Quando me sentei para assistir Oficina do Diabo (2025), de Filipe Valerim, confesso que carregava um pouco de desconfiança. Seria natural — afinal, trata-se da estreia de ficção da produtora Brasil Paralelo, empresa que já foi associada a documentários e séries com viés ideológico, e eu esperava algo mais “palco de mensagem” do que “filme de cinema”. Mas, para meu alívio, não encontrei exatamente isso. O longa me pegou por surpresa em boa parte: não se tornou um sermão com câmera, e isso, vindo de onde vem, já é um fôlego diferente.
A trama nos põe ao lado de Pedro (Sérgio Barreto), músico que tentou a sorte na cidade grande, sucumbiu à desordem, aos vícios, à vaidade, e retorna à sua cidade natal como quem se reencontra — ou se perde de novo. É aí que entram Natan (Felipe de Barros), demônio aprendiz, e Fausto (Roberto Mallet), o profissional no ofício infernal, determinados a transformar a alma de Pedro em mais um “produto” da sua tal oficina — a “empresa mais antiga do mundo”, o inferno, como o filme define.
Logo de cara, achei interessante que o filme se apoia na metáfora da “oficina” — ao invés de apenas mostrar o diabo circulando solto, ele trabalha com precisão, com método. Essa concepção com leveza e imaginação se destaca, porque não vira caos visual ou barroquismo gratuito, mas sim metáfora trabalhada. E nos momentos em que Natan interfere nas falas de Pedro, ou empurra uma decisão, ou sussurra uma dúvida, o filme cresce — ali ele acerta a tensão interna, algo como ver o jogador hesitar no gol, sentir o sopro da tentação.
Tecnicamente, Valerim tenta imprimir um ambiente de interior dos anos 60, um Brasil menor, menos frenético, mais existencial — o pano de fundo propício para uma batalha entre forças que não são visíveis aos olhos comuns. A fotografia tem seus momentos: os espaços abertos ou silenciosos conversam bem com a angústia de Pedro; e as sequências de tentação, quando ele ouve o demônio ou o demônio o observa, funcionam como boas camadas de suspense psicológico. A ambientação sonora e a trilha ajudam a dar corpo — não diria “som de blockbuster”, mas dá contexto, e isso já me agradou.
Por outro lado, o filme também mostra claramente suas limitações — e eu as senti durante a sessão. As atuações, com exceção de Elizângela (na mãe de Pedro), falham em diversos momentos. Ela entrega presença, ocupa o espaço, faz crer naquela mulher que vê além da confusão do filho. Mas os demais, em seus papéis, às vezes soam presos a uma encenação escolar, digamos — entonações rígidas, expressões que vacilam entre o natural e o forçado. E a direção de arte… bom: se você olhar bem, dá pra ver que os figurinos parecem “do guarda-roupa de aluguel”, que os cenários têm textura lavada, e que tudo ressoa produtor independente brasileiro de baixo orçamento. Nada dissimulado, portanto; apenas honesto em sua condição. Mas essa honestidade não elimina o fato de que, em vários momentos, a produção visual tira o espectador da imersão.
Agora: é importante frisar algo que achei mérito genuíno — a produção foi realizada sem qualquer financiamento estatal ou incentivo público, bancado totalmente de forma privada pelos assinantes da Brasil Paralelo. Esse tipo de coragem não deve passar batido. Produzir cinema de ficção no Brasil hoje sem recorrer ao mecanismo público é tarefa improvável, e que o filme tenha se lançado mesmo com esse risco já representa uma vitória.
No que se refere à história, ela não inventa a roda — por muitas boas ideias, o roteiro (escrito por Valerim e Elton Mesquita) segue patamares que reconhecemos: o jovem que volta, o demônio que observa, a mãe que ora, o vazio existencial, o retorno às raízes. É previsível? Sim. Funciona? Sim. E essa talvez seja a graça: ela não tem vergonha de contar o óbvio bem, antes de tentar o inacreditável. Nos momentos em que Natan tenta agir, manipular, influir nas decisões de Pedro, o filme encontra seu ritmo. Esses instantes são os melhores — quando a voz do demônio está fora de cena, mas a sua sombra paira; quando a escolha de Pedro parece não só questão de sucesso, mas de alma.
Mas o problema é que esses lampejos de força não sustentam o todo o tempo. O filme arrasta-se em partes: há conversas longas demais, transições que não ajudam no pulso narrativo, cenas de “preenchimento” que estragam um pouco a fluidez. Se você esperar algo intenso do primeiro ao último minuto, vai se decepcionar. O filme prefere ser “adequado” — e nisso reside o seu ponto “meia-altura”.
Ideologicamente, devo dizer: eu tinha bastante receio por causa da Brasil Paralelo — esperava que virasse palanque ou propaganda partidária. Mas o filme surpreendeu nesse aspecto: não encontrei doutrinas religiosas extensas, não senti que fosse preparado para a direita ou para debates partidários explícitos. A fé está presente, sim; a batalha espiritual aparece sem culpa. Mas não vira um manifesto. Isso me agradou — mesmo que a execução não seja impecável.
Então, como saí desse filme? Com a sensação de que vi algo honesto, com bons momentos, com ambição contida — mas também com frustrações que poderiam ser evitadas. O filme é, em última análise, o que promete: uma batalha espiritual modesta no contexto brasileiro, feita com recursos limitados, com ideias maiores do que a própria produção talvez consiga sustentar. E isso não é pouco, mas também não me deixa empolgado de forma entusiasmada.
Minha impressão final: Oficina do Diabo é um filme que vale a chance — se você entrar sabendo que não vai assistir um “novo clássico brasileiro”, mas sim uma obra de momento, com virtudes e defeitos, ela entrega reflexões, alguma tensão, e um bom contraste entre o visível e o invisível. É adequado. E por isso mesmo pode surpreender quem vai com expectativas mais simples. Mas se você busca algo que quebre paradigmas ou fique com você por muito tempo, talvez sinta que “poderia ter sido mais”.
No fim das contas, agradeço ao filme por me fazer olhar de novo para a ideia de tentação, de escolha, de alma — esse tipo de cinema, simples mas sincero, ainda me interessa. Se for para assistir, entre sem pretensão, e aproveite o que ele tem de melhor.
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