Edward Berger mais uma vez acerta ao mergulhar no mundo camaleônico do vício e da identidade com Balada de um Jogador. Não é tão direto e moralmente incisivo quanto Conclave, mas há algo deliciosamente sinuoso e teatral neste filme — um suspense psicológico ambientado em Macau que se desdobra como uma ópera pop carregada de humor, exagero e melancolia.
A figura de Colin Farrell como Brendan Reilly, também conhecido como “Lord Doyle”, é o coração pulsante da narrativa. Farrell entrega uma performance impressionante, quase toda a alma do filme reside na sua metamorfose constante. Ele habita seu personagem com uma combinação de charme autoengrandecedor e vulnerabilidade corrosiva, oscilando entre bravata e desespero, até mesmo em cenas silenciosas, em que apenas o olhar ou o pequeno tremor em suas mãos revelam o abismo emocional em que ele está submerso.
Mas se Farrrel segura o drama, é Tilda Swinton quem injeta o filme com uma energia de comicidade deliciosamente insana. Sua Cynthia Blithe — marcada pelo tom excêntrico, maneirismos inesperados e uma tênue aura de farsa — se move por Macau como um investigador-cartoon persistentemente à espreita, rastreando Doyle com obsessão quase burlesca. Swinton monta uma espécie de número performativo: ela é simultaneamente inquisitiva e estranhamente divertida, conferindo leveza e estranhamento à narrativa. Há momentos em que suas interações com Farrell têm tintas de teatro absurdo, quase como se ela fosse parte de uma caricatura elegante, sem jamais cair no ridículo gratuito — o que demanda um certo cru da atuação, e ela abraça isso plenamente.
A ambientação de Macau, por sua vez, funciona como personagem por si só. A fotografia de James Friend capta a opulência dos cassinos e hotéis com uma riqueza visual impressionante: estruturas grandiosas, espelhos que reflitam múltiplas versões de Doyle, luzes noon que parecem pulsar como batimento cardíaco. É perceptível que Berger e Friend estudaram a cidade a fundo — segundo relatos de bastidores, tiveram uma imersão prévia para absorver a atmosfera caótica e exuberante dos ambientes.
A trilha sonora de Volker Bertelmann reforça essa sensação quase hipnótica: em vez de sublinhar as emoções de forma óbvia, a música cria um pulso constante, uma vibração sonora que parece ampliar a tensão entre o tédio da vida cotidiana e a euforia fugaz da aposta. A montagem de Nick Emerson acompanha esse fluxo, muitas vezes criando cortes sensoriais que refletem o tremor interno de Doyle — não é apenas sobre ganhar ou perder, mas sobre existir no fio entre o real e o alucinatório.
Narrativamente, o filme balança entre o estudo íntimo da autodestruição de Doyle e uma espécie de fábula metafísica. Há uma figura central para ele: Dao Ming (interpretada por Fala Chen), uma mulher misteriosa que parece oferecer a ele uma via de redenção. No entanto, à sua sombra está Cynthia, com sua comicidade ácida e sua missão quase cômica de ir até o fim para desenterrar o passado de Doyle. Essa tensão entre os dois polos — redenção mística e perseguição cômica — é um dos elementos mais fascinantes do filme. Não é sempre que você vê um thriller psicológico tão carregado de brilho poético conviver com momentos tão leves de humor negro, e a presença de Swinton ajuda a manter esse equilíbrio delicado.
Do ponto de vista técnico, Berger demonstra domínio: suas escolhas visuais e de enquadramento transformam os cassinos em labirintos interiores, espelhos d’água e corredores subterrâneos se tornam metáforas físicas para o estado mental de Doyle. A cidade de Macau, com sua dualidade de grandiosidade e vazio, serve como moldura perfeita para a crise do protagonista — Berger literalmente transforma o palco da aposta em um espelho da própria alma do personagem.
O desempenho de Farrell e a comicidade de Swinton se completam de forma improvável, mas eficaz: enquanto ele afunda cada vez mais em seu mundo de dívidas, mentiras e ilusões, ela, de modo teatral e excêntrico, persegue tanto a verdade quanto sua própria obsessão. Essa dinâmica contribui para que o filme nunca seja totalmente sombrio: há sempre um sopro de leveza perturbadora, aquele riso nervoso que surge no meio do perigo.
Se há uma crítica pertinente, talvez seja a ambição dual de Berger em mesclar um estudo realista de vício com elementos simbólicos de redenção, o que às vezes gera um desencontro tonal. Mas, para mim, isso não diminui o charme do filme — ao contrário, reforça a ideia de que estamos diante de algo que aposta alto, não apenas em fichas de cassino, mas em significados.
Em suma, Balada de um Jogador é um filme de contrastes: é intenso, poético, desesperadamente cômico — e, sobretudo, humano. Edward Berger revela mais uma vez sua capacidade de construir atmosferas densas e personagens com falhas tão estranhas quanto sedutoras. E Colin Farrell, com toda sua vulnerabilidade, e Tilda Swinton, com sua comicidade afiada, formam uma dupla improvável, mas memorável, capaz de transformar um thriller psicológico em algo quase como uma tragicomédia noturna. Saio com a sensação de ter assistido a um jogo arriscado — e, por isso mesmo, inesquecível.
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