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agosto 11, 2025

Cicada (2021)

 


Título original: Cicada
Direção: Matthew Fifer, Kieran Mulcare
Sinopse: Ben é um jovem bissexual. Ele se assume para o mundo e desenvolve uma relação intensa com Sam, um homem negro que enfrenta feridas profundas em sua própria vida. Conforme o verão avança e a intimidade entre eles cresce, o passado de Ben começa a vir à tona.


Cicada (2021, nos créditos e no circuito de lançamento também aparece como 2020) é um desses dramas indie que chegam mansamente, com a textura do improviso e um olhar muito íntimo para seus personagens, mas que, ao final, parecem deliberadamente contidos — como se preferissem sussurrar quando a matéria pede um pouco mais de fôlego. Dirigido por Matthew Fifer e Kieran Mulcare, o filme nasce de uma experiência autobiográfica do próprio Fifer e se organiza ao redor de um romance de verão em Nova York entre Ben (o próprio Fifer), bissexual assumido, e Sam (Sheldon D. Brown), um homem negro que ainda não saiu do armário para o pai e carrega o trauma de um episódio de violência urbana. A trama acompanha o crescimento dessa intimidade enquanto fantasmas do passado começam a reclamar seu espaço. 

Há uma ambição honesta no gesto: Fifer coescreve o roteiro com o parceiro de cena, Brown, cruzando suas vivências para compor uma dramaturgia que pretende ser, antes de tudo, testemunhal. O personagem de Ben, por exemplo, enfrenta os ecos de um abuso sexual na infância — lembranças acionadas por notícias sobre o caso Jerry Sandusky, que ocupou o noticiário no início da década passada. Esse ponto de contato direto com acontecimentos reais dá ao filme um substrato de veracidade, aproximando espectador e personagem por uma lógica quase documental. 

Do ponto de vista técnico, Cicada adota um registro visual econômico, com câmera que privilegia planos relativamente longos, handheld e composições discretas, um vocabulário típico do indie nova-iorquino recente. Esse desenho imprime naturalismo às interações e evita grifos pictóricos, além de se articular bem com o trabalho de atuação, que é todo calcado em pausas, silêncios e um humor seco que surge aqui e ali. A fotografia é assinada por Eric Schleicher; a montagem, dividida entre Kyle Sims e o próprio Fifer, sublinha a ideia de fluxo contínuo e intimista da narrativa; e a trilha musical original, de Gil Talmi, opera em regime de contenção, pontuando nuances afetivas sem tentar colorir o que a encenação propositalmente deixa em suspenso. 

Esse naturalismo encontra sua expressão mais eficiente nas caminhadas por Nova York, na luz estival que cobre os corpos e nos pequenos gestos de cuidado entre Ben e Sam. Há uma beleza sincera em como o filme observa a cidade e suas rotas de afeto, com imagens que às vezes captam aquela vibração melancólica de fim de tarde, apropriada ao tom de romance que sabe ser frágil desde o começo. A crítica britânica chegou a sublinhar a força dessas passagens — “belas cenas de Nova York”, disse um jornal — e é fácil entender o elogio: há uma paciência na mise-en-scène que, por alguns minutos, suspende o trauma para deixar as personagens simplesmente existirem. 

Ainda assim, Cicada é, na essência, um filme que se alinha a uma longa linhagem de narrativas sobre a “vida gay” e seus protocolos dramáticos — o sair do armário, o peso do estigma, as interseções com raça e classe, os mecanismos de sobrevivência e fuga (sexo casual, humor autodepreciativo, autoproteção). Quase todos esses tópicos já foram explorados com variações por dezenas, talvez centenas de longas anteriores. A diferença, aqui, está menos na moldura e mais no detalhe: a bissexualidade de Ben, tratada sem exotização; o recorte preciso do trauma infantil, acolhido com cuidado; e a composição de Sam, atravessada pelo temor religioso do pai e pela violência de um tiro que lhe deixou cicatrizes físicas e psíquicas. São camadas que acrescentam especificidade, mas não chegam a romper o dique do já conhecido. 

Como dramaturgia, o roteiro prefere a acumulação de cenas íntimas a arcos claramente estruturados. A abertura com encontros casuais — homens e mulheres — situa Ben numa deriva afetivo-sexual que, aos poucos, se revela sintoma de algo mais profundo. Há um movimento de depuração até que Sam entre em cena e a narrativa encontre um eixo, porém a progressão dramática segue rarefeita, em tom de diário. Nesse ponto, a montagem de Sims e Fifer aposta na repetição como método, o que reforça a lógica de “estação da vida” mas, por outro lado, achata tensões que poderiam dar à segunda metade mais densidade. 

O trabalho de atores carrega o filme com dignidade. Fifer, mesmo sem a técnica de um intérprete veterano, encontra uma franqueza desarmada que combina com o gesto confessional do projeto; Brown é sutil e magnético, modulando com precisão a hesitação de Sam entre o risco de se expor e a vontade de se entregar. Há ainda participações que funcionam como respiros e comentários: Cobie Smulders e Scott Adsit surgem em aparições pequenas e certeiras; Bowen Yang e David Burtka também marcam presença, além de uma curiosa ponta de Ayo Edebiri, hoje mais conhecida por trabalhos na televisão. Essas entradas pontuais ajudam a ventilar o universo do filme e situá-lo numa Nova York verossímil. 

Em termos de recepção, Cicada percorreu com saúde o circuito de festivais, passou por vitrines relevantes do cinema queer e conquistou distribuição nos EUA pela Strand Releasing, estreando em salas em outubro de 2021. A trajetória rendeu ainda uma indicação ao Independent Spirit Awards na categoria de Melhor Primeiro Roteiro — um reconhecimento que tem a ver, sobretudo, com a honestidade do olhar e o esforço de transformar experiência em matéria narrativa.

Esteticamente, o filme é coerente com o que propõe. As decisões de fotografia e som evitam sublinhados dramáticos; a trilha de Gil Talmi, como já dito, prefere insinuar; e o desenho de produção trabalha com locações que cheiram a vida real — apartamentos pequenos, cafés, consultórios. No entanto, esse programa de sobriedade, levado às últimas consequências, por vezes empurra a encenação para um lugar de “adequação correta”, sem riscos. Falta, aqui e ali, a faísca que justifique a passagem do relato pessoal para a forma cinematográfica potente. A câmera observa, mas raramente intervém; registra, mas não encontra soluções que reinventem a gramática dessas histórias.

É possível argumentar que Cicada atinge o que mira: ser um gesto de fala e cura, um cinema de companhia que diz “eu também” a quem carrega dores semelhantes. E isso tem valor. Entretanto, quando colocado ao lado de um repertório vasto de obras sobre afetividade queer, o filme fica num confortável “meio-termo”: correto, sensível, pontualmente bonito, porém pouco memorável. A narrativa da vida gay — com seus ritos, seus sustos, seus respiros — já ganhou tratamento mais formalmente inventivo e dramaticamente intenso em outros títulos; aqui, o frescor aparece em pequenos contornos (o recorte bi, a costura com o noticiário, a maneira pudica de falar do abuso) que não reconfiguram o conjunto. 

Ainda assim, há méritos que merecem registro. A relação entre hipocondria e trauma é observada com algum rigor; o roteiro evita espetacularizar o abuso infantil e acolhe o tema com pudor; o olhar para a cidade é afetuoso sem virar cartão-postal; e a química entre Fifer e Brown sustenta os 93 minutos sem desinteressar o público. Tudo isso rende um filme “adequado” — no bom e no mau sentido da palavra. Adequado porque não erra o tom ao tratar de feridas reais; adequado porque não força catarses que não pertencem à experiência dos autores; mas também adequado porque se contenta com a segurança da fórmula indie e com um arco romântico de progressão previsível. 

No saldo, Cicada é mais um capítulo honesto nessa longa bibliografia audiovisual da “vida gay”, acrescido de detalhes que lhe dão algum brilho próprio, sem jamais incendiar o conjunto. É aquele filme que você recomenda com um “vale a pena”, consciente de que poucos, meses depois, guardarão cenas inteiras na memória — talvez uma conversa ao pé da cama, talvez uma caminhada, talvez o zumbido das cigarras que dá título à obra. Em cima do muro, sem excessos nem grandes ambições formais, Cicada cumpre a função de companhia sensível para quem procura um retrato íntimo e reconhecível — e para por aí, num terreno mediano porém digno. Se a ideia era transformar a dor em voz, o filme fala baixo, com respeito. Mas para entrar de vez na conversa maior do cinema, faltou aumentar um pouco o volume.

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