O Bom Bandido é um filme que joga com contradições desde o primeiro enquadramento: dirigindo um material que poderia facilmente escorregar para o folclore sensacionalista, Derek Cianfrance opta por uma abordagem que tenta (nem sempre com sucesso) equilibrar o tom de comédia inusitada com uma melancolia moral característica de sua filmografia. A história, baseada na vida real de Jeffrey Manchester — o “Roofman” que, nos anos 1990 e começo dos 2000, roubava franquias de fast food entrando pelo teto e que, após uma fuga, viveu escondido dentro de um Toys "R" Us enquanto começava um relacionamento com uma mulher da comunidade local — fornece ao filme um material incrivelmente estranho e, ao mesmo tempo, ternamente humano. Cianfrance e Kirt Gunn assinam o roteiro, e a sensação de que estamos vendo uma dramatização que respeita a verdade emocional mais do que a literal surge desde cedo.
Channing Tatum assume o papel central de Jeffrey Manchester e constrói uma interpretação curiosa: distante das performances musculares e físicas com as quais o ator muitas vezes foi associado, aqui Tatum mostra um tipo de fragilidade charmosa — um homem que sobreviveu ao sistema militar e à falha do mercado de trabalho, mas que escolheu caminhos torcidos por desespero e um anseio infantil por pertencimento. Ao seu redor, Kirsten Dunst compõe uma Leigh complexa, carregada de ternura e resolução prática, dando ao filme o eixo emocional que impede que a bizarrice do enredo vire mera excentricidade. LaKeith Stanfield, Peter Dinklage, Ben Mendelsohn e um elenco de apoio robusto acrescentam camadas que variam entre o cômico e o ameaçador; é notável como Cianfrance confia na interpretação para modular o ritmo emocional do longa.
Tecnicamente, O Bom Bandido é um trabalho que merece ser observado com atenção. A escolha de Andrij Parekh de filmar em 35 mm devolve textura e calor a cenas que, narrativamente, seriam fáceis de dessensibilizar por uma estética hiperlímpida; há um granulado que casa bem com a natureza “de segunda mão” do cotidiano do protagonista — roupas, brinquedos, vitrines e ar condicionado de shopping — e que ajuda a naturalizar o absurdo (um homem vivendo entre prateleiras e arcos coloridos). A fotografia privilegia planos médios que deixam a contensão dramática respirar, e alguns momentos de câmera mais móvel lembram a aproximação íntima de Cianfrance a personagens que sofrem por escolhas emocionais pesadas. A edição de Jim Helton (com Ron Patane creditado) busca um compasso que alterna silêncio e leveza, mas em alguns trechos o filme se alonga em digressões que poderiam ter sido mais enxutas; a construção rítmica, então, se torna uma escolha estética ambivalente — às vezes enriquecedora, às vezes redundante.
A trilha sonora de Christopher Bear merece um parágrafo à parte: longe de ser apenas música de preenchimento, o score sublinha a estranheza afetiva do filme — piadas surreais e gestos de generosidade criminosa são tratados com um colchão sonoro que alterna inocência e fissura. Não se trata de transformar o protagonista em herói romântico, mas de sugerir que a miscelânea de ternura e delito que o percorre é emocionalmente verdadeira e complexa. Em termos de som e design sonoro, o filme privilegia ruídos quase domésticos (o click de câmeras, o zunido de neon, o som das prateleiras), como se todo o universo em cena existisse num microcosmo de segunda mão e pequenas faltas.
Narrativamente o filme transita entre gêneros: há o thriller de fuga, o estudo de personagem e a comédia romântica deslocada. Essa policromia é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. Quando o filme decide abraçar a doçura bizarra do enredo — um homem que rouba com gentileza, tranca funcionários no freezer colocando um casaco neles, depois vive à base de M&Ms na noite entre araras de brinquedos — a leveza funciona e gera momentos de humor negro e ternura verdadeiramente memoráveis; quando tenta aprofundar questões sociais ou dar contornos morais mais ásperos ao personagem, a dramaturgia perde alguma contundência, preferindo a empatia estética ao incômodo crítico. Isso é, em boa medida, um traço que dialoga com o estilo de Cianfrance: a inclinação para o afeto que humaniza, às vezes em detrimento de uma crítica social mais incisiva.
O filme também levanta questões éticas sobre como adaptar uma história real que envolve vítimas, uma comunidade e um homem que ainda cumpre pena. Cianfrance opta por incluir pessoas reais em pequenas aparições no elenco e por consultar diretamente protagonistas da história, o que confere autenticidade e, em certa medida, legitima o tom compassivo escolhido. Ainda assim, há uma sensação de filme “amigável” demais: a bizarrice e o crime são frequentemente amortecidos pela comicidade afetiva, e isso pode incomodar espectadores que esperam um exame mais duro das consequências das ações do protagonista. A discussão sobre empatia sem anistia — como olhar um criminoso e não perdoar automaticamente — é algo que o filme toca, mas não explora até suas arestas mais cortantes.
No balanço final, O Bom Bandido não é um regresso absoluto ao território sombrio dos filmes anteriores de Cianfrance, nem um exercício puramente comercial; é um filme de meio-termo emocional e formal — ganha pela solidez do elenco, pela textura cinematográfica e por momentos de rara doçura excentrizada, perde quando prefere a ternura a uma investigação moral mais crua. Para espectadores que aceitam a mistura de riso e pena, o longa entrega uma experiência comovente e estranhamente cativante; para os que procuram uma dissecação mais implacável do que leva alguém a cruzar linhas tão perigosas, a sensação será de oportunidade perdida. Em sua melhor hora, o filme transforma um caso bizarro em reflexão sobre família, desamparo e o modo como a bondade pode conviver com a transgressão — não como desculpa, mas como enigma. E esse enigma, interpretado com vulnerabilidade por Tatum e ancorado por Dunst e um elenco afiado, é provavelmente o que ficará na memória muito tempo depois das luzes se apagarem.
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