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novembro 20, 2025

A Melhor Mãe do Mundo (2025)

 


Título original: A Melhor Mãe do Mundo
Direção: Anna Muylaert
Sinopse: Uma catadora de materiais recicláveis que decide prestar queixa em uma delegacia da mulher após sofrer abusos do marido, mas não encontra lá a proteção e ajuda que procura. Determinada a dar uma nova vida e um lar seguro para seus dois filhos, ela decide abandonar a sua casa, levando as crianças na sua carroça.


Quem lê constantemente aqui o Cinema Entre Paredes sabe que já de cara detesto muito o trabalho de Anna Muylaert — me causa um incômodo terrível qualquer filme dela, seja longa ou curta-metragem. Portanto, minha visão sobre A Melhor Mãe do Mundo (2025) já começa enviesada, e confesso que esperava o pior. E, infelizmente, não me decepcionei tanto quanto gostaria: este novo longa de Muylaert é mais do mesmo — uma repetição de cenas em um loop infinito, uma tentativa de drama social profundo cheia de boas intenções, mas patina em execução.

A trama acompanha Gal — interpretada por Shirley Cruz —, uma catadora de recicláveis que foge dos abusos do marido Leandro (Seu Jorge), carregando seus dois filhos, Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo), em uma carroça pelas ruas de São Paulo. Muylaert, que coassina o roteiro junto com Grace Passô e Mariana Jaspe, deseja transformar essa fuga em uma “grande aventura” para os olhos das crianças, preservando a inocência delas mesmo diante da crueza da realidade. 

A premissa poderia ser poderosa: violência doméstica, desigualdade, abandono, maternidade — é terreno fértil, muito à cara de Muylaert, que já costuma explorar desigualdades sociais e dinâmicas familiares em seus filmes. Contudo, a sensação durante a projeção é a de estar preso em uma repetição constante: cenas que poderiam emocionar se bem dosadas, aqui dessaturam pela previsibilidade. A narrativa insiste em revisitar os mesmos dilemas, os mesmíssimos momentos de tensão entre Gal e Leandro, sem oferecer uma evolução real ou uma virada dramática convincente. É como se Muylaert estivesse dirigindo um melodrama social em piloto automático.

Tecnicamente, há méritos: a fotografia de Lílis Soares tem momentos de delicadeza poética, capturando a textura das ruas de São Paulo, a precariedade e a dureza do asfalto, mas também a ternura nos gestos de Gal para com as crianças. A edição de Fernando Stutz, embora eficiente para manter o ritmo, falha em quebrar a monotonia: os cortes reforçam aquele ciclo de repetição, como se a mãe fugisse não só do marido, mas de si mesma, sem jamais encontrar uma rota de escape cinematográfica.

No aspecto sonoro, a trilha de André Abujamra e George Nahssen (oficialmente nos créditos) é simplesmente inexistente. A direção de Muylaert, por sua vez, parece hesitante entre expor a miséria social de forma crua e, ao mesmo tempo, idealizar a fuga de Gal como uma fábula maternal. Essa dualidade bem-intencionada, porém, é mal equilibrada: parece que ela quer nos emocionar com o realismo brutal, mas acaba optando por uma fantasia ingênua demais das ruas.

Artisticamente, trata-se de mais um filme brasileiro que, quando não fala de regime militar, fala de pobreza e insiste em mostrar o que o Brasil tem de pior. Há uma narrativa quase moralizante: estamos diante da mulher oprimida, da classe invisível, da mãe que carrega o mundo nas costas. Não que essas histórias não precisem ser contadas — certamente precisam —, mas Muylaert apresenta tudo tão repetido, tão linear, que a urgência social se dilui em longos diálogos e em cenas de “empenho maternal” que soam mais como retórica do que como verdade dramática.

A personagem Gal, por exemplo, desde sua primeira aparição na delegacia, me deixou desconfortável: seus olhos arregalados, sua dicção torta, uma estranheza que nunca ficou claro se era algo dentro da construção da personagem ou simplesmente uma limitação da atuação. Fica difícil saber se esse comportamento era proposital — como se Gal tivesse algum tipo de problema mental, uma fragilidade psicológica — ou se a atriz Shirley Cruz foi dirigida para um registro exagerado, que acaba tirando a naturalidade que a situação exigiria. Muitas vezes, ela soa exausta, mas não triste: mais caricatural do que profundamente sofrida. Isso enfraquece o arco emocional que a história quer construir.

Por outro lado, há uma grande decepção no desperdício de Seu Jorge, que já provou ser um excelente ator em outros trabalhos. Aqui, ele é completamente subutilizado. Leandro, seu personagem, aparece como a ameaça constante, o marido abusivo, mas raramente ganha profundidade — ele é vilão de papel raso, sem nuances. Não há um momento em que Seu Jorge possa mostrar outra faceta além da agressão e do desconforto. É lamentável porque a presença dele no elenco poderia ter sido uma das forças do filme, se bem aproveitada.

E, no entanto, nem tudo está perdido: uma coisa, entretanto, se destaca muito — a atuação impecável do pequeno Benin Ayo, o filho mais novo de Gal. Ele é formidável, cativante e completamente natural. Nos momentos em que ele sorri, assusta, ou simplesmente observa a mãe com olhos curiosos, a câmera o ama, e nós também amamos. Benin carrega uma verdade infantil tão genuína que é impossível não se emocionar. Ele tem uma espontaneidade rara para alguém tão jovem, e sua presença consegue realmente humanizar os dilemas de Gal de modo autêntico. É impressionante como ele consegue preencher a tela com sua inocência e vulnerabilidade.

Infelizmente, a força de Benin não é suficiente para equilibrar os problemas mais estruturais do filme. A direção de Muylaert parece depender demais desses momentos “fofos”, em vez de construir um crescendo dramático mais sólido. A cada nova cena, esperamos um grande desfecho, uma transformação real para Gal, para seus filhos, para a fuga — mas o filme parece se contentar em permanecer naquele limbo: a aventura que nunca chega a ser aventureira, o drama que nunca se rompe completamente.

No fundo, A Melhor Mãe do Mundo soa como um exercício reiterado da cineasta em revisitar seus temas de sempre — a desigualdade social, a maternidade periférica, a violência — sem inventar algo novo para si mesma. É um filme que pode tocar alguns espectadores, especialmente aqueles sensíveis ao tema da maternidade negra, da catadora, do abandono estrutural, mas para mim, que já leio esse tipo de narrativa em quase todas as obras de Muylaert, falta frescor, falta coragem para romper a própria fórmula.

O desfecho do longa, em vez de oferecer uma redenção clara, parece se resignar a uma ambiguidade simplória: Gal segue, as crianças seguem, e a cidade permanece indiferente. Quem esperava uma virada mais radical ou uma reflexão mais profunda talvez saia frustrado. É como se Muylaert tivesse partido de uma boa ideia, mas desistido de escavar até o osso, preferindo mostrar a dor sem realmente mergulhar no abismo.

Em suma, A Melhor Mãe do Mundo é um filme que se pretende político, doloroso e inspirador, mas que peca por um melodrama repetitivo, por personagens subdesenvolvidos (como Leandro) e por um roteiro que gira em torno de si mesmo sem ganhar densidade. A atuação de Benin Ayo é, sem dúvida, o ponto mais alto — ele encapsula a esperança frágil desta fuga —, mas isso não basta para salvar um filme que, para mim, reafirma todas as minhas críticas ao cinema de Muylaert: bom discurso, mas pouca invenção. No final, a “melhor mãe do mundo” acaba sendo apenas mais uma personagem em um filme que não consegue se libertar do próprio círculo narrativo.