Desde os créditos iniciais, com a câmera estabelecendo a rotina doméstica de Rosamund Pike como Maddie e Matthew Rhys como Frank, Hallow Road (2025) desenrola-se com notável economia de meios — quase tudo se passa no interior do carro dos dois, ou em telefonemas à filha Alice (Megan McDonnell) que atropelou alguém numa estrada deserta. A premissa é sólida: o casal recebe um telefonema angustiado da filha, que teve um acidente, e eles partem numa corrida para encontrá-la antes que outra pessoa descubra a cena. A ideia de restrição de espaço, de tempo real — ou quase — remete a filmes como Locke (2013), onde a tensão nasce da limitação.
E aqui é que o filme começa a se “implodir” para mim. Logo nos primeiros dez minutos o filme se estragou, se implodiu sozinho para mim. Um fator central de desconexão com o roteiro aconteceu: se eles têm tanta pressa em encontrar a filha no meio da estrada no acidente, como pode o pai (Matthew Rhys) dirigir o carro como se estivesse passeando, fazendo turismo? Isso me perturbou durante todo o longa e achei que era talvez erro de projeção errada atrás dos vidros do carro. Mas não. Tudo piorou depois que, numa cena em que ele realmente acelera, realmente podemos ver que ele mesmo com o acidente, se preocupava mais com as regras de trânsito em um local deserto do que com a filha. Nem preciso entrar em qualquer outro mérito ou demérito do filme: é realmente inconcebível toda a narrativa com esse fato.
Tecnicamente falando, Anvari escalou o ótimo diretor de fotografia Kit Fraser e a edição de Laura Jennings para entregar uma atmosfera mínima e claustrofóbica. O uso do carro como cenário único — ou quase — funciona à primeira vista: há um senso de confinamento, de tempo correndo, de movimento que é ao mesmo tempo fuga e conversão. Num trecho da entrevista, Anvari afirma: “uma vez que você está no carro, você está quase na psique dos pais. Você está literalmente experimentando suas ansiedades e sua imaginação.” Essa promessa de mergulho psicológico é ambiciosa e, em teoria, interessante.
No entanto, a ambição não se traduz em coerência narrativa. O roteiro de William Gillies constrói o enredo principal de forma bastante linear: a filha atropela uma pessoa, liga para a mãe, o casal sai em socorro e chegam à estrada solitária de Hallow Road — mas à medida que avançam, revelações perturbadoras surgem: há algo mais, não estão sozinhos, o passado retorna. O problema é que muitas dessas “revelações” chegam sem preparo suficiente ou lógica interna, e a tensão construída no primeiro ato se desfaz no meio.
A performance de Pike e Rhys pode até se sustentar em alguns momentos — Pike como a mãe paramédica, Frank tentado pela cobertura do crime — mas são socorridas por convenções, não reinventam nada. A iluminação, o som do carro, o relógio silencioso marcando as horas, o alarme de fumaça que desperta a família — vemos aí tentativas de escalada de inquietação. No entanto, quando alguém nota que o pai dirige como se fosse passear, ou que a filha só aparece como voz ao telefone (o que poderia funcionar, mas sente-se mal explorado), a distância entre a intenção e a execução se revela.
Voltando ao ponto: se o motivo da urgência é a filha que atropelou alguém numa estrada deserta, a acomodação do cronograma, da condução do carro, da narrativa “eles estão correndo” simplesmente não convence. Ela poderia ter sido acelerada, o ritmo quebrado, o foco no pânico, nas escolhas éticas, nas consequências — em vez disso, temos uma condução demasiado contida. Aliás, quando ele se dá conta de que está numa corrida, acelera, mas ainda assim parece mais preocupado em sinais de trânsito ou em manter a calma do que no risco real da situação — foi ali que pensei: “não consigo levar isso a sério”. E isso mina a credibilidade de todo o terror que se pretende gerar.
Artisticamente, a escolha estética de manter quase tudo dentro do carro, com longos takes, áudio de telefone, circunstâncias fora do quadro, poderia gerar uma tensão quase existencial — o carro como cápsula da culpa, do tempo suspenso, do erro que se torna catalisador de revelações. Mas o filme falha em explorar esse isolamento com profundidade. Em vez de um filme quase inteiro sobre culpa, medo e decisões que mudam vidas, temos um thriller que hesita entre o realismo (acidente, ligação, cobertura do crime) e o sobrenatural (algo está na estrada, eles não estão sozinhos) sem lograr convencer em nenhuma das frentes.
Além disso, no plano técnico, a edição de som e o design de produção parecem pouco ousados. Os diálogos predominam, a câmera se limita, há momentos de tensão, mas o clímax — e sobretudo a cena final — peca por explicar pouco ou de forma aberta demais, o que pode frustrar. É justamente aí que entra outro ponto: assista aos créditos finais para ter uma pista da (possível) explicação sobre a cena final. Há menção de que o filme “recompensa” quem espera até o fim com uma pista escondida ou “easter egg”. No entanto, esse recurso de pós-créditos — em um filme que já peca pela fluidez narrativa – soa mais como um artifício do que como parte integrante da trama.
Do ponto de vista de ritmo, os 80 minutos de duração (ou 81 minutos conforme algumas fontes) deveriam favorecer uma experiência tensa e compacta. Mas o filme passa sensação de arrastado em certos segmentos. A insistência em manter o carro como cenário único limita, e enquanto a câmara poderia explorar trajetos, reflexos, sombras na estrada, no vidro, na condução noturna — o que ela faz com parcimônia — o resultado é mais contemplativo do que visceral. E num thriller de urgência, “má contemplação” pode significar “falha de urgência”.
No que toca à dramaturgia, o casamento entre personagens, o argumento “filha em perigo + pais em pânico” tinha tudo para gerar um estudo psicológico mais profundo: culpa paterna e materna, a fragilidade da família, a responsabilidade, o segredo, a transgressão que se transforma em caça – tudo terreno fértil. Porém, o filme escolhe, ao invés de aprofundar esses temas, permanecer na superfície: dilemas éticos pouco explorados, motivações das personagens pouco claras. A razão central desconexa, que eu mencionei no parágrafo inicial, é sintomática desse descuido: uma narrativa que exige urgência mas dirige com lentidão, que quer pânico mas troca por passeio.
Por fim, quanto à atmosfera, o filme até se sustenta em momentos isolados — o corredor escuro, o telefone nervoso, a estrada despida, a voz da filha no viva-voz — mas nunca atinge a coerência em sustentar um crescendo sustentado de horror ou suspense. O desdobramento final, quando o “algo mais” aparece, parece uma sobreposição de carpetes em vez de uma construção desde o início. Conclusão: o filme tinha potencial, bons nomes, uma proposta técnica interessante (restrição de espaço, quase real-time, pais, carro) e até boas intenções artísticas. Mas a falha de coerência narrativa, a desconexão entre escrita e execução, o ritmo dividido, e sobretudo o problema fundamental de “eles têm tanta pressa, mas o pai dirige como se estivesse passeando” destrói a suspensão da descrença.
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