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novembro 09, 2025

Queer (2024)

 


Título original: Queer
Direção: Luca Guadagnino
Sinopse: 1950. William Lee, um expatriado americano na Cidade do México, passa os dias quase completamente sozinho, exceto por alguns contatos com outros membros da pequena comunidade americana. O encontro com Eugene, também expatriado e ex-soldado recém-chegado à cidade, mostra, pela primeira vez, que pode finalmente ser possível estabelecer uma conexão íntima com alguém.


Luca Guadagnino há muito se firmou como um cineasta ligado às sensações, aos corpos e à maneira como eles ocupam e vibram dentro de um espaço, quase como se o próprio ambiente fosse cúmplice das emoções humanas. Me Chame Pelo Seu Nome e Suspiria deixaram clara essa tendência para o excesso estético, seja ele suave e terno ou brutal e ritualístico. Entretanto, com Queer (2024), adaptação tardia do romance de William S. Burroughs, algo nessa maquinaria sensorial escorrega. Ao tentar transmutar um texto literário tão marcado pela subjetividade distorcida, pela melancolia e pela dependência emocional quase patológica, Guadagnino parece ter tomado decisões que, em vez de reforçar a atmosfera, a diluem. Minha opinião quanto a esse filme fica bem em cima do muro. Algumas coisas são horrendas e outras são ótimas; a cada cena há um pequeno duelo entre o sublime e o caricato, entre o humano e o artificial, entre o que poderia ser uma obra de afeto e o que se revela um experimento estilístico descontrolado.

O centro gravitacional do filme, porém, é inegavelmente a dupla de protagonistas. Daniel Craig, completamente entregue ao papel de Lee, oferece uma das atuações mais vulneráveis e abatidas de sua carreira recente. Há algo de profundamente despido em sua presença: os olhos cansados, o corpo sempre prestes a ceder ao vício e à paixão, a voz que oscila entre a confiança desesperada e o silêncio angustiado. Craig consegue manifestar a fragilidade emocional e física de Burroughs sem cair no teatro exagerado. Seu Lee é pequeno, humano, triste, um homem deslocado no mundo, implorando por pertencimento. Ao seu lado, Drew Starkey interpreta Allerton com uma avalanche de dubiedade. Nunca está totalmente claro se ele corresponde aos sentimentos de Lee, se manipula sua devoção ou se simplesmente não sabe lidar com o afeto que lhe é dirigido. Starkey trabalha a ambiguidade sem sublinhá-la, deixando que o espectador oscile junto com ele — ora encantador, ora cruel, ora indiferente. Se o filme resiste ao fracasso completo, é porque essas duas performances se agarram a uma verdade emocional que permanece pulsante.

No entanto, é justamente ao redor dessas atuações que o filme desmorona. Guadagnino perdeu a mão totalmente aqui, suas escolhas são surpreendentes no mau sentido: tudo parece um cartoon – e isso não ficou nada bom. A história se passa no México dos anos 1950, mas nada na direção de arte consegue evocar tempo, lugar ou atmosfera. Ao contrário: os cenários soam tão falsos, tão assumidamente artificiais, que rompem qualquer pacto ficcional. A filmagem em parte na Cinecittà de Roma — um lugar essencial para a história do cinema italiano, mas também conhecido pelos cenários teatrais e muitas vezes grandiloquentes — acaba sendo uma armadilha. A escolha da direção de arte por optar por estúdios que se parecem com estúdios foi péssima. Não dá credibilidade nenhuma à história e faz a atenção do espectador ser constantemente distraída. O espectador se vê observando paredes falsas, ruas que parecem pintadas, texturas que não respiram. A sensação é de estar vendo uma reconstrução barata de algo que nunca existiu de fato. O México de Guadagnino é um teatro oco.

A fotografia, que deveria estabilizar ou modular essa artificialidade, vai na direção oposta. O excesso de filtros, a iluminação que mais se aproxima de um comercial publicitário do que de um drama íntimo, e a insistência em cores saturadas que não têm função dramática tornam tudo ainda mais distante. Não há densidade nas imagens. Não há suor, poeira, cheiro, calor — elementos essenciais para a tragédia amorosa e melancólica de Burroughs. Falta fricção. Falta matéria.

E quando parece que talvez a trilha sonora possa resgatar algo, surge outro golpe: nem a trilha de Atticus Ross e Trent Reznor — nomes marcantes por trabalhos em TRON: Ares, Rivais, Bird Box e Black Mirror — se salva. Com exceção do tema principal, raramente vemos alguma música que remeta à construção atmosférica que eles normalmente realizam. A trilha sonora é marcada por escolhas completamente deslocadas de seu tempo imagético, com canções do Nirvana e Prince inseridas em um filme ambientado nos anos 1950. Esse anacronismo até poderia ser uma provocação estilística, mas aqui se torna apenas um incômodo temporal, como se o filme não tivesse confiança no próprio período representado. Ao invés de criar contraste expressivo, causa apenas confusão.

Claro que o texto original de Burroughs contém doses generosas de tensão psicológica e um retrato do amor gay como obsessão, dependência, compulsão — mas esses aspectos já foram explorados inúmeras vezes no cinema contemporâneo, tanto nos filmes pequenos independentes quanto nos grandes blockbusters. Nesse sentido, a história de Queer acaba se revelando mais do mesmo no tema “gay”, reproduzindo enredos e conflitos que já conhecemos: o amor não correspondido, o desejo que vira desespero, o corpo que busca no outro aquilo que não encontra em si mesmo. Sem um olhar mais profundo ou uma reinvenção formal, o filme se torna repetitivo, previsível, quase derivativo.

E há ainda o problema estrutural do roteiro. A narrativa parece se mover sem direção clara, como se o filme estivesse sempre prestes a encontrar um foco que nunca chega. Momentos se acumulam, diálogos se estendem e se repetem, e a relação entre Lee e Allerton oscila sem construir um crescendo emocional sólido. Essa confusão toda, com um roteiro também meio sem pé nem cabeça, faz a experiência de assistir a Queer desafiadora e entediante. Há trechos em que nada acontece de fato — e não de forma contemplativa ou sugestiva, mas vazia.

No final, ficamos com um filme que tinha potencial para ser uma reflexão sensível sobre amor, dependência e fragilidade emocional, mas que se perde em escolhas estéticas equivocadas, em uma visão exageradamente performática do cenário e em uma trilha sonora desconectada. As atuações de Daniel Craig e Drew Starkey são joias presas em uma moldura de plástico colorido. O que poderia ser íntimo, denso e pungente acaba se tornando ruidoso, disperso e artificial.

Queer não é um desastre completo, mas também está longe de ser memorável. É uma obra que oscila o tempo todo, que oferece vislumbres de grandeza e longos momentos de frustração. E talvez, ironicamente, essa oscilação seja a sua marca: um filme que deseja ser profundo, mas não encontra solo onde ancorar suas emoções; um filme que quer falar de amor, mas acaba soterrado por suas próprias escolhas visuais.

No fim das contas, o que permanece é a dor crua no olhar de Daniel Craig — um homem que ama demais — e a indiferença enigmática de Drew Starkey — um homem que talvez não ame nada. O resto é ruído.