Mais um passo firme de Kleber Mendonça Filho dentro de uma filmografia que já nasceu marcada por identidade, O Agente Secreto é daqueles filmes que confirmam maturidade sem perder o frescor. Desde os primeiros minutos, fica claro que estamos diante de uma obra confiante no próprio ritmo, consciente de sua duração e, principalmente, inteligente o suficiente para nunca transformar esse tempo em peso. É um filme relativamente longo, mas nunca cansativo. Pelo contrário: a cadência é tão bem controlada que o espectador atravessa a narrativa com envolvimento constante, quase sem perceber a passagem do tempo, impulsionado mais pela curiosidade e pelo prazer da encenação do que por grandes explosões dramáticas.
Kleber volta a demonstrar um domínio raro da escrita cinematográfica. O roteiro, assinado por ele mesmo, equilibra humor, ironia e tensão política com precisão cirúrgica. O humor nunca soa caricato, nem vira deboche frouxo; surge de situações, diálogos e comportamentos, respeitando os personagens e a época retratada. A ironia também é medida, funcionando mais como comentário de mundo do que como tese. Essa combinação dá leveza ao filme sem esvaziar seu conteúdo, algo especialmente difícil quando se pisa no terreno do Brasil dos anos 70, marcado pelo regime militar. Aqui, a escolha de tom é fundamental: O Agente Secreto fala de repressão, medo e vigilância, mas prefere fazê-lo pelas frestas, pelos detalhes do cotidiano, pelos absurdos normalizados, e não pelo discurso inflamado.
Essa decisão acaba sendo uma das maiores virtudes do longa. Ao contrário de outras produções recentes ambientadas no mesmo período — como Ainda Estou Aqui, que acabou se tornando excessivamente panfletária e ideologicamente estridente —, o filme de Kleber evita qualquer impulso didático ou militante. O viés cômico de muitos personagens funciona como um amortecedor narrativo, impedindo que a obra escorregue para um cinema de palavras de ordem. Isso amplia muito o alcance do filme, tornando-o mais universal e, sem dúvida, mais palatável ao mercado internacional, sem que isso signifique diluição de identidade ou covardia artística.
Visualmente, o filme é um espetáculo de rigor. A reconstituição dos anos 70 impressiona não pelo excesso, mas pela atenção obsessiva aos detalhes. A direção de arte trabalha num nível quase silencioso: figurinos, objetos de cena, interiores, cores e texturas nunca chamam atenção para si, mas constroem um mundo plenamente crível. Existe uma sensação tátil no espaço filmado, como se aquele Brasil estivesse ainda impregnado nas paredes, nos móveis, nos corredores. É um trabalho de precisão histórica que dialoga diretamente com a encenação, reforçando a atmosfera de vigilância constante e tensão latente sem precisar sublinhar nada.
A encenação de Kleber Mendonça Filho continua sendo um de seus maiores trunfos. Ele sabe onde posicionar a câmera, quando se aproximar, quando observar à distância, e como transformar espaços comuns em territórios dramáticos. A mise-en-scène é sempre funcional à narrativa, nunca exibicionista. Os enquadramentos contribuem para essa sensação de mundo fechado, de personagens permanentemente sob observação, o que dialoga de maneira elegante com o próprio título do filme.
No centro da narrativa está Wagner Moura, numa atuação correta, mas longe de surpreender. Ele entrega exatamente o que se espera: competência, presença e aquela expressão já bastante conhecida, que parece acompanhá-lo de filme em filme. Não há nada de errado nisso, mas também não há aquele brilho especial, aquele rompimento com a própria imagem pública que poderia elevar ainda mais o personagem. Moura funciona dentro da proposta do filme, sem comprometer, mas também sem adicionar uma camada realmente memorável. O destaque acaba ficando mais no conjunto do que no protagonismo isolado, o que não é um problema, já que O Agente Secreto é, acima de tudo, um filme de atmosfera e engrenagem coletiva.
O elenco de apoio contribui bastante para essa engrenagem funcionar. Os personagens secundários são bem definidos, carregam humor, estranheza e humanidade, ajudando a criar esse retrato irônico de uma época marcada tanto pelo autoritarismo quanto por uma rotina absurda de normalização do medo. A comicidade nasce justamente dessa contradição: rir não como fuga, mas como forma de sobrevivência.
Ao final, O Agente Secreto se afirma como um dos trabalhos mais equilibrados de Kleber Mendonça Filho. Um filme politicamente consciente sem ser ideologicamente sufocante, tecnicamente refinado sem ostentação, divertido sem ser raso. Ele prova que é possível falar de períodos sombrios da história brasileira com inteligência, humor e sofisticação, sem transformar o cinema em palanque. Talvez não seja um filme que reinvente o diretor, mas é aquele que consolida sua capacidade de dialogar com o passado olhando firmemente para o futuro — e isso, por si só, já é um feito notável.
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