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novembro 08, 2025

A Noite Sempre Chega (2025)

 


Título original: Night Always Comes
Direção: Benjamin Caron
Sinopse: Prestes a perder sua casa em uma cidade cada vez mais inacessível, uma mulher passa uma noite inteira atrás de 25 mil dólares para evitar o despejo.


Há filmes que parecem construídos para incomodar, para provocar um aperto no peito que não se desfaz nem quando os créditos sobem. A Noite Sempre Chega se encaixa perfeitamente nessa categoria. Benjamin Caron conduz um thriller urbano onde a tensão é constante, onde cada acontecimento empurra a protagonista mais fundo numa espiral de urgência, desespero e sobrevivência. A obra adapta o romance de Willy Vlautin, mas o faz com uma linguagem cinematográfica mais direta, quase crua, que transforma a noite de Portland em um território de caça — e o predador, neste caso, não tem rosto deformado, máscara de hóquei ou motosserra.

Porque o filme entende algo essencial sobre o mundo contemporâneo: o medo mudou. O terror que nos assombra hoje não é mais o psicopata atrás da porta, mas a imobiliária que expulsa famílias de suas casas, o banco que transforma pessoas em dívidas ambulantes, o advogado que reduz vidas inteiras a cláusulas contratuais. A violência é burocrática, legalizada, lavada e passada. O horror, agora, é assinado com uma caneta.

É diante desse contexto que conhecemos Lynette, interpretada por Vanessa Kirby, uma mulher que tenta desesperadamente juntar dinheiro suficiente para evitar que ela e sua mãe sejam despejadas. Kirby entrega uma personagem de expressão tensa e corpo sempre em estado de alerta, e é justamente essa fisicalidade que sustenta sua presença. Não há atuações arrebatadoras no filme — o elenco trabalha de modo correto, funcional. Nenhum personagem rouba a cena, o que, curiosamente, fortalece o efeito dramático da narrativa, pois é o roteiro, de construção firme e muito bem encadeada, que sustenta o filme em primeiro plano.

A premissa é simples: uma corrida contra o relógio numa única noite, com a protagonista tentando conseguir o dinheiro que falta. É simples, mas funciona com precisão porque a escrita entende o peso dramático do acúmulo. A cada novo encontro, a cada nova tentativa, o filme aumenta a pressão, o ritmo, o desespero. As coisas pioram e pioram de uma forma quase matemática — e é essa espiral que prende o espectador. Há um frenesi aqui que lembra o cinema que se alimenta de adrenalina, mas sem recorrer a espetáculo gratuito: cada obstáculo tem consequências, e o impacto narrativo nunca é o mesmo.

Visualmente, o longa trabalha com uma cidade desoladora. A fotografia usa o neon, o reflexo úmido das calçadas e o vazio das ruas para construir um ambiente que parece sempre à beira de ruir. A direção de Caron evita movimentos grandiosos: ele prefere a proximidade, o foco nas reações, na respiração, no suor acumulado na pele. A edição é nervosa, mas nunca caótica ao ponto de desorientar; o filme sabe que precisa manter o espectador completamente colado à protagonista — ou corre-se o risco de perder o impacto moral que a história busca.

E impacto moral existe, e muito. A obra revela como uma cidade pode se tornar uma máquina de expulsar vidas, como o sistema econômico contemporâneo opera menos como estrutura social e mais como mecanismo de seleção, premiando quem pode pagar e triturando quem não pode. Não há sermão, mas o subtexto é gritante: a miséria não é acidente; é projeto.

À medida que a noite avança, a protagonista se torna uma figura quase trágica, alguém empurrada para limites éticos que nunca imaginaria atravessar. Mas o filme não nos pede julgamento — pede compreensão. Pede, talvez, a coragem de olhar para o abismo social sem buscar consolo.

O final, duro e direto, recusa catarse fácil. Não há redenção plena, nem promessa de paz. O que resta é a constatação de que sobreviver, hoje, é muitas vezes apenas adiar o próximo corte, o próximo boleto, a próxima ameaça de despejo. A noite sempre chega — e ela não tem rosto, não tem corpo, não tem voz; ela tem contrato, juros e prazo.

É justamente essa lucidez que faz o filme permanecer. A Noite Sempre Chega não quer emocionar; quer alertar. Seu impacto nasce da intensidade, da estrutura narrativa que nunca desacelera e de uma visão amarga, porém realista, do mundo que construímos.

E quando termina, permanecemos ali, respirando um pouco mais rápido, pensando talvez que o monstro mais assustador que existe hoje é perfeitamente legalizado.