Desde o início, o empreendimento de adaptar Valter Hugo Mãe (sim, esse é o nome do autor original) — cuja prosa é marcada por uma delicadeza literária, por camadas de sentidos, por dor contida e metáforas persistentes — para uma tela cinematográfica exigia coragem, ousadia e, acima de tudo, humildade diante da complexidade da obra. Segundo entrevistas do diretor e das matérias de anúncio, Rezende sabia do risco: a narrativa do livro seria “impossível” de traduzir sem perdas — o autor optou por não interferir no roteiro. O cinema, então, se propôs a reinterpretar, reconfigurar, condensar um universo interior em imagens e silêncios.
Mas é justamente aí que o filme falha — não por falhar em ambição, mas por se perder em excesso e indecisões. Logo se percebe que a transposição para a tela opta por preencher lacunas que talvez devessem permanecer vazias, por explicitar o que o livro deixava em sugestão. A adaptação parece ter medo do silêncio, ou da ambiguidade: cada mistério vem com justificativa imediata, cada sombra de dor se transforma em flashback, cada personagem tem uma história revelada com desenvoltura demais. Esse tipo de clareza excessiva — como já percebi em outros filmes problemáticos de adaptação literária — muitas vezes mata o que havia de mistério, de subjetividade e de respiração na narrativa original.
O ritmo do filme reflete esse problema. O andamento, que poderia se espargir com lentidão contemplativa e espaço para o espectador sentir a angústia, a esperança, o desconforto, rende-se a uma montagem que parece querer “dar tudo” para tornar coesa uma estrutura fragmentada. Há momentos em que se sente que estamos diante de um mosaico mal encaixado: várias vidas e dores paralelas, vários traumas, vários convites à empatia — mas juntos, mais confundem que comovem. A densidade emocional sacrificada pela tentativa de tornar tudo acessível acaba resultando numa experiência sobrecarregada, pesada e pouco orgânica.
Tecnicamente, o filme não decepciona por completo — longe disso. A fotografia assinada por Azul Serra alterna momentos belíssimos de contemplação, luz e sombra, natureza e mar, conseguindo evocar a melancolia, a solidão e a busca por redenção. As locações (gravadas entre Búzios e a Chapada Diamantina) conferem ao longa um charme visual que dialoga bem com a ideia de refúgio e pertencimento. Há potência nas imagens — mas infelizmente essa potência parece isolada, como se vivesse fora de sincronia com o corpo narrativo. A trilha sonora, de Fábio Góes, tenta acompanhar o tom poético, mas por vezes cai no melodrama exagerado, tornando algumas cenas mais manipulativas do que sinceras.
No elenco, destaca-se Rodrigo Santoro — seu Crisóstomo tinha tudo para ser um retrato pungente de dor, solidão e esperança contida. Há momentos nos quais o ator entrega olhares carregados, silêncios dolorosos, e tenta imprimir dignidade a um personagem atingido por culpa, falta e desejo. Mas o caminho que o filme impõe a ele — de revelar demais, de dramatizar em demasia, de exigir que cada emoção venha com explicação — acaba anulando parte desse potencial. As demais atuações, de Johnny Massaro, Rebeca Jamir e demais coadjuvantes oscilam entre momentos de sinceridade e cenas em que parecem meros porta-voz de discursos sobre família, dor, preconceito, redenção. A complexidade humana parece substituída por arquétipos doloridos — mas ineficazes.
Narrativamente, o filme carrega a pretensão de revisar conceitos como “família”, “paternidade”, “pertencimento”, “acolhimento” — o que é louvável e necessário. Nas intenções, vemos um filme com ambição de dar voz a marginalizados, acolher diferentes formas de existir, questionar o biológico como destino, brincar com realismo quase mágico de pertencimento. Contudo, na execução, essa ambição se transforma em uma sopa mal temperada de boas intenções: os dilemas sociais, as dores de identidade, a busca por afeto, acabam diluídos num sentimentalismo expansivo, onde cada personagem surge como porta de uma “causa” — e não como indivíduo integral.
Esse comprometimento excessivo com a mensagem — em detrimento da naturalidade — torna o filme, na prática, pouco crível. A construção da “família improvável” que o longa propõe se dá de maneira abrupta, com encontros e revelações que, por sua previsibilidade e ritmo descompassado, soam forçadas. A jornada quase mítico-poética se dissolve em sequências dramáticas previsíveis, carregadas de simbologia, pouco de humanidade concreta. O drama social e psicológico vira teatralização. E nisso reside o maior equívoco da obra: ao querer abraçar tudo — dor, redenção, pertencimento, aceitação, ancestralidade — ela se desenha como uma colcha de retalhos vastíssima, mas fria, pouco coesa e emocionalmente superficial.
Para quem, como eu, vem de um histórico de gostar de cinema clássico, de cinema denso, de cinema que gere conflito e não espere conforto fácil, O Filho de Mil Homens decepciona. Sua ambição volta-se contra si mesma. A adaptação está carregada de reverência — à obra original, ao autor, aos temas sociais, aos valores de afeto e acolhimento — e, talvez por medo de falhar com esse peso, o filme prefere explicitar demais, controlar demais, dar respostas demais. Ao fazer isso, ele mata a possibilidade de dúvida, de questionamento profundo, de ambiguidade. A narrativa se torna controlada, previsível, resignada.
O que me sobra, ao final do longa, é a sensação de desperdício — de uma matéria-prima sensível transformada em barro esticado demais: deformado, desfigurado, sem estrutura firme. O que poderia ser um filme memorável, de dor contida e beleza amarga, abre mão de sutileza em nome de uma declamação emocional ostensiva. A luz ainda é bela, os olhares ainda tocam, mas por trás disso tudo não há alma: há construção. Construção de imagem, de cena, de mensagem — mas não construção de verdade.
Em última instância, O Filho de Mil Homens revela-se um filme vulnerável a seu próprio peso. Tem pretensões profundas, intenções honestas, compromisso com um olhar de inclusão e acolhimento. Mas falha onde a arte exige leveza, discernimento e mistério: na capacidade de deixar respirar, de permitir silêncios que doem e vozes que ecoam além da declaração explícita. A grandiosidade da obra literária se esmaga na impaciência narrativa, no excesso de respostas, na pressa emocional. O resultado: um filme que tenta ser pesado, sincero e comovente — e acaba tocando pouco porque teme sentir demais.
Talvez com menos explicações, menos declarações, menos controle — e com mais confiança na força da ambiguidade — esse filme poderia alcançar sua poesia. Mas é justamente essa insegurança que o condena: ao querer agradar, persuade-se a si mesmo de que o sentimentalismo é a verdade. E terminei o filme com a impressão de que, mesmo com belo cartão de visitas, o filme tinha potencial para algo maior — e preferiu se contentar com o conforto da clareza.
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