Casa de Dinamite — ou A House of Dynamite — chega como o retorno esperado de Kathryn Bigelow, uma cineasta que já fez do atrito entre corpo humano e máquina de guerra o centro de sua estética (Guerra ao Terror). O filme, escrito por Noah Oppenheim (Jackie) e sustentado por um elenco coral que inclui Idris Elba, Rebecca Ferguson, Jared Harris, Tracy Letts e Anthony Ramos, parte de uma ideia simples e aterradora: um míssil intercontinental não identificado em rota para solo norte-americano e a engrenagem burocrática, técnica e moral que tenta decidir — em minutos que se esticam como lâminas — se haverá retaliação, interceptação ou resignação. A proposta é, de saída, cinematograficamente fértil e Bigelow explora com a câmera e com o som a sensação de um mundo ligado por cabos e monitores que pode, a qualquer momento, desabar.
Em termos técnicos, o filme mostra escolhas de alta competência: a fotografia de Barry Ackroyd imprime um realismo seco — muitos closes de faces iluminadas por telas, planos médios que deixam a arquitetura técnica falar tanto quanto os diálogos — enquanto a montagem de Kirk Baxter busca acelerar o pulso dos acontecimentos com cortes secos e elipses que em suas melhores cenas funcionam quase como uma intubação da tensão. A trilha sonora de Volker Bertelmann (Conclave, Nada de Novo no Front, Balada de um Jogador) evita melodrama e prefere raspagens, ruídos industriais e um pulso eletrônico que lembra sirenes à distância; assim, o som se transforma em extensão do pânico institucional, não em comentário emotivo. É perceptível também o trabalho de design de produção na Sala de Situação, no STRATCOM e nas bases: a mise-en-scène cria uma claustrofobia tecnológica que parece enviada por Bigelow para nos lembrar que a civilização moderna vive dentro de um gabinete de alta tensão.
A atuação é, na maioria dos momentos, um dos pilares do filme. Rebecca Ferguson, como a oficial da Sala de Situação que acompanha o alerta inicial, entrega um tipo de controle emocional que contrasta com a histeria contida do mundo exterior; Idris Elba compõe um presidente refratário aos clichês — um homem em cena que não é caricatura, e cujas escolhas morais ganham peso por estarem sempre em dúvida; Jared Harris e Tracy Letts fornecem os tons ranhentos e institucionais que a narrativa pede, rostos cansados que traduzem a história de decisões repetidas durante décadas de poder. Bigelow sabe extrair desses intérpretes uma economia de expressão que encaixa bem nas cenas de assalto técnico à informação.
Mas é aqui que aparece o nó dramatúrgico que condena grande parte das intenções ambiciosas do filme: a primeira metade do longa cria uma tensão muito bem orquestrada porém o roteiro quebra totalmente essa tensão quando estamos perto de ver o clímax (a explosão ou não da bomba nuclear em Chicago). O corte para reiniciar toda a narrativa pelo ponto de vista de outros personagens (que estávamos até então acompanhando somente pelo telão da Sala de Situação da Casa Branca) quebra completamente a narrativa, sendo um anticlímax terrível. A segunda metade do filme então torna-se arrastada, previsível e sonolenta para o espectador. Uma pena. Essa observação, direta e amarga, resume o efeito de uma solução estrutural que — embora interessante na teoria (a tentativa de examinar a mesma janela de tempo por diferentes prismas, quase um experimento tipo Rashomon) — na prática retira o ímpeto que a primeira parte havia construído com tanta precisão.
A estratégia narrativa em três blocos, com variações de ponto de vista e recomeços que recontam os mesmos minutos, é corajosa — e em certas passagens funciona como um investimento intelectual: somos forçados a reavaliar a sequência de informações, a ver como a responsabilidade e a interpretação muda dependendo de quem observa. Mas Bigelow e Oppenheim pagam um preço caro: ao cortar para reiniciar a narrativa o filme perde o relógio de sua tensão. O espectador que já estava preso pela contagem regressiva interior da Sala de Situação vê a barra de suspense resetada, e aquela expectativa acumulada (veremos a interceptação? veremos a cidade devastada?) torna-se uma promessa não cumprida. A consequência é uma segunda metade onde a cronologia esticada e as repetições tornam a cadência entorpecida, obrigando o público a assistir novamente aos mesmos sinais sob um novo ângulo sem a recompensa dramática proporcional.
Do ponto de vista moral e temático, Casa de Dinamite é contundente: Bigelow quer que a audiência sinta o pânico institucional e a absurda normalização da aniquilação que permeia a política contemporânea — um comentário que ecoa em cenas mínimas, como a banalização da linguagem técnica, os acrônimos que protegem decisões humanas e o distanciamento da violência por meio de telas e cadeiras acolchoadas. É um filme que mexe com a ética da retaliação, com o absurdo cálculo de “resposta proporcional” e com a fragilidade de sistemas técnicos que prometem segurança mas, na tela, falham ou se mostram moralmente ambíguos. A reação de agências reais — como críticas levantadas sobre a representação da eficácia do sistema de interceptação — demonstra o incômodo que o filme provoca fora das salas de cinema, e isso por si só é sinal de que Bigelow acertou no alvo temático.
No entanto, o grande problema permanece formal: quando o desenho dramático insiste em recomeçar para “ampliar” a perspectiva, perde-se o que tornou as primeiras cenas memoráveis — a escalada, o corte seco, o medo puro. A montagem passa a enfatizar explicações e procedimentos em vez de sequências que façam o coração do público bater mais rápido. O filme torna-se, por vezes, filme de conferência: planos de gente falando ao telefone, zooms nas tabelas, reuniões sucessivas. Não é que tais cenas não tenham valor documental ou político; é que Bigelow, mestra da tensão física em trabalhos anteriores, aqui opta por uma arquitetura narrativa que neutraliza seu próprio talento para o pulso dramático.
Ainda assim, há sequências que funcionam com uma precisão cirúrgica: cenas curtas de antecipação na base antimísseis, os olhares trocados na Sala de Situação, e o modo como a câmera abre espaço para que pequenas vontades humanas — uma mãe no telefone, um técnico que hesita — reapareçam como interrupções da máquina. Esses momentos resgatam o que há de mais potente em Bigelow: a habilidade de humanizar sistemas e de nos lembrar que, por trás de painéis e gráficos, existe gente com medo. E é por esses lampejos que o filme merece ser visto, ainda que com reservas.
Em termos de desempenho crítico público, Casa de Dinamite tem gerado divisões: há quem enalteça seu rigor técnico e a coragem temática; há quem aponte a inconsistência narrativa e a sensação de promessa não cumprida. Para o cinéfilo exigente — aquele que admira câmera, montagem, design sonoro e valor dramático — o filme oferece material para debate e cenas isoladas de grande qualidade; para quem busca uma construção de suspense absolutamente coesa do primeiro ao último minuto, o corte estrutural que reinicia a história será razão suficiente para frustração.
Concluo dizendo que Casa de Dinamite é um objeto cinemático ambivalente: tecnicamente competente, tematicamente necessário, porém narrativamente traído por sua própria aposta formal. Há, no filme, um pulso de cinema que incomoda — e isso é mérito — mas também há decisões que diluem a eficácia dramática que Bigelow já provou saber alcançar com maestria. Saí do filme impressionado com o conjunto técnico e com algumas interpretações, irritado com o anticlímax programado e, sobretudo, consciente de que esta obra ficará para mim como uma tentativa corajosa que não se sustenta até o fim. É um filme que merece ser visto e discutido — por tudo o que tenta dizer — mesmo que, no balanço final, me deixe com a sensação amarga de um potencial não inteiramente realizado.
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