Anêmona, o primeiro longa dirigido por Ronan Day-Lewis e escrito em parceria com seu pai, Daniel Day-Lewis, chega com o peso — e o ruído — típicos de uma família que resolveu transformar relações privadas em cinema público. Não se pode negar a audácia básica do projeto: chamar de volta às telas um ator cuja aposentadoria foi celebrada como definitiva é, por si só, um gesto cinematográfico carregado de significado; fazê-lo voltar como coautor do roteiro e deixando o filho dirigir é um gesto que mistura legado, vaidade e mitologia pessoal. O resultado, infelizmente, é ambíguo e, em vários momentos, irritante — não por falta de ambição, mas por excesso de autocomplacência. Como quase todos os filmes com Daniel Day-Lewis (e aqui ele assina o roteiro pra piorar), é um filme chatíssimo; essa frase, dura como uma lâmina, tenta resumir a frustração que tenho com a insistência do filme em se contemplar até a exaustão.
Tecnicamente, Anêmona é magnífico — e é justamente aí que mora a contradição mais aguda da obra. Ben Fordesman, à frente da fotografia, constrói imagens que parecem arrancadas de um catálogo de paisagens interiores: o verde úmido da floresta ganha saturação dramática, closes obsessivos transformam o rosto em território, e a câmera, por vezes, se comporta como testemunha implacável de um luto que não sabe se existe por direito ou por performance. Esteticamente muito bonito; não há como negar: cada quadro foi pensado e esmerado, com uma direção de arte que equilibra rusticidade e simbolismo — figurino por Jane Petrie e design de produção de Chris Oddy trabalhando em sintonia para criar uma cabana que é cenário e personagem. Quando o filme decide respirar pela imagem, há momentos de pura poesia visual.
A trilha sonora é fantástica. Bobby Krlic (conhecido por trabalhos que oscilam entre o minimalismo atmosférico e pulsações eletrônicas estranhas) assina um score que invade a pele do espectador e o coloca numa frequência incômoda: pulsações, drones, frios sinfônicos e pequenos ruídos orgânicos que, em teoria, deveriam sincronizar o corpo do público com o estado interior dos personagens. O problema é que a trilha, por sua potência, muitas vezes atropela o filme, impondo um ritmo que não é sempre o do texto — e quando o roteiro vacila, a música tenta preencher o vazio, transformando o que poderia ser silêncio reflexivo em um ruído insistente. Ainda assim, como peça isolada de criação sonora, é memorável e merece todos os louvores possíveis.
No front das atuações, Daniel Day-Lewis entregou a sua presença característica: toda a economia de gesto que o consagrou está lá, a maneira como reduz o interior a um gesto mínimo que reverbera. Há mérito nisso — seu Ray Stoker (ou seja lá qual for o nome que carregue) é, por instantes, uma das poucas coisas que prendem a atenção. Sean Bean e Samantha Morton aparecem como contrapesos sólidos, mas são subutilizados pela escritura: personagens com potencial dramático que servem mais como espelhos do hermetismo do protagonista do que como seres autônomos. As melhores sequências com a família funcionam porque há tensão física e silêncio óbvio entre atores conhecidos; nas piores, parecem meros adereços de uma mise-en-scène que prefere contemplar o próprio ego do que desenvolver relações.
O roteiro, assinado pelo pai e pelo filho, é o grande calcanhar de Aquiles. Há aqui um esquema narrativo que tenta equacionar passado traumático, culpa filial e reconciliação — temas clássicos, claro —, mas a maneira como a trama se desenrola é frequentemente redundante: repetições de situações, diálogos que afirmam mais do que interrogam, e um desejo evidente de transformar cada paisagem emocional em uma metáfora literal. Isso dá ao filme uma qualidade de ensaio estendido, onde o espectador é convidado a testemunhar rituais íntimos sem que o filme ofereça novas revelações sobre por que aqueles rituais existem. A sensação é de que muito do que poderia ser subtexto foi explicitado até perder força, e que o silêncio — recurso poderoso — é preferencialmente substituído por monólogos ou por cíclicas imagens de lembrança.
A montagem de Nathan Nugent merece menção porque, quando o ritmo funciona, ele sabe costurar cenas longas com sobriedade; porém, há cortes que enfatizam a teatralidade do conflito em vez de aprofundá-lo. O design de som é valente — e por vezes agressivo —, o que reforça a sensação de que o filme prefere ser sentido do que entendido. Em festivais, a recepção foi mista: críticos elogiaram a ambição estética e a performance de Day-Lewis, mas apontaram a fragilidade do roteiro como fator limitante para o impacto emocional pleno da obra. Essas leituras estão corretas: Anêmona é um filme cuja alma técnica supera sua narrativa.
Há um aspecto moral e geracional que me incomoda: a transformação de um retorno pessoal em um gesto público, num contexto em que o nome da família Day-Lewis serve tanto como garantia de qualidade quanto como um selo que dificulta a autocrítica. Quando um pai e um filho se escrevem e se filmam mutuamente, cria-se um campo de afetos que exige brutal honestidade artística para funcionar — caso contrário, a obra vira espécie de relicário autoindulgente. Anemone caminha nessa linha tênue e, muitas vezes, tropeça por não ousar cortar o próprio mito. Ainda assim, não é filme sem virtudes: personagens bem recortados, cenas de arrebatamento visual e uma trilha que, isolada, poderia fazer a carreira do compositor.
Em suma: Anêmona impressiona nos olhos e nos ouvidos, mas entedia em sua própria palavra. É um filme para quem aprecia cinema autoral bem vestido — fotografia de assinatura, direção de arte milimétrica, som e música que mordem — e para quem aceita permanecer em um espaço narrativo que se recusa a esclarecer-se. Para quem procura alívio dramático, surpresa narrativa ou uma trama que realmente evolua, há frustração à vista. É um trabalho que provoca respeito por sua ambição e irritação por sua autorreferência; um objeto belo e, ao mesmo tempo, fatigante — digno de estudo, mas não de afeição incondicional. Se me pedem uma conclusão pessoal, diria que Anêmona é a prova de que nem sempre a soma de grandes nomes e belas imagens resulta em cinema convincente: às vezes, ela apenas revela a vaidade fina que sobra depois dos aplausos.
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