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novembro 19, 2025

Ursa (2021)

 


Título original: Ursa
Direção: William de Oliveira
Sinopse: Dois meninos entram no quintal de um vizinho para recuperar uma bola e são atacados por sua cadela pit bull, o que dá início a uma série de trágicos desdobramentos que afetam a vida de todos os envolvidos.


Assistir a Ursa foi, para mim, meu primeiro contato com o cinema paranaense — e foi muito agradável deparar-me com esse longa que, embora não se estenda por muito tempo (são apenas 70 minutos), demonstra uma clareza de proposta e uma coragem narrativa que merecem ser destacadas. 

Desde seu início, o filme já sinaliza sua intenção de não suavizar dilemas complexos: ambientada em Curitiba, mais especificamente na periferia da cidade (as filmagens ocorreram no bairro CIC e região metropolitana), Ursa mergulha num universo pouco retratado, um cenário de “Curitiba pobre”, distante dos cartões-postais frequentemente associados à capital paranaense. Essa escolha de ambientação é, por si só, um acerto do diretor: não uma Curitiba idealizada, mas visceral, marginalizada, onde as contradições são visíveis e a tensão social faz parte do cotidiano.

A narrativa, centrada no personagem Viviane (interpretada por Adriana Sottomaior), mãe solo que trabalha e tenta equilibrar seus filhos, e no personagem Jonas (interpretado por Diego Perin), dono de uma pit-bull — a cadela Ursa — que se envolve numa tragédia ao atacar os filhos de Viviane, é estruturada com uma sobriedade que evita os exageros melodramáticos mais comuns. A construção do roteiro — premiada inclusive, com reconhecimento em festivais — privilegia o lento acúmulo de tensão e as consequências de cada ato, e trabalha com intersecções de culpa, remorso, pressão social, justiça popular e mídia.

As escolhas técnicas e artísticas se destacam: a fotografia de Mauricio Baggio imprime uma atmosfera de verossimilhança densa, ao retratar espaços restritos, cores opacas e uma geografia urbana que reforça tanto o senso de pertencimento quanto de desamparo. A montagem, por sua vez, segmenta os arcos narrativos com economia: o roteiro corre em paralelo entre a jornada de Viviane e a de Jonas por quase 24 horas, apenas colidindo no momento final; estratégia que permite ao espectador observar os dois lados com certa simetria dramática. Essa estrutura, embora funcional, por vezes exibe fragilidades — especialmente na forma como um dos personagens evolui, perdendo nuances e se tornando mais plano do que a proposta inicial parece sugerir.

O filme aposta em um realismo contido: não entrega respostas fáceis, evita clichês de julgamento e, em sua retórica, escancara as contradições de uma comunidade que se fragmenta entre solidariedade e ódio, culpa e autopreservação. A narrativa não expõe seus mecanismos em letreiros morais; ao contrário, convida o público a refletir — “seria Viviane negligente?”, “Houve falha de Jonas?”, “Podemos culpar só o indivíduo ou o coletivo?” — sem direcionar explicitamente uma condenação. 

As atuações são um dos pontos altos do filme. Ninguém aqui parece “atuar” de maneira artificial: o elenco — majoritariamente paranaense — imprime uma veracidade quase documental aos personagens, o que fortalece a intensidade do drama e exige do espectador uma escuta sensível. A atriz protagonista brilha: sua performance carrega nuances de desamparo, culpa, proteção e força, e foi merecidamente reconhecida em festivais, com prêmios e menções que ressaltam seu impacto. A naturalidade do elenco, sem excessos teatrais, contribui para que o filme se desenrole com brutalidade e sensibilidade ao mesmo tempo.

No entanto, apesar de todas essas qualidades, Ursa deixa um sentimento misto ao terminar: a economia de 70 minutos — claramente uma opção de William de Oliveira — é dupla. Por um lado, impede o filme de se estender inutilmente; por outro, a história parece exigir uns 20 minutos a mais para que certas ambiguidades fossem plenamente resolvidas. A narrativa, em seu desfecho, dá sinais de ter sido construída para gerar reflexões, não certezas — o que é louvável —, mas essa estratégia pode causar a impressão de que partes do arco narrativo foram deixadas pela metade. Fica a sensação de que o filme se propõe a um debate maior do que sua própria estrutura permite concretizar.

A ausência de uma conclusão mais enfática faz com que o espectador saia com perguntas no ar: não há desfecho redentor tradicional, tampouco um epílogo que consolide todas as tensões colocadas. Essa indefinição — se por intenção estética, se por limitação de duração — é ao mesmo tempo força e fraqueza. O longa provoca, incomoda, instiga empatia, mas não amarra todos os fios com a precisão que poderia.

Em suma, Ursa revela um diretor promissor, disposto a dialogar com o presente brasileiro a partir de um recorte específico e sensível. A despeito de seus limites estruturais, se impõe como um trabalho relevante, que deixa marcas e questionamentos. Cinema que incomoda, embala e retira o conforto do espectador — um raro tipo de experiência.