Páginas

agosto 10, 2025

Cafarnaum (2018)

 


Título original: Capernaum
Direção: Nadine Labaki
Sinopse: Aos doze anos, Zain carrega uma série de responsabilidades: é ele quem cuida de seus irmãos no cortiço em que vive junto com os pais, que estão sempre ausentes graças ao trabalho em uma mercearia. Quando sua irmã de onze é forçada a se casar com um homem mais velho, o menino fica extremamente revoltado e decide deixar a família. Ele passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças que, diferentemente dele, não chegaram lá por conta própria. Sobrevive graças à sua esperteza nas ruas, cuida da refugiada etíope Rahil e seu bebê Yonas. É preso por um crime violento e, enquanto cumpria uma pena de cinco anos, ele processa seus pais por negligência.


Cafarnaum (Capernaum, 2018), de Nadine Labaki, parte de uma premissa que flerta com o inverossímil para alcançar um realismo quase documental: um menino libanês de 12 anos decide processar os próprios pais por tê-lo colocado no mundo. A ideia — que em mãos menos seguras poderia soar como um mero artifício melodramático — aqui se transforma em um motor ético e narrativo de rara potência. O processo judicial é o enquadramento; a matéria viva do filme, porém, está nas ruas de Beirute, no labirinto de becos, feiras e barracos pelos quais Zain (Zain Al Rafeea) circula como quem conhece de cor os atalhos da miséria e os respiros breves da esperança. 

O argumento é, sim, extremamente original. Não apenas porque desloca o gesto jurídico para um terreno simbólico — a criança aciona o sistema para denunciar não um crime pontual, mas uma cadeia inteira de negligências —, mas porque inverte o vetor habitual do cinema social: em vez de seguirmos adultos debatendo políticas públicas, somos guiados pela fúria lúcida de uma criança, que identifica causas e efeitos com uma clareza cortante. A própria gênese do roteiro nasce da escuta de Labaki em centros de detenção e varas da infância no Líbano; a diretora já afirmou que a semente do processo veio do que ouviu desses menores: “queria traduzir a raiva das crianças”. Esse lastro de pesquisa, que dura anos, confere gravidade ao gesto e impede que a grande ideia se esvazie em alegoria. 

A originalidade do argumento não descamba para o inverossímil. Ao contrário, Cafarnaum é um daqueles casos em que a história beira o absurdo sem nunca perder a credibilidade — justamente porque é ancorada numa mise-en-scène de observação: atores não profissionais (com Labaki assumindo apenas um pequeno papel, o da advogada), situações filmadas com respiração de docuficção, diálogos muitas vezes paridos do improviso. Zain Al Rafeea, refugiado sírio que vivia na periferia de Beirute, interpreta um menino também chamado Zain; a porosidade entre vida e cinema é deliberada, e a diretora incentiva que o elenco traga para o set suas próprias memórias e formas de falar. O efeito é um naturalismo que elimina distância: quando o garoto empurra um carrinho com o bebê Yonas pelas calçadas esburacadas, tudo — da luz estourada ao ruído ambiente — nos garante que estamos no mundo e não apenas diante de sua reconstituição. 

Do ponto de vista técnico, o filme possui uma arquitetura sólida. Christopher Aoun assina a fotografia e opta por uma câmera inquieta, quase sempre à altura do olhar de Zain, que cola nos corpos e transforma corredores e vielas em linhas de fuga dramáticas. As opções de enquadramento e a granulação das lentes reforçam um realismo urbano, com a cidade aparecendo mais como textura do que como paisagem. O desenho de arte de Hussein Baydoun investe no amontoado — prateleiras de bugigangas, roupas que se acumulam, barracas superlotadas —, compondo um cenário que é caos e método, coerente com o título (que, em francês, também significa “desordem”). A montagem, a cargo de Konstantin Bock e Laure Gardette, herda um desafio hercúleo: condensar cerca de 500 horas de material captado ao longo de seis meses num relato de pouco mais de duas horas, costurando o arco de Zain às idas e vindas do processo judicial. O resultado preserva o nervo e a urgência. 

Convém, aliás, precisar essa duração: Cafarnaum circula comercialmente com 126 minutos, embora o material de Cannes registre 120 — diferença que sugere ajustes entre a estreia e os lançamentos posteriores, algo comum em percursos de festival para circuito. Seja como for, a sensação temporal é de percurso: cada cena carrega o peso do deslocamento físico e emocional do menino, e a montagem atende a esse movimento, alternando blocos de observação (o cotidiano de Zain e a relação com Rahil, imigrante etíope) com as passagens processuais que organizam a memória em flashback. 

Se há um ponto em que o filme se acomoda, ele está no plano estilístico. Cafarnaum adota um repertório já muito praticado pelo cinema social recente do Oriente Médio: câmera de mão rente aos personagens, luz natural, paleta pálida, som direto que privilegia a ambiência, dramaturgia que equilibra denúncia e ternura. Não há, aqui, um gesto formal disruptivo — um corte que reordene radicalmente a percepção, uma invenção de linguagem que nos desloque. O que Labaki oferece é uma execução competente desse código visual, capaz de situar o espectador, de enervar nos momentos de risco e de recolher a intimidade quando necessário. Para quem acompanha a produção da região, esse “bem-feito” pode soar previsível; para quem chega ao tema pelo filme, a eficácia não deixa de ser contundente. Em outras palavras: estilisticamente batido, sim, mas funcional para o que pretende. 

O mérito maior, porém, está nas atuações. É um elenco amador que trabalha com um grau de verdade difícil de encontrar mesmo entre profissionais tarimbados. Zain Al Rafeea tem um rosto que carrega uma biografia — olhar de animal acuado que não perde a inteligência, andar ligeiro que alterna fuga e estratégia. Sua presença organiza a cena e impõe ritmo: nos planos em que contracena com o bebê (Boluwatife Treasure Bankole), há um cuidado que nunca cai no sentimentalismo; quando confronta adultos — pais, policiais, exploradores —, a fala curta e ríspida projeta uma dignidade ferida. Yordanos Shiferaw, como Rahil, é outro achado: sua delicadeza não apaga a firmeza da personagem, e as pequenas hesitações do corpo dizem muito da condição de quem vive à margem, sem documentos, contando moedas e favores. A decisão de Labaki de ser a única profissional diante da câmera, no papel da advogada, reforça o pacto de realidade: a ficção se ancora num chão humano que raramente falseia. 

A música de Khaled Mouzanar, produtor do filme, surge pontualmente e evita sublinhar o óbvio; a trilha sabe recuar para deixar que os ruídos — vendedores gritando, ônibus freando, a multidão negociando no Souk Al Ahad — façam o trabalho de ambientação. Quando a partitura aparece, ela tende a funcionar como linha de respiração para o espectador, oferecendo breves suspensões em uma narrativa que não poupa o personagem de sucessivas quedas. É um desenho sonoro que respeita o espaço urbano e, consequentemente, a ética de observação do projeto. 

Chama atenção também o modo como o filme estrutura sua crítica social sem se fechar numa cartilha. O processo de Zain é menos um pedido de indenização do que uma convocação moral: que os adultos parem de produzir vidas que não podem sustentar; que o Estado reconheça as crianças invisíveis, sem certidão, sem escola, sem clínica. A moldura jurídica — um garoto dizendo ao juiz que processa os pais “por eu ter nascido” — é uma hipérbole que funciona como lente de aumento das omissões estruturais. Ao longo do caminho, Cafarnaum toca em temas espinhosos: casamento infantil, trabalho precarizado de imigrantes, redes informais que lucram com adoções e documentos falsos. Mais do que enfileirar denúncias, Labaki investe naquilo que o cinema pode oferecer de específico: tornar visível o que passamos a ignorar e, nesse gesto, recusar a naturalização da catástrofe social. 

Há, sim, momentos em que o filme flerta com o excesso — principalmente quando organiza coincidências dramáticas que parecem programadas para maximizar a comoção. Nesses trechos, a direção chega perto de overdrive melodramático; a força do material humano, porém, quase sempre reequilibra a balança. É aí que a performance de Al Rafeea volta a impor medida: seu Zain é contundente sem ser santificado, capaz de ternura e violência, esperteza e ingenuidade. O filme aposta nessa ambivalência, e é ela que impede que o argumento original se esvazie em tese. 

No circuito internacional, Cafarnaum percorreu um trajeto retumbante: concorreu à Palma de Ouro e conquistou o Prêmio do Júri em Cannes, recebeu indicação ao Oscar de Filme em Língua Estrangeira e tornou-se um raro fenômeno de bilheteria para um título árabe e do Oriente Médio — com um estouro particularmente surpreendente na China. Esses dados ajudam a entender o impacto do filme fora do debate cinéfilo estrito e como seu discurso atravessou fronteiras culturais, algo que não se explica apenas pela pauta social, mas pela pulsação narrativa que o sustenta.

Em síntese: Cafarnaum nasce de um argumento brilhante e ousado, encontra em atores amadores — com destaque para o magnetismo raro de Zain Al Rafeea — um veículo de verdade, e entrega uma dramaturgia que, mesmo encostando no extraordinário, mantém-se crível porque respira a rua, a precariedade e as fraturas de um país. Estilisticamente, não reinventa a roda; pratica com competência o léxico dominante do realismo social contemporâneo vindo do Oriente Médio. Seu filé mignon está menos na forma do que na pulsação moral que emana da tela. E é justamente por isso que, quando Zain decide levar sua dor aos tribunais, não o lemos como capricho de roteiro, mas como um ato radical de linguagem: um grito de responsabilidade dirigido a todos nós — pais, Estado, espectadores. O que o filme pede, afinal, é simples e impossível: que não se faça do nascimento um veredito de condenação. E esse pedido, por mais que soe absurdo, é exatamente o que torna Cafarnaum tão necessário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário