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novembro 23, 2025

A Vizinha Perfeita (2025)

 


Título original: The Perfect Neighbor
Direção: Geeta Gandbhir
Sinopse: Imagens de câmeras policiais revelam como uma antiga briga de vizinhos acabou em morte neste documentário sobre medo, preconceito e a lei de legítima defesa nos EUA.


A primeira obrigação de qualquer crítica diante de A Vizinha Perfeita (The Perfect Neighbor, 2025) é admitir o desconforto: este não é um documentário que nos entretenha com mistério ou acelere nossa pulsação por espetáculo — é, antes, uma operação meticulosa de olhar que transforma registros oficiais em cinema que fere. Geeta Gandbhir assume uma posição editorial corajosa e clara: o filme é quase todo construído a partir de imagens pré-existentes — câmeras corporais da polícia, gravações de celular, imagens de interrogatório e arquivos públicos obtidos por meio de pedidos legais — e dessa limitação autoimposta nasce a sua força brutal e ética. O roteiro parece não existir na forma tradicional; o “roteiro” é o encadeamento cronológico e a seleção precisa dos fragmentos que Gandbhir e sua equipe escolhem para compor a narrativa do que levou à morte de Ajike “AJ” Owens, e o que veio depois. 

Técnica e estética se entrelaçam com fins explícitos: Alfredo De Lara, responsável pela direção de fotografia, enfrenta o desafio de transformar material heterogêneo e por vezes de baixa resolução em uma continuidade visual coesa. Não há aqui a retórica do enquadramento bonito pelo enquadramento bonito; De Lara e a equipe de pós-produção tratam cada arquivo como peça de um mosaico que deve permanecer reconhecível, sem adulterar a verdade dos registros. A iluminação e a correção de cor são quase invisíveis, porque o filme exige que o espectador perceba as imagens como documentos — e é essa honestidade técnica que aumenta a credibilidade do que vemos. A trilha de Laura Heinzinger funciona com parcimônia: não manipula as emoções com trilhas grandiloquentes, mas acerta ao pontuar o que o silêncio do arquivo não diz, respeitando a delicada linha entre contextualizar e explorar. 

O papel da montagem em A Vizinha Perfeita é digno de estudo. Viridiana Lieberman, na cadeira de edição, costura cerca de 30 horas de gravações em uma sequência que, embora linear, nunca se limita a uma cronologia mórbida e expositiva — ela monta expectativas, suspende julgamentos e, por vezes, força o espectador a conviver com a ambiguidade. Essa escolha editorial é política: ao não oferecer narração extensa nem depoimentos técnicos que “explicam” tudo, Gandbhir deixa visível o mecanismo institucional — as chamadas ao 911, as respostas policiais, a linguagem da autoridade — e como esse aparato atua de maneira desigual sobre corpos racializados. Ao final, a montagem não só reconstrói os fatos, mas converte o material bruto num argumento visual sobre viés, medo e legislação. 

Artisticamente, o filme desliza entre o jornalístico e o litúrgico. Há cenas em que a repetição de imagens — versões levemente distintas do mesmo acontecimento, filmadas por ângulos diferentes — ganha o peso de uma liturgia fúnebre: a desaceleração, o eco de vozes em off gravadas em instantes posteriores, a ranhura do ruído digital tornam palpável o luto coletivo. Gandbhir não privilegia o escândalo: resiste à economia do choque que domina o true crime e, em vez disso, opta por uma argúcia moral e formal. Essa resistência rende ao filme momentos de cinema puro — sequências em que a câmera policial, originalmente pensada para monitorar e proteger, passa a revelar a intimidade comunitária, as risadas das crianças, as rotinas que antecedem o desastre. É um gesto que subverte o uso institucional da imagem: transformar vigilância em testemunho. 

No campo ético, A Vizinha Perfeita apresenta-se exemplar e problematizante ao mesmo tempo. Gandbhir trabalhou em estreita colaboração com a família de AJ — o filme deixa claro que há uma intenção de respeito e memória — e, ainda assim, não há concessões fáceis à sensibilidade do público. O filme cobra: exige que a plateia encare a banalidade dos atos racistas e o modo como leis e hábitos culturais (como as doutrinas do “castle” e do “stand your ground”) criam zonas de impunidade. A narrativa esfria propositalmente a tentação do julgamento simplista; ao expor o processo institucional, o filme convida o espectador a interrogar seu próprio aparato de crenças. Assim, a obra dialoga diretamente com debates públicos sobre legislação, segurança e raça sem transformar o caso em espetáculo de culpa ou redenção imediata. 

Há, claro, momentos em que a frieza formal do filme pode ser interpretada como distante — e essa crítica é legítima: espectadores que busquem narração emotiva ou reconstruções dramáticas sentirão falta de empatia explícita. Mas essa mesma frieza é também a sua maior coragem. Gandbhir demonstra que a potência ética de um documentário pode residir na sua disciplina formal: ao recusar artifícios melodramáticos, ela obriga o público a olhar para a responsabilidade coletiva. Não é cinema confortável; é cinema necessário. 

Se fosse preciso resumir o valor de A Vizinha Perfeita em termos de legado cinematográfico, diria que o filme inaugura um modo de fazer documentário de denúncia que não abdica da invenção estética. Geeta Gandbhir assina uma obra que dialoga com a tradição do cinema-ensaio e com a urgência do jornalismo investigativo — e faz isso sem perder elegância formal. Ao abrir mão da retórica fácil, ela constrói um filme que se instala na mente do espectador, que persiste como pergunta e como acusação. É um documentário que permanece depois da tela: não nos dá respostas prontas, mas nos deixa com a sensação inquietante de que, em muitos bairros e tribunais, o “perfeito” vizinho é um rótulo que oculta injustiças muito menos perfeitas. Em tempos em que a imagem costuma anestesiar, A Vizinha Perfeita recupera a imagem como instrumento de memória e de resistência — um filme que não apenas documenta uma tragédia, mas convoca mudanças. E isso, no cinema e fora dele, tem peso.