Mar Profundo (Ocean Deep, 2023), dirigido e escrito por Liza Bolton, começa com uma promessa — um drama de perda ambientado numa costa brumosa, com uma protagonista tentando juntar as pontas do que restou de sua vida depois do desaparecimento do marido em um mergulho científico. A premissa é simples, quase clássica: luto, isolamento e a busca por respostas. A execução, no entanto, transforma essa simplicidade em algo desconfortavelmente tosco, e é preciso dizer sem rodeios: é ruim, simplesmente ruim, de uma forma extraordinariamente ruim de tão mal feito.
O que decepciona imediatamente é o roteiro — não só fraco, mas com a sensação de ter sido costurado sem preocupação com lógica dramática, arcos coerentes ou mesmo com o mínimo de surpresa. O diálogo é sintético e previsível, e a progressão dos acontecimentos tem um ritmo que mais parece ter sido escrito por alguém de uma oficina de cinema do ensino médio: personagens tropeçam em clichês, motivações são declaradas sem subtexto e reviravoltas surgem por conveniência, não por necessidade narrativa. Logo nos primeiros minutos é possível adivinhar o final; a sensação de inevitabilidade faz a maior parte do filme andar para frente apenas porque a câmera insiste em acompanhá-lo, não porque haja descoberta ou tensão genuína a sustentar o interesse.
Tecnicamente o filme também falha em pontos básicos que qualquer produção minimamente profissional resolveria com um pouco mais de cuidado. A fotografia tenta vender uma atmosfera — longas praias, céu pesado, água bruta — mas os enquadramentos repetem a mesma paleta sem variação dramática; quando a câmera deveria expandir o mistério ela se contenta com composições apressadas que não ajudam nem a personagem nem o espectador a entrar no universo proposto. A direção de arte pinta um litoral pitoresco, porém o trabalho de iluminação não acompanha: sombras frágeis, contrastes esquisitos e, em muitas cenas internas, reflexos e fundos que denunciam sets improvisados. Por outro lado, o elenco entrega esforços honestos — sobretudo a atriz principal, que tenta carregar uma dor plausível com poucos recursos — mas performances isoladas não salvam uma narrativa que não lhes dá terreno para crescer. É frustrante ver atores talentosos escorregarem num material que não lhes oferece arcos verdadeiros.
A edição, porém, é o pecado mais flagrante: horrenda, cafona, com fades que mais parecem saídos de uma novela — e das bem ruins. Cortes abruptos, ritmo indeciso e transições anacrônicas transformam momentos que poderiam ser sutis em cenas constrangedoras. Há uma dependência preguiçosa de cortes para “criar” emoção quando, na verdade, o que falta é construção. Em várias passagens a montagem tenta enfeitar uma sequência fraca com crossfades e fades antigos, recurso que, longe de agregar, só evidencia a incapacidade de confiar nos próprios planos e no trabalho de ator. O resultado é um filme que parece feito com pressa e soluções de gosto duvidoso que arrancam mais risos involuntários que apreensão verdadeira.
Mesmo a concepção do realismo climático do filme falha: até a chuva que vemos dá pra ver que é artificial. Não falo apenas de efeitos especiais óbvios — falo do trabalho conjunto de fotografia, som e direção que deveria vender a tempestade como presença orgânica e, neste caso, falha em produzir qualquer verossimilhança sensorial. A chuva parece aplicada como filtro pós-produção; o som ambiente é seco demais; o vento é tímido — enfim, o filme erra o básico de um cinema que tenta, com a água como metáfora, falar de perda e do abismo interior. Quando a construção do mundo não convence, qualquer tentativa de simbolismo fica ressentida e soa forçada.
Aos poucos, Mar Profundo vira um filme esotérico do nada: o tom desloca-se sem aviso e a narrativa passa a depender de imagens metafísicas e acontecimentos que não se justificam dramaticamente — o marido morto se comunica por goteiras e torneiras abrindo, como se o roteiro confundisse surrealismo com solução narrativa. Esses momentos, que poderiam ser poderosos se bem montados, aqui são resolvidos com primitivismo estilístico e uma preguiça interpretativa que obriga o espectador a aceitar saltos conceituais sem base. Em vez de construir mistério, o filme despe fragmentos místicos desconexos que soam kitsch e desesperados por profundidade.
Há, ainda, um problema de tom: o filme tenta ser ao mesmo tempo drama íntimo, thriller de investigação e fábula sobrenatural, e acaba não sendo crível em nenhum dos três. A trilha sonora insiste em sublinhar emoções óbvias com camadas melodramáticas que empurram o espectador para fora da cena, em vez de convidá-lo para dentro dela. Quando se recorre a efeitos para “elevar” a cena, esses efeitos terminam por sublinhar a insuficiência do que está sendo mostrado. Em suma, em vez de crescer em densidade emocional, o filme se esvazia, porque prefere a aparência do que a sustância.
Alguns aspectos técnicos mínimos mereceriam menção por contraste: a escolha do formato scope (2.35:1) poderia ter sido usada para criar uma sensação de vazio e isolamento costeiro mais incisiva, mas a mise-en-scène não aproveita esse espaço. A direção de som parece perdida entre planos, ora exagerando ruídos domésticos com intenção hipnótica, ora deixando cenas cruciais quase mudas. A montagem sonora incoerente compromete quaisquer momentos que deveriam funcionar pela sugestão — e sem sugestão, o esoterismo vira apenas artifício barato. Se a intenção fosse criar um clima de sonho lúgubre, faltou unidade estética; se a intenção fosse um roteiro realista, faltou comprometimento com verossimilhança.
Voltando ao roteiro: a previsibilidade é um assassinato silencioso para filmes que dependem do mistério. Quando, nos primeiros minutos, já se pode antever o final, resta ao público apenas assistir ao caminho até a conclusão — e esse caminho em Mar Profundo está pavimentado de conveniências, diálogos expositivos e soluções narrativas de baixa ambição. A obra não dialoga com tradição alguma de thriller psicológico que valha a pena revisitar; antes, remete a um exercício amador de montagem dramática, um laboratório mal sucedido em que cada escolha exacerba a sensação de improviso.
Por fim, o aspecto experiencial do filme é — honestamente — constrangedor de se assistir. Há momentos em que a sensação é a de assistir a um projeto mal formatado de festival local, onde boas intenções tentam mascarar lacunas de técnica e dramaturgia. A combinação de roteiro frágil, edição deficiente, efeitos baratos e um súbito pulo para o esotérico torna o filme uma experiência mais penosa que instigante. Não se trata apenas de criticar sem critério: é perceber que, entre as decisões tomadas, nenhuma parece resultado de um compromisso sério com a arte cinematográfica.
Dito isso, é justo reconhecer que a vontade de abordar luto e culpa em um cenário costeiro, usando o mar como metáfora do abismo interior, é uma intenção legítima — e há lampejos de sensibilidade em cenas isoladas, compostas por atuações contidas e por enquadramentos que por um instante quase alcançam aquilo que o roteiro promete. Mas lampejos não bastam; cinema é trabalho coletivo e sistemático, e Mar Profundo falha em transformar suas intenções em linguagem cinematográfica convincente. Em vez de um estudo sensorial sobre perda, vira um catálogo de erros formais e narrativos.
Em conclusão: assistir Mar Profundo é topar com um filme que, apesar de algumas presenças competentes no elenco e de uma ideia central com potencial, entrega um produto amadorizado em sua execução — do roteiro previsível às escolhas de edição que beiram o mau gosto. Para quem busca um drama de perdas que avance por sutileza e precisão técnica, este não é o endereço. Para além da frustração técnica, resta a impressão triste de tempo perdido: uma premissa que poderia gerar um drama tenso e comovente é, aqui, desperdiçada por soluções narrativas e estéticas de baixa ambição. É um filme que poderia ser uma conversa sobre o luto e vira, infelizmente, motivo de constrangimento.
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