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novembro 07, 2025

O Papa Que Venceu o Comunismo (2025)



Título original: O Papa Que Venceu o Comunismo
Direção: André S. Brandão
Sinopse: O documentário narra a história de Karol Wojtyła, o Papa João Paulo II, com imagens raras e informações exclusivas. Nascido na Polônia, sob ocupações nazista e comunista, enfrentou perseguições, vigilância da KGB e sobreviveu a um atentado de forma milagrosa, tudo isso sem jamais ceder ao medo. Descubra como, com sua fé em Cristo, atos de evangelização em países ateístas e o uso da arte e da filosofia, João Paulo II inspirou milhões, fortaleceu o movimento Solidariedade e contribuiu para a queda do Muro de Berlim, em 1989.


O Papa Que Venceu o Comunismo (2025), dirigido por André S. Brandão e produzido pela Brasil Paralelo, é um daqueles filmes que chegam carregados de intenção e convicção, mas que, justamente por essa convicção excessiva, acabam comprometendo aquilo que deveria ser a essência da própria proposta. A obra se apresenta como um documentário histórico sobre a figura de João Paulo II e seu papel na derrocada do regime comunista no Leste Europeu, em especial na Polônia, sua terra natal. O que se espera, então, é um olhar abrangente, cuidadoso e, sobretudo, aberto — afinal, trata-se de um dos acontecimentos mais significativos do século XX, com enorme relevância política, social, cultural e religiosa. No entanto, o que o filme oferece é um tratamento extremamente direcionado, que transforma sua força histórica em arma retórica, perdendo nuances, complexidades e, em última instância, sua potência cinematográfica.

Para começar, é importante reconhecer o valor do material histórico aqui apresentado. O documentário possui acesso a inúmeros registros de arquivo, discursos, transmissões televisivas e fotografias de grande impacto. Ver João Paulo II falando fluentemente em diferentes línguas — polonês, italiano, espanhol, inglês, francês, português — é algo que, de fato, chama atenção não apenas pela capacidade comunicativa do pontífice, mas pela imagem de liderança que ele consolidou ao longo das décadas. João Paulo II foi, sem sombra de dúvida, uma das figuras mais relevantes do século XX: um líder espiritual que, ao mesmo tempo, movimentou forças políticas internacionais em um cenário de intensas tensões ideológicas. Essa presença multifacetada do papa aparece no filme, em especial nos trechos de arquivos originais, e nesses momentos o documentário ganha uma força quase natural. Quando a câmera deixa que o passado fale por si, há algo vivo, envolvente, memorável.

Porém, o problema começa justamente quando o documentário tenta explicar, interpretar e comentar. Ao invés de trabalhar com distanciamento crítico ou ao menos com pluralidade de vozes, a obra se assume como um produto totalmente político e pouco religioso, o que é curioso, considerando que sua premissa inicial é justamente ressaltar o caráter espiritual e pastoral do pontífice. O tom muda rapidamente: após um breve início que situa a biografia básica de Karol Wojtyła, o filme mergulha de cabeça em um discurso constante contra o comunismo, sem jamais complexificar as estruturas históricas, sociológicas e econômicas envolvidas no período. Essa insistência num viés claramente alinhado à direita — e aqui falamos de um alinhamento sem disfarces, sem contraponto, sem debate — faz com que o documentário se torne, paradoxalmente, mais estreito do que o próprio objeto que pretende exaltar.

E isso impacta diretamente sua duração. O filme não é curto, tem um ritmo lento e, por conta da falta de variação discursiva, acaba se tornando ainda mais longo na percepção do espectador. Se a proposta fosse explorar as contradições entre fé e política, ou entre liderança religiosa e atuação geopolítica, haveria um caminho rico e profundo a trilhar. No entanto, o que se vê é uma sequência de afirmações categóricas, sem espaço para divergências ou para as zonas cinzentas que fazem da História um campo fascinante. Se a intenção era convencer, o efeito pode ser o oposto: o espectador mais atento percebe o esforço argumentativo e passa a ver o filme não como estudo, mas como panfleto.

É aqui que surgem duas questões fundamentais. A primeira é a função do documentário enquanto forma cinematográfica. Documentários — em especial aqueles que se propõem a resgatar acontecimentos históricos — têm como responsabilidade não apenas informar, mas contextualizar. E contextualizar significa reconhecer que não existe passado sem conflito interpretativo. Quando um filme escolhe apresentar uma narrativa única e absoluta, ele abdica da complexidade e, consequentemente, enfraquece sua própria credibilidade. A segunda questão é a lembrança inevitável de como documentaristas brasileiros como Eduardo Coutinho compreendiam profundamente a natureza do ato de registrar. Coutinho sabia ouvir, sabia observar e sabia permitir que o espectador construísse sua própria relação com o que via. E é impossível não sentir certa saudade ao ver um documentário que não confia na inteligência do público, preferindo explicá-lo — ou doutriná-lo — do início ao fim.

Dizer que é intrigante acompanhar trechos dos discursos de João Paulo II é absolutamente verdadeiro. Ali está um líder carismático, firme, eloquente, que marcou época não apenas por seu posicionamento político, mas por sua capacidade de tocar emotivamente milhões de fiéis. Porém, esse valor é quase acidental no filme: ele está ali porque o material histórico é valioso, não porque a montagem, a narrativa ou a direção tenham construído algo a partir disso. Há momentos em que sentimos que o filme poderia ter sido grandioso se tivesse sido pensado com maior serenidade, buscando entender João Paulo II em toda sua amplitude — não como símbolo instrumental de uma agenda, mas como figura humana que enfrentou desafios filosóficos profundos em um mundo dividido em blocos ideológicos.

O ponto mais doloroso, no entanto, está no reconhecimento de que esse material — tão rico, tão relevante — caiu nas mãos da Brasil Paralelo. E aqui cabe uma consideração clara: quem acompanha o “Cinema Entre Paredes” sabe que a crítica aqui não se guia por espectros políticos. Quando um filme é enviesado, seja para esquerda ou para direita, o vício é o mesmo. O documentário perde sua capacidade de iluminar o real e passa a ser apenas um espelho de intenções. E o cinema, quando reduzido a instrumento de confirmação de crenças prévias, deixa de ser arte para se tornar discurso.

No fim, O Papa Que Venceu o Comunismo é ao mesmo tempo uma grande oportunidade e um grande desperdício. Havia ali material suficiente para um estudo profundo sobre fé, poder, resistência cultural e transformação histórica. O que se recebe, no entanto, é uma narrativa rígida, previsível, alinhada com um único ponto de vista, que não dialoga, não questiona, não abre espaço para pensar. E pensar — sempre — é a grande potência do cinema documental. Talvez por isso, ao final do longa, reste aquela sensação amarga: não de discordância, mas de perda. Perda de nuance, perda de complexidade, perda de cinema. E, acima de tudo, perda de uma chance de realmente compreender o mundo e seus personagens. Que saudade de Eduardo Coutinho.