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novembro 16, 2025

Sequestro 1971 (2024)

 


Título original: 하이재킹 
Direção: Kim Seong-han
Sinopse: Um avião coreano com destino ao Aeroporto de Gimpo se complica quando um de seus passageiros sequestra o voo, querendo que mudem o destino para a Coreia do Norte, onde vive seu irmão. Com o capitão perdendo a visão com a explosão de uma bomba, o co-piloto Tae-in toma o controle e luta para salvar as vidas dos passageiros e tripulantes.


Sequestro 1971 abre com um gesto de precisão histórica que logo se transforma em fôlego cinematográfico: o filme de Kim Seong-han parte de um incidente real — a tentativa de sequestro de um Fokker F27 em 1971 — e converte dados históricos em drama íntimo e tenso. A narrativa, centrada no primeiro-oficial Tae-in (Ha Jung-woo) e no sequestrador Yong-dae (Yeo Jin-goo), evita tanto o didatismo documental quanto a hipérbole de ação vazia; em vez disso, escolhe um caminho raro hoje: humanizar as extremidades do conflito sem diluir a violência e a urgência do acontecimento. 

É notável como Kim Seong-han equilibra dois tempos: o da cabine, claustrofóbico e corporal, e o do céu — amplo, ameaçador e estrategicamente militarizado. A escolha de encenar muito do filme dentro do espaço comprimido da fuselagem cria um teatro de intimidade onde gestos mínimos se tornam decisões morais decisivas. A câmera de Lee Hyung-deok não se limita a registrar a ação; ela se insinua entre ombros, sobre os degraus do corredor do avião, nos olhos dos passageiros, transformando o avião em personagem coletivo. Em planos curtos e móveis, a câmera captura suor, respiração, e o mínimo tremor das mãos que passa de personagem a personagem, estabelecendo um pulso rítmico que domina o filme. 

A montagem de Kim Sang-bum é outra coluna de força: o filme respira por cortes que privilegiam a causalidade emocional antes do efeito pirotécnico. Não se trata de acelerar por acelerar, mas de construir tensão através de elipses precisas — quando a ameaça cresce, os cortes se reduzem; quando a humanidade se impõe, o ritmo abre. Esse trabalho de edição é especialmente eficiente nas passagens que confrontam o passado de Tae-in — a submissão a ordens, a recusa anterior de disparar — com o presente radicalizado dentro do avião. A cada corte, há uma pequena economia dramática que paga dividendos emotivos no terceiro ato. 

Há uma coragem moral no roteiro (assinado por Kim Kyeong-chan): o filme não esconde o contexto político da Coreia em 1971, mas opta por tratar personagens como pessoas atravessadas por escolhas impossíveis. Yong-dae não é reduzido a um rótulo de vilão; sua trajetória, motivada por humilhação familiar e desejo de pertencimento, é exposta com delicadeza visceral. Isso não desculpa seus atos, mas amplia o espectro empático do espectador — e o coloca numa posição incômoda: torcer pela sobrevivência coletiva enquanto se reconhece a dor do agressor. É um movimento narrativo arriscado e, na maioria das vezes, bem sucedido. 

As performances são o motor afetivo do filme. Ha Jung-woo, contido e carregado de uma melancolia profissional, equilibra a frieza técnica do piloto com uma vulnerabilidade moral que explode em gestos mínimos — um aperto de mandíbula, uma troca de olhar, uma respiração que anuncia sacrifício. Yeo Jin-goo, por sua vez, sustenta a tensão psicológica do sequestrador: sua Humanidade contraditória é trabalhada sem estereótipo, com momentos de calma quase pastorais que tornam seus surtos ainda mais perturbadores. Sung Dong-il, como o capitão, e Chae Soo-bin, como a comissária Ok-soon, oferecem contrapontos firmes: o primeiro, o pragmatismo profissional; a segunda, a ternura corajosa que acaba por ancorar a cena final. As dinâmicas entre os atores conferem sentido e escala à expectativa do espectador. 

Tecnicamente, o filme também se destaca: a trilha de Kim Tae-seong funciona como um motor submerso — quase não invasiva, mas sempre presente para amplificar nervos e respiros. O som diegético (estalos, alertas, o ranger da fuselagem) é mixado como elemento de suspense, e muitas sequências investem no silêncio como arma: o silêncio antes do estalo de violência torna o barulho posterior devastador. A reconstrução de época — cheios de adereços, uniformes e pequenos detalhes de cabine — não é apenas cenográfica, é argumento: confirma contexto, hierarquias e a fragilidade industrial dos aparelhos daquela era. 

A direção de arte e a fotografia trabalham uma paleta que mistura a claustrofobia azulada dos interiores com o cinza metálico dos céus e da política militar. Não há glamurização do perigo; ao contrário, o filme opta por tons que parecem corroer os personagens, sublinhando que herói e anti-herói compartilham ossos e medos. A sequência do pouso forçado — movimento técnico de alta dificuldade — é filmada com clareza e tensão: o trabalho de efeitos práticos e coordenação de cenários cria um realismo físico que evita espetacularizações fáceis e privilegia o sofrimento verossímil. 

Se há algo a ponderar, é que o terço final do filme arrisca uma sentimentalidade que alguns espectadores poderão achar um tanto prescrita: o gesto final de sacrifício do protagonista, embora dramaticamente potente, mergulha o filme numa bondade trágica que pode soar contemplativa para quem esperava um fechamento mais áspero. Ainda assim, essa escolha tem coerência moral com todo o corpo do filme — uma obra que prefere olhar o custo humano das decisões ao invés de celebrar triunfos simplórios. Essa aposta emocional funciona porque até então o filme já investiu bastante em construção de caráter e tensão sustentada. 

Por fim, o que faz de Sequestro 1971 um filme marcante é sua vontade de manter o espectador dentro do corpo do avião — e por extensão, dentro do corpo humano sob pressão. É um filme de pequenos gestos convertidos em decisões definitivas; de cortes precisos que constroem uma tragédia íntima; de performances que se recusam a simplificar o real. Kim Seong-han assina aqui um thriller que é ao mesmo tempo história e fábula moral, técnica apurada e pulso afetivo. É um cinema que lembra por que ainda vale a pena reunir-se numa sala escura: para testemunhar, por uma hora e pouco, o que as pessoas fazem quando são empurradas até o limite — e sentir, junto com elas, o peso das escolhas que nos definem.