Kaizen (Kaizen: 1 An Pour Gravir l’Everest, 2024), dirigido por Basile Monnot, é daqueles documentários que parecem nascer de um paradoxo: como transformar uma jornada hiperconectada — afinal, o protagonista é um youtuber — em uma experiência cinematográfica que respira, pulsa e, sobretudo, vibra com o tempo e o espaço das montanhas? A resposta de Monnot é investir num desenho formal de alto impacto — fotografia vertiginosa, desenho de som cuidadoso, músicas estrategicamente posicionadas — e, ao mesmo tempo, aceitar a gramática acelerada da internet como motor de ritmo e de montagem. O resultado é um filme que se acomoda com folga na sala de cinema: longo (são 2h40), mas jamais arrastado; épico nas paisagens, íntimo no arco de personagem; e tão empolgante que a duração, honestamente, evapora.
O ponto de partida é simples e, por isso mesmo, potente: Inoxtag, 21 anos, decide, em um ano exato, tornar-se alpinista e escalar o Everest. A simplicidade do enredo dá lugar a um desenho dramático meticuloso, dividido em etapas de formação física e técnica. O roteiro — assinado por Monnot, Quentin Eiden e Samy Bouyssié — estrutura a progressão como um “jogo” de níveis crescentes: do primeiro contato com a alta montanha às escaladas intermediárias, até a aproximação do Nepal e a subida final ao cume. É um esqueleto narrativo que serve tanto ao fã de conteúdo do criador quanto ao espectador de cinema à procura de uma jornada de personagem.
Tecnicamente, Kaizen é um assombro visual. As sequências no maciço do Mont-Blanc, nos Alpes suíços e, claro, no Himalaia, são compostas com uma mistura de grande angular e teleobjetivas que explora escala e compressão do relevo; há planos aéreos que “costuram” cumes e geleiras com fluidez, e close-ups que capturam o cansaço, o suor congelado, a respiração curta — detalhes que dão materialidade ao esforço. Em IMAX, imagino, o filme ganhe ainda mais corpo: os frames pedem tela grande, tanto pela profundidade de campo no gelo e nas arestas quanto pelo recorte das cristas contra um céu que, no topo do mundo, parece feito de outra matéria. Não é exagero dizer: é um daqueles trabalhos de imagem que justificam a ida ao cinema por si só.
A montagem é, sem rodeios, brilhante. Quentin Eiden veste o corte com a cadência do YouTube — ganchos a cada bloco, compressões temporais agressivas, inserts informacionais — e a transplanta para um organismo de longa-metragem. O milagre é que a velocidade não esfarela a dramaturgia: os elos causais continuam claros, os microconflitos (aclimatação, clima, logística, fadiga) se acumulam e explodem no tempo certo, e a alternância entre bastidores, treinos, preparação mental e travessias em altitude cria uma superfície narrativa que lembra mais um filme de aventura do que o “clássico” documental observacional. Há respiradouros: silêncios que deixam o vento falar, passagens em que a música abre espaço para o ruído seco dos grampos mordendo o gelo, e pequenas pausas que devolvem ao corpo do espectador a chance de recuperar o fôlego. É um raro caso em que a agilidade digital encontra disciplina cinematográfica.
Monnot — cuja filmografia inclui publicidade e trabalhos de alto requinte formal — orquestra tudo com olhar de anunciante e paciência de documentarista. A câmera nunca parece “turística”: há cálculo, há eixo, há consciência de posição e risco. Quando se aproxima, é para capturar a expressão exata do medo ou da determinação; quando recua, é para inscrever a figura humana em sua diminuta escala, um pontinho colorido em um oceano mineral. A direção abre espaço para que a presença de Inoxtag, extremamente carismático, faça o resto: a energia dele contamina a tela, mantém a curva dramática sempre em alta e transforma tarefas humildes — arrumar o equipamento, checar nós, ajustar crampons — em pequenos rituais de suspense. Não surpreende que tanta gente tenha “saído do filme” procurando segui-lo nas redes: o carisma opera aqui como vetor de identificação e motor de expectativa.
Há ainda a dimensão pedagógica, inteligentemente enfiada entre as dobras do espetáculo. A tutoria técnica de alpinistas experientes aparece pontuada por testes de esforço, protocolos de segurança e, sobretudo, por uma ética de equipe. A relação com guias e sherpas — por mais que o filme não seja um tratado sociológico — não é apagada; e, quando as tensões desse universo vêm à tona no debate público (turistificação do Everest, oxigênio suplementar, indústria do cume), Kaizen não se acovarda totalmente: assume-se como peça de entretenimento massivo e abraça a discussão como ruído de fundo de um fenômeno pop sem precedentes. O dado é incontornável: a estreia francesa mobilizou centenas de milhares de pessoas em pouquíssimo tempo, e o lançamento online multiplicou a audiência em escala recorde, levando a obra a transbordar a bolha da montanha e entrar no imaginário mainstream.
Em termos de desenho sonoro, o filme é meticuloso: o ranger da neve sob as botas, o sopro do vento canalizado pelas arestas, o silêncio particular das madrugadas de subida — tudo compõe um mapa sensorial da altitude. A trilha musical, aplicada sem sobrecarregar, aceita a função de empurrar a cadência nos momentos-chave (a aproximação do cume, a chegada a acampamentos, as recapitulações de etapa) e recua quando a tensão natural do ambiente já basta. É uma curadoria que conversa com a linguagem do vídeo online — trechos curtos, refrões que “grudam” —, porém adaptada a uma acústica de sala, com dinâmica e reverb que dão corpo às frequências graves do vento e do gelo.
Do ponto de vista narrativo, a curva de Inoxtag é clara: do “não atleta” ao corpo treinado, das dúvidas iniciais a uma ética de disciplina que sustenta a travessia. O título não é escolha aleatória: “Kaizen” — o princípio da melhoria contínua — é traduzido em microvitórias visíveis (melhora na aclimatação, eficiência em manobras, resistência a hipóxia), mas também em capitulações necessárias (limites escancarados pelo clima, pela fisiologia, pela logística). Quando a narrativa alcança o Everest, o filme já construiu o vocabulário físico e emocional necessário para que cada passo em gelo fino “resseque” a boca do espectador. O último ato tem a carpintaria dos grandes clímax de aventura: alternância de planos abertos que sublinham a insignificância humana e close-ups que depositam todo o drama na microexpressão do rosto sob a máscara. É cinema por todos os poros.
Contexto importa — e Kaizen nasceu imerso nele. A première no Grand Rex, em Paris, com lotação maciça e presença de influenciadores, explica a dimensão cultural do projeto: não é “apenas” um documentário de montanha, mas um evento que desloca fronteiras entre plataforma e sala. Dias depois, números de ingressos e visualizações viraram pauta, provocando um curto-circuito nas conversas sobre janelas de exibição, regulação e o futuro do cinema francês diante de fenômenos nativos da internet. É irônico e saudável que um filme tão confortável na tela grande venha justamente do ecossistema do streaming e do vídeo curto.
A fotografia — provavelmente operada por uma equipe híbrida de montanhistas/filmers — executa soluções de câmera que evitam os vícios do “conteúdo de ação”: não há tremedeira gratuita, não há drone usado como bengala narrativa, não há slow motion desnecessário. Quando o drone entra, é para compor, não para exibir. Quando o handheld treme, treme com sentido (proximidade do abismo, exaustão do operador, vento cortante). A correção de cor privilegia os azuis glaciares e a pele bronzeada/queimada da altitude, recortando bem os equipamentos fluorescentes que guiam o olhar no branco infinito: visualmente, é um filme “legível”, que hierarquiza informação no quadro e convida o espectador a entender a geografia do risco.
Outro acerto é a maneira como Kaizen organiza o seu “mundo”: há um léxico técnico mínimo (cordas, ancoragens, progressão, checagens) que o filme ensina sem virar manual; há personagens coadjuvantes que cumprem papéis dramáticos claros — o mentor de montanha, o preparador físico, os parceiros de escalada — e cujas presenças, mesmo quando breves, estabilizam a ideia de equipe. Ao final, o espectador não apenas “torce” pelo protagonista; compreende o sistema que o sustenta e os limites de sua autonomia. Em termos de ética documental, é relevante que o crédito e a visibilidade dos profissionais de suporte apareçam; e, embora parte da crítica tenha acusado o filme de “embelezar” a indústria do Everest, o registro do trabalho coletivo está lá, mesmo quando o recorte opta por privilegiar o arco heroico de Inoxtag.
No plano industrial, Kaizen é caso de estudo. Produzido pela IDZ Prod, escrito por um núcleo que cruza o “saber de internet” com artesanato cinematográfico, e assinado por Monnot com mão segura, o filme fez barulho onde importa: bilheteria relâmpago em sessão-evento e explosão no YouTube, números suficientes para inflamar debates sobre concorrência com o circuito, sobre formatos híbridos de lançamento e sobre critérios de legitimação do “cinema de youtuber”. Toda essa conversa pode render tese; o que interessa aqui é constatar que a obra sustenta esse barulho artisticamente, com soluções formais consistentes e uma engenharia de ritmo que poucos documentários recentes arriscaram.
E sim: é um documentário fantástico e empolgante. A energia contagiante de Inoxtag — que no filme salta da tela como se estivesse ao nosso lado na poltrona — cria um pacto afetivo imediato. É fácil sair da sessão com vontade de seguir o protagonista, de ver “o que veio depois”, de revisitar trechos e bastidores, de procurar as escaladas intermediárias que pavimentaram o caminho. Essa porosidade entre sala e plataforma, longe de diluir a experiência, a amplia: o cinema recebe o que o digital tem de mais vital — urgência, presença, comunidade —, e devolve com aquilo que só a sala grande dá — escala, imersão, tempo para sentir.
Há falhas? O filme não se propõe a um ensaio crítico sobre a indústria do Everest — e, portanto, passa rápido por dilemas mais espinhosos do alpinismo comercial contemporâneo. A opção é legítima: Kaizen sabe que é um relato de formação e vitória pessoal, não um dossiê. Ainda assim, quando a câmera encosta nas filas em gelo, nos acampamentos superpovoados, nos rituais de fixação de cordas, o registro do “sistema Everest” emerge por si, como camadas de um cenário de fundo. A escolha de seguir adiante, sem mergulhos analíticos, mantém o foco da jornada e preserva o ritmo: e é justamente esse ritmo — essa pulsação quase “de aventura” — que faz com que as 2h40 voem.
Por fim, vale sublinhar o quão bem Kaizen está talhado para a sala: imagens que pedem altura e largura, ruídos que reclamam caixas acústicas, e uma montagem que sabe dosar clímax e respiro para a comunhão coletiva da plateia. É um filme que funciona no streaming, claro — hoje está disponível nas plataformas do ecossistema Disney —, mas seu lugar natural é o escuro da sala, onde o vento parece gelar as mãos e o branco infinito do Himalaia puxa o olhar para dentro da tela.
Concluo com a impressão que ficou dias depois: Kaizen devolve ao cinema de aventura documental o senso de maravilhamento e de urgência emocional que, muitas vezes, a fórmula gasta de outros títulos parece ter perdido. Há inteligência formal, há respeito pelo ofício de filmar em condições limite, há uma aposta estética que não tem medo de ser popular. E há — sobretudo — uma narrativa de superação que nos puxa para a beira da poltrona, que aperta a garganta quando a altitude cobra caro, e que explode numa catarse calorosa quando a jornada encontra seu ápice. Terminei de assistir ao filme contaminado por essa energia; e, como muita gente, me peguei seguindo Inoxtag depois, não por hype, mas porque o filme me convenceu de que, às vezes, o impossível é apenas uma longa sequência de pequenos passos filmados com grandeza.
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