocional. 

No campo do impacto estético, Belén acerta ao manter a austeridade e ao evitar excessos formais — não há estilização gratuita nem efeitos de assinatura que distraiam da matéria humana. A câmera de Javier Juliá confere uma textura sóbria que ajuda a sustentar a verossimilhança do universo representado. Por outro lado, dificilmente o longa será lembrado por um virtuosismo plástico ou por reviravoltas narrativas inventivas; seu triunfo reside mais no recorte temático e na coragem de reencenar uma ferida nacional do que em soluções cinematográficas inéditas. 

Em síntese, Belén: Uma História de Injustiça é um filme necessário e incompleto. Necessário porque recupera e catalisa um debate público que ainda reverbera; incompleto porque, nessa tradução do real para a ficção, Fonzi opta diversas vezes pela clareza retórica em detrimento da complexidade dramática. A obra comete o pecado — compreensível e comum no cinema de denúncia — de, às vezes, ensinar o que poderia mostrar; ainda assim, quando acerta, alcança a garganta: há sequências cujo desconforto político se converte em puro e eficiente cinema. Não é um filme perfeito, mas tampouco é indiferente; é um filme que empurra o espectador para a indignação com ferramentas cinematográficas na maioria das vezes honestas. E, em tempos em que a memória e a justiça parecem disputadas nas ruas e nos tribunais, essa honestidade já tem um valor inestimável. 

Por fim, fica a sensação de um projeto com ambição legítima e execução desigual: Belén desperta empatia e reforça lutas, mas peca por vezes pelo excesso de zelo argumentativo. É um filme que se recomenda por compromisso ético e por atuações que, mesmo enclausuradas por um roteiro hesitante, atingem o que importa — a verdade humana por trás da manchete. E essa verdade, quando bem filmada, nunca é pouca coisa. 

dezembro 06, 2025

Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda (2025)

 


Título original: Freakier Friday
Direção: Nisha Ganatra
Sinopse: A história continua anos depois de Tess e Anna passarem por uma crise de identidade. Agora, Anna é mãe e tem uma futura enteada, enfrentando os desafios de unir duas famílias. No entanto, Tess e Anna logo descobrem que, sim, um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar.


Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda surge como um produto que acredita demais na força da nostalgia e de menos na inteligência do próprio público. Dirigido por Nisha Ganatra, o filme tenta atualizar o espírito de Sexta-Feira Muito Louca para uma nova geração, mas acaba entregando algo estranho: uma continuação inchada, excessivamente infantil e surpreendentemente confusa, mesmo dentro de uma proposta que nunca exigiu rigor narrativo absoluto.

Há, logo de saída, um problema conceitual difícil de ignorar. O filme amplia a famosa troca de corpos para um jogo envolvendo quatro personagens, numa tentativa clara de “escalar” a ideia original. Em tese, isso poderia abrir espaço para uma reflexão mais rica sobre identidade, diferença geracional e empatia. Na prática, o que se vê é um emaranhado de situações mal explicadas e personagens pouco desenvolvidos, que tornam a experiência mais cansativa do que divertida. Durante longos minutos, é genuinamente difícil saber quem está onde — não por sofisticação narrativa, mas por falta de clareza dramática.

A direção de Ganatra demonstra preocupação em manter tudo colorido, movimentado e palatável, mas raramente consegue organizar o caos que o próprio filme cria. A encenação prefere a hiperatividade ao ritmo, apostando em exageros cômicos constantes como se tivesse medo do silêncio ou da pausa. O resultado é um filme que nunca respira, nunca amadurece e nunca confia que uma cena possa funcionar sem sublinhar sua piada três vezes seguidas.

É aqui que o elenco principal entra — e, paradoxalmente, se torna o maior lembrete do desperdício envolvido. Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis estão costumeiramente bem aqui, com energia, entrega e um entendimento claro do jogo cômico que essas personagens exigem. É evidente que ambas sabem exatamente o que estão fazendo em cena. Ainda assim, mesmo elas não conseguem salvar um filme tão ruim com um roteiro tão infantil. Falta material. Falta conflito real. Falta inteligência na construção das situações.

O contraste com o filme de 2003 é inevitável — e cruel. Enquanto Sexta-Feira Muito Louca se apoiava em uma astúcia inesperada, misturando humor físico com observações sinceras sobre relações familiares, esta continuação parece interessada apenas em multiplicar gags e situações constrangedoras. Tudo é mais barulhento, mais literal e mais raso. Não há sutileza, não há ironia, não há aquele mínimo de cumplicidade com o espectador que permite que uma comédia familiar funcione em mais de um nível.

As personagens mais jovens sofrem especialmente com esse tratamento. Reduzidas a tipos genéricos, elas existem mais como ferramentas para a confusão da troca de corpos do que como indivíduos com vontades, medos ou contradições. Isso torna o jogo de interpretações ainda mais problemático: sem personalidade bem definida, a troca não revela nada novo sobre ninguém. Apenas repete tiques, caretas e falas didáticas que explicam o que o filme não consegue mostrar.

O tom geral flerta constantemente com o ridículo — e, em vários momentos, atravessa essa linha sem cerimônia. Situações que poderiam ser engraçadas ou emocionalmente eficazes se transformam em números constrangedores, sustentados por um humor que parece subestimar o público o tempo todo. É um filme Disney no pior sentido da frase: excessivamente higienizado, com conflitos diluídos, emoções plastificadas e uma sensação constante de que tudo precisa ser simplificado até o limite do suportável.

Há, claro, pequenos momentos de nostalgia que funcionam quase à revelia do resto do filme. Ver Lohan e Curtis contracenando novamente provoca um afeto automático, uma memória afetiva que o longa explora sem pudor. Mas esse afeto não sustenta uma obra inteira. Quando a nostalgia vira muleta, ela escancara ainda mais a fragilidade do presente.

O maior problema de Uma Sexta-Feira Mais Louca Ainda é sua covardia criativa. Ao invés de repensar o conceito, aprofundar conflitos ou aceitar algum nível de amadurecimento — tanto dos personagens quanto do público que cresceu com o original — o filme opta pelo caminho mais seguro possível. Tudo aqui é desenhado para não incomodar, não desafiar e não exigir nada além de atenção passiva. O resultado é um filme esquecível, que se esgota enquanto acontece.

No fim, fica a sensação de um projeto que confunde escala com impacto e barulho com humor. É uma continuação que existe mais por oportunismo do que por necessidade artística, e que trata uma ideia naturalmente rica como se fosse apenas um brinquedo a ser sacudido até perder o sentido. O filme tenta ser mais louco, mais energético e mais expansivo — mas acaba apenas mais vazio.

dezembro 05, 2025

Vingança no Deserto (2024)

 


Título original: Run!
Direção: Bill Brennenstuhl, Paul Stenerson
Sinopse: Em uma perseguição no deserto, um marido procura pistas para encontrar sua esposa sequestrada, enquanto é perseguido por um louco mascarado, um atirador letal e um motorista de caminhão ameaçador. Em meio ao caos, um drone, controlado pelo orquestrador deste jogo mortal, observa cada movimento deles.


Vingança no Deserto (Run!, 2024), de Bill Brennenstuhl e Paul Stenerson, chega com a premissa prometida nas sinopses: um casal, durante a renovação de votos em uma cidade do deserto, se vê enredado num jogo mortal de amor e vingança cujo operador observa tudo por meio de um drone. A ideia, simples e potencialmente eficiente para um suspense, é minimizada desde os primeiros minutos por uma direção que oscila entre a pequenez e a dourada pretensão. A concepção de ambiente — o calor escaldante do deserto, o céu cortante, a vastidão que deveria ser personagem — é, em tese, o terreno ideal para um thriller de sobrevivência; na prática, o filme parece insistir em adjetivações estéticas que não se transformam em tensão orgânica. 

O problema central de Vingança no Deserto é estrutural, e deriva de escolhas que se apresentam mais como artifícios do que como soluções dramáticas. O roteiro tenta costurar uma série de microsustos e reviravoltas ligadas a perseguições — um mascarado, um atirador, um caminhoneiro ameaçador — e a presença quase onipresente de um drone que vigia a ação. Mas essas peças nunca se encaixam numa engrenagem convincente: faltam motivos sólidos para a escalada do jogo, falta empatia e, sobretudo, falta um pulso autoral que ordene as partes soltas. A impressão, em vários momentos, é a de que se assiste a um exercício de estilo fragmentado; uma ideia que poderia ser tautológica torna-se dispersa e, por vezes, infantil na sua construção. 

Não é exagero dizer que Vingança no Deserto às vezes parece um filme mal feito de ensino médio. A frase soa dura, mas existe aqui uma combinação de orçamento enxuto, escolhas de encenação convencionais e interpretações que raramente convencem — resultado que coloca o espectador numa posição de distância irônica em relação ao material. A direção, que poderia ter se apoiado na precisão do mínimo — enquadramentos mais contidos, montagem que privilegiasse a progressão em vez da colagem — prefere efeitos narrativos mais barulhentos e pouco polidos. Essa opção transforma momentos que poderiam ter alguma solenidade dramática em pequenos dramas de cartolina. 

A fotografia merece menção porque tenta, sem lograr sucesso, imprimir identidade ao filme. Em vez de coesão, vemos uma fotografia estranhíssima — saturações estranhas, contrastes que ora esforçam-se para serem hiperbólicos, ora parecem acidentes de iluminação. Não há força lírica na escolha cromática; há desconforto. A edição, por sua vez, contribui para a confusão: cortes abruptos, passes temporais mal sinalizados e uma montagem não ritmada que impede o surgimento de uma escalada de suspense orgânica. Em certos trechos o filme se coloca como se fosse um Jogos Mortais, só que bem ruim, misturado com um ar de Tarantino; a intenção de fragmentar e surpreender acaba soando, no entanto, como imitação pouco crítica de referências reconhecíveis — e a comparação com obras maiores só ressalta a pobreza dos resultados.

A trilha sonora, que poderia ter sido um aliado — por exemplo, contrapondo o silêncio do deserto a texturas sonoras incômodas — atua, com frequência, como elemento intrusivo. Dá para afirmar sem rodeios que há uma trilha que polui os ouvidos: mixagens que colocam música em primeiro plano quando o filme precisa de silêncio, efeitos sonoros exagerados que buscam chocar em vez de compor, e escolhas temáticas que muitas vezes soam deslocadas em relação ao que está em cena. Em vez de sustentar atmosferas, a música parece frequentemente mascarar a incapacidade da cena de falar por si mesma.

Sobre as atuações: são, em sua maioria, dramáticas demais quando deveriam ser sutis, e excessivamente contidas quando a cena pede entrega física. Há momentos de histrionismo gratuito, olhares que tentam “dizer” emoção sem trabalho interpretativo por trás, e passagens em que a falta de química entre os atores deixa diálogos mecânicos. Em suma: atuações horrendas — não apenas falhas pontuais, mas um conjunto que fragiliza qualquer tentativa de envolvimento emocional do público. 

Tecnicamente, há acertos pontuais — a paisagem do deserto ainda funciona como cenário, alguns planos abertos são esteticamente agradáveis e a ideia de um antagonista que joga com tecnologia (o drone) tem potencial simbólico interessante. No entanto, esses lampejos não compensam a sensação de amadorismo em áreas cruciais: direção de atores, ritmo dramático e construção de cenas de suspense. A tentativa de fundir subgêneros — slasher, suspense rural, pastiche neo-exploracionista — desemboca numa espécie de colagem inconsistente. 

No fim das contas, Vingança no Deserto é um filme que promete agressividade e tensão, mas entrega dispersão e ruído. Há uma aspiração de ser brutal e inteligente, mas o caminho escolhido — imitações mal costuradas, trilha invasiva, montagem que não ajuda a narrativa — transforma a experiência em algo mais próximo do constrangedor do que do perturbador. Para quem busca um filme que trabalhe o deserto como território de uma prova moral e física, a frustração provável será grande. Para quem aceita pequenas doses de diversão involuntária, talvez haja entretenimento — mas não era esse o objetivo que o material parecia apontar desde a sua premissa. 

Fecho com um pensamento incisivo: há sempre um espaço no cinema para filmes de baixo orçamento e para tentativas ousadas, mas ousadia sem clareza de propósito vira ruído. Vingança no Deserto prefere gritar citações estilísticas a construir um universo próprio; o resultado é um filme que, na ânsia de impressionar, acaba por revelar suas costuras — e a costura, quando aparece demais, não deixa o tecido do filme segurar. Se o deserto é metáfora de prova, aqui ele apenas reflete a aridez das intenções.

dezembro 03, 2025

O Bom Bandido (2025)

 


Título original: Roofman
Direção: Derek Cianfrance
Sinopse: Um criminoso carismático, durante sua fuga da polícia, assume uma nova identidade e se esconde em uma loja de brinquedos. Lá, se envolve com uma funcionária e inicia um romance inesperado. Mas quando seu passado ameaça vir à tona, os dois se veem diante de escolhas que podem mudar o destino de suas vidas para sempre.


O Bom Bandido é um filme que joga com contradições desde o primeiro enquadramento: dirigindo um material que poderia facilmente escorregar para o folclore sensacionalista, Derek Cianfrance opta por uma abordagem que tenta (nem sempre com sucesso) equilibrar o tom de comédia inusitada com uma melancolia moral característica de sua filmografia. A história, baseada na vida real de Jeffrey Manchester — o “Roofman” que, nos anos 1990 e começo dos 2000, roubava franquias de fast food entrando pelo teto e que, após uma fuga, viveu escondido dentro de um Toys "R" Us enquanto começava um relacionamento com uma mulher da comunidade local — fornece ao filme um material incrivelmente estranho e, ao mesmo tempo, ternamente humano. Cianfrance e Kirt Gunn assinam o roteiro, e a sensação de que estamos vendo uma dramatização que respeita a verdade emocional mais do que a literal surge desde cedo. 

Channing Tatum assume o papel central de Jeffrey Manchester e constrói uma interpretação curiosa: distante das performances musculares e físicas com as quais o ator muitas vezes foi associado, aqui Tatum mostra um tipo de fragilidade charmosa — um homem que sobreviveu ao sistema militar e à falha do mercado de trabalho, mas que escolheu caminhos torcidos por desespero e um anseio infantil por pertencimento. Ao seu redor, Kirsten Dunst compõe uma Leigh complexa, carregada de ternura e resolução prática, dando ao filme o eixo emocional que impede que a bizarrice do enredo vire mera excentricidade. LaKeith Stanfield, Peter Dinklage, Ben Mendelsohn e um elenco de apoio robusto acrescentam camadas que variam entre o cômico e o ameaçador; é notável como Cianfrance confia na interpretação para modular o ritmo emocional do longa. 

Tecnicamente, O Bom Bandido é um trabalho que merece ser observado com atenção. A escolha de Andrij Parekh de filmar em 35 mm devolve textura e calor a cenas que, narrativamente, seriam fáceis de dessensibilizar por uma estética hiperlímpida; há um granulado que casa bem com a natureza “de segunda mão” do cotidiano do protagonista — roupas, brinquedos, vitrines e ar condicionado de shopping — e que ajuda a naturalizar o absurdo (um homem vivendo entre prateleiras e arcos coloridos). A fotografia privilegia planos médios que deixam a contensão dramática respirar, e alguns momentos de câmera mais móvel lembram a aproximação íntima de Cianfrance a personagens que sofrem por escolhas emocionais pesadas. A edição de Jim Helton (com Ron Patane creditado) busca um compasso que alterna silêncio e leveza, mas em alguns trechos o filme se alonga em digressões que poderiam ter sido mais enxutas; a construção rítmica, então, se torna uma escolha estética ambivalente — às vezes enriquecedora, às vezes redundante. 

A trilha sonora de Christopher Bear merece um parágrafo à parte: longe de ser apenas música de preenchimento, o score sublinha a estranheza afetiva do filme — piadas surreais e gestos de generosidade criminosa são tratados com um colchão sonoro que alterna inocência e fissura. Não se trata de transformar o protagonista em herói romântico, mas de sugerir que a miscelânea de ternura e delito que o percorre é emocionalmente verdadeira e complexa. Em termos de som e design sonoro, o filme privilegia ruídos quase domésticos (o click de câmeras, o zunido de neon, o som das prateleiras), como se todo o universo em cena existisse num microcosmo de segunda mão e pequenas faltas. 

Narrativamente o filme transita entre gêneros: há o thriller de fuga, o estudo de personagem e a comédia romântica deslocada. Essa policromia é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. Quando o filme decide abraçar a doçura bizarra do enredo — um homem que rouba com gentileza, tranca funcionários no freezer colocando um casaco neles, depois vive à base de M&Ms na noite entre araras de brinquedos — a leveza funciona e gera momentos de humor negro e ternura verdadeiramente memoráveis; quando tenta aprofundar questões sociais ou dar contornos morais mais ásperos ao personagem, a dramaturgia perde alguma contundência, preferindo a empatia estética ao incômodo crítico. Isso é, em boa medida, um traço que dialoga com o estilo de Cianfrance: a inclinação para o afeto que humaniza, às vezes em detrimento de uma crítica social mais incisiva. 

O filme também levanta questões éticas sobre como adaptar uma história real que envolve vítimas, uma comunidade e um homem que ainda cumpre pena. Cianfrance opta por incluir pessoas reais em pequenas aparições no elenco e por consultar diretamente protagonistas da história, o que confere autenticidade e, em certa medida, legitima o tom compassivo escolhido. Ainda assim, há uma sensação de filme “amigável” demais: a bizarrice e o crime são frequentemente amortecidos pela comicidade afetiva, e isso pode incomodar espectadores que esperam um exame mais duro das consequências das ações do protagonista. A discussão sobre empatia sem anistia — como olhar um criminoso e não perdoar automaticamente — é algo que o filme toca, mas não explora até suas arestas mais cortantes. 

No balanço final, O Bom Bandido não é um regresso absoluto ao território sombrio dos filmes anteriores de Cianfrance, nem um exercício puramente comercial; é um filme de meio-termo emocional e formal — ganha pela solidez do elenco, pela textura cinematográfica e por momentos de rara doçura excentrizada, perde quando prefere a ternura a uma investigação moral mais crua. Para espectadores que aceitam a mistura de riso e pena, o longa entrega uma experiência comovente e estranhamente cativante; para os que procuram uma dissecação mais implacável do que leva alguém a cruzar linhas tão perigosas, a sensação será de oportunidade perdida. Em sua melhor hora, o filme transforma um caso bizarro em reflexão sobre família, desamparo e o modo como a bondade pode conviver com a transgressão — não como desculpa, mas como enigma. E esse enigma, interpretado com vulnerabilidade por Tatum e ancorado por Dunst e um elenco afiado, é provavelmente o que ficará na memória muito tempo depois das luzes se apagarem.