Desde o primeiro frame, Quatro Paredes tenta se apresentar como uma crônica íntima e relevante sobre a busca de justiça de Shiori Ito após uma agressão sexual. Lançado em festivais como Sundance (estreia em 20 de janeiro de 2024) e indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2025, o filme acumula reconhecimentos internacionais de peso — incluindo um Peabody Award e prêmios em festivais como Zurich e CPH:DOX. Esses méritos, contudo, contrastam com suas fragilidades estruturais e emocionais aqui expostas.
Tecnicamente, o documentário se mostra excessivamente fragmentado. A montagem parece um quebra-cabeças desmontado, onde cenas pessoais, depoimentos e reportagens televisivas convivem de forma caótica, sem uma progressão fluida ou hierarquia clara. A alternância entre arquivos de iPhone, gravações secretas, entrevistas televisivas e trechos formais chega a causar vertigem – resta a sensação de um mosaico disperso, onde os acontecimentos parecem espalhados, e não articulados.
Narrativamente, o núcleo central – a agressão sexual perpetrada por Noriyuki Yamaguchi – nunca é explicado com clareza suficiente. Para espectadores que desconhecem o panorama político e jurídico do Japão, os personagens ligados ao poder ficam soltos; figuras como Yamaguchi, tão próximas de Shinzo Abe e da cúpula policial, sequer são apresentadas com o mínimo de contextualização necessária. Ainda, o vai-e-vem entre instâncias judiciais — fases investigativas interrompidas, decisões finais adiantadas ou suspensas — acontece sem explicação cronológica; o espectador fica sempre tentando entender quando a decisão final realmente ocorre, se é criminal ou civil, se há condenação definitiva ou se tudo continua em aberto.
No campo emocional, talvez o maior problema do filme seja a própria condutora da narrativa: Ito, mesmo como vítima e protagonista, raramente expressa sentimentos. Chorar é uma ocorrência rara, e fora isso, sua presença parece mais seca — de certa forma, mais semelhante a uma ativista obstinada do que a alguém que sofreu uma violação e precisa empatia. Ainda que essa contenção possa ser atribuída à cultura japonesa de discrição emocional, o efeito prático é devastador para um documentário que deveria mobilizar o espectador pela força dos sentimentos. A frieza impede que nos identifiquemos verdadeiramente: não sentimos compaixão, não sentimos indignação com o acusado, e muito menos experimentamos a revolta diante de uma justiça tardia e falha.
Por exemplo, ao contrapor depoimentos de testemunhas — como o motorista de táxi ou o porteiro do hotel — às passagens em TV e Aos registros em vídeo, o filme perde a oportunidade de criar tensão dramática ou empatia dramática; o efeito é mais informativo do que emocional. Também, em vários momentos, a sequência de cenas salta abruptamente entre cenas íntimas e trechos parlamentares ou judiciais, mas sem uma linha de montagem que guie o espectador por esses conflitos de maneira lógica ou orgânica.
Do ponto de vista artístico, embora haja certa autenticidade na câmera subjetiva — como em cenas nas quais Ito grava a si mesma ou escuta testemunhas —, falta coesão estilística. A alternância entre o iPhone, o vérité e os trechos de mídia torna-se um excesso de estilos concorrentes. O cinema documental pode ser poderoso quando encontra uma linguagem única – aqui, no entanto, ele se dispersa em narrativas múltiplas, mas soltas.
Não podemos ignorar o valor histórico e político: o filme registra uma luta que ignora tabus, confronta leis arcaicas que exigiam prova de violência física, e mostrou ao mundo o despertar do movimento #MeToo no Japão, com impacto real na legislação e na percepção pública. Ito virou figura símbolo, recorreu ao livro “Black Box” (2017) e agora, com o filme, leva a discussão ainda mais fundo. Mas o que podia ser uma potência dramática se apresenta pouco mais que um registro documental disperso, que falha em nos conectar emocionalmente com a dor e a resistência da protagonista.
Em resumo, Quatro Paredes é um documentário de importante relevância, mas falha profundamente em sua montagem narrativa e emocional. A confusão editorial, o distanciamento da narrativa e a ausência de dimensão sentimental comprometem o impacto. O filme tem valor histórico e simbólico, mas seu apelo cinematográfico se perde num labirinto de estilos e fragmentos, sem permitir ao espectador experimentar, verdadeiramente, a dor, a injustiça e a força de uma vítima que se tornou símbolo de mudança.
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