Marinheiro Por Descuido (The Navigator, 1924) é daqueles filmes que lembram por que o cinema mudo ainda pulsa com uma energia quase elétrica. Não é, talvez, a obra-prima mais acabada de Buster Keaton — fica um degrau abaixo do rigor épico de A General ou da coreografia perfeita de Bancando o Águia (Sherlock Jr.) —, mas é uma delícia de se assistir: um relógio cômico que nunca perde o compasso, um laboratório de gags onde cada ideia parece gerar mais duas, como engrenagens que se alimentam mutuamente. E o mais saboroso é perceber como os absurdos do roteiro, a essa altura ultrapassando um século de idade, continuam contagiantes: os truques detonam surpresa genuína, o riso vem da astúcia do encadeamento e da pureza do gesto físico, não de uma piscadela irônica. É Keaton no auge do controle espacial e do anticlímax filosófico — o homem mínimo diante de um mundo descomunal, aqui condensado num transatlântico à deriva.
A premissa é simples e fértil: Rollo Treadway (o próprio Keaton), milionário tão mimado quanto inepto, e Betsy O’Brien (Kathryn McGuire) acabam presos num navio vazio que se solta e vaga pelo Pacífico. O filme foi escrito por Clyde Bruckman, Jean C. Havez, Joseph A. Mitchell e pelo próprio Keaton, e dirigido por ele em parceria (conturbada) com Donald Crisp, veterano do período silencioso que, contratado para orquestrar momentos “dramáticos”, teria rapidamente migrado para o terreno cômico — território soberano de Keaton — até ser discretamente afastado durante a filmagem. A versão final, com crédito para ambos, é em tudo permeada do olhar keatoniano sobre espaço, escala e catástrofe doméstica.
Do ponto de vista de produção, Marinheiro Por Descuido é um feito material. Keaton e seu produtor Joseph Schenck localizaram um navio real — o ex-transporte militar U.S.A.T. Buford — e o alugaram para transformá-lo não apenas em cenário, mas em máquina dramática: um organismo de escotilhas, cabos, guindastes e corredores que a mise-en-scène explora como se fosse um imenso brinquedo mecânico. A equipe viveu cerca de dez semanas a bordo, filmando majoritariamente nas águas de Catalina; a logística incluía marinheiros de verdade para operar a embarcação e adaptações internas para iluminação e movimentação de câmera. É a primeira vez que Keaton usa um “grande objeto” como cenário móvel integral — ideia que ele refina em filmes posteriores —, e o resultado é um balé de pequenos corpos encurralados por uma arquitetura indomável.
Essa opção por um navio real rende não apenas textura, mas comédia. Os melhores gags do filme nascem do casamento entre a ingenuidade dos protagonistas e a lógica impiedosa do maquinário: a bandeira de quarentena hasteada por engano para pedir socorro; a cozinha onde tudo precisa ser reinventado por etéreos herdeiros que nunca fritaram um ovo; os dispositivos “Rube Goldberg” que Keaton inventa para automatizar tarefas triviais, transformando o cotidiano em slapstick filosófico. A câmera de Elgin Lessley e Byron Houck registra essas engenharias com a clareza cartesiana que é marca do diretor: planos fixos, eixo espacial legível, cortes que servem à construção do gag, nunca à sua explicação. Keaton edita com mão fria — ele mesmo assina a montagem — e confia que o espectador descubra, um segundo antes da queda, o mecanismo do desastre.
Há, claro, o monumento submarino. Para a famosa sequência do escafandro — na qual Rollo desce para consertar o casco, enfrenta um “monstro” marinho e trava batalhas com peixes e redes —, Keaton tentou filmar em piscina municipal, reforçando as paredes a vinte pés de profundidade, e terminou migrando para o gelado Lago Tahoe depois que o piso cedeu. Sem roupagens mitificadoras, são semanas de trabalho para minutos de cinema; e o que fica na tela é o absurdo cristalino de um boneco humano se movendo com solenidade no fundo d’água, como se a gravidade tivesse virado piada. As tomadas subaquáticas, pela própria raridade em 1924, acrescentam uma dimensão de maravilhamento físico que dialoga com o tema favorito do diretor: o confronto entre homem e mecanismos (aqui, o mecanismo mais antigo de todos, o mar).
Kathryn McGuire é essencial para o equilíbrio do tom. Betsy não é “a mocinha atrapalhada” nem um simples alvo de salvamento; McGuire compõe uma parceira de gag que aprende junto, contracena com o espaço e sublinha a comicidade com pequenos gestos de irritação ou espanto que nunca traem o realismo interno da cena. Há um momento — os dois tentando cozinhar com panelas gigantes, cada qual interpretando o “manual” doméstico à sua maneira — que resume a dinâmica: Keaton é o motor da catástrofe, McGuire a testemunha engenhosa que impede que tudo despenque no puro nonsense. A química entre os dois é medida em olhares e deslocamentos milimétricos no quadro.
O filme estreia, em 13 de outubro de 1924, no Capitol Theatre de Nova York, então o maior cinema do mundo, e vira um sucesso imediato: corre uma segunda semana em cartaz (raro para a casa), rende algo como US$ 680 mil para um orçamento de cerca de US$ 385 mil e torna-se, comercialmente, o maior êxito de Keaton no período. Décadas depois, seguiria como marco do comediante: entrou em 2000 na lista do AFI das 100 melhores comédias (posição 81) e, em 2018, foi selecionado para o National Film Registry da Biblioteca do Congresso, selo de preservação para obras “cultural, histórica ou esteticamente significativas”. Sinais de que aqueles absurdos marítimos, que nos fazem gargalhar hoje, já eram vistos como algo de especial desde a origem.
Tecnicamente, o filme é uma aula sobre “engenharia do gag”. Keaton organiza sequências em progressões: uma ideia simples — abrir uma lata, ferver café, guiar o bote — cresce por repetições e variações, cada etapa acrescentando um risco novo, até que o espectador antecipa a falha e ri pelo reconhecimento do mecanismo. A mise-en-scène é coreografada como se o navio fosse um parceiro de dança: corredores funcionam como esteiras, portas viram armadilhas de tempo, cordas e roldanas tornam-se extensões do corpo do ator. Ao contrário de Chaplin, que costumava fazer da câmera uma testemunha emotiva, Keaton a trata como notário impassível — e é nesse pudor que a poesia física floresce.
Se há arestas — e há —, elas fazem parte do charme e do contexto de 1924. A narrativa recorre, perto do desfecho, a estereótipos coloniais envolvendo nativos da ilha, com direito a batalha no convés, que hoje soam datados e redutivos. Esse é o ponto de maior fricção para o olhar contemporâneo, não tanto pela mecânica cômica, ainda inventiva, mas pelo imaginário “exótico” que a alimenta. O cinema clássico, e mesmo Keaton, não estão imunes a esse repertório de época; reconhecer a limitação não diminui a genialidade do desenho visual, apenas a situa historicamente.
Em termos de “cinema de coisas”, é fascinante como Marinheiro Por Descuido antecipa linhas que hoje associamos ao burlesco tecnológico: o protagonista tenta domesticar o mundo via engenhocas, mas toda solução contém sua própria ruína. O plano médio, tão caro a Keaton, é o formato ideal dessa ética: distância suficiente para ver o corpo em relação ao ambiente; proximidade bastante para captar o milímetro do desequilíbrio. Byron Houck e Elgin Lessley mantêm uma luz funcional e homogênea, favorecendo profundidade de campo e leitura de eixos — nada de efeitos pirotécnicos, porque o verdadeiro efeito especial é a precisão do ator e o desenho do espaço.
Também ajuda que o ritmo geral seja arejado. Com cerca de uma hora, o filme alterna blocos de gag e respiros de situação, usa cartões-título econômicos e aposta tudo na legibilidade do gesto. Quando Keaton “erra” — por exemplo, alongando um beat além do necessário —, a própria materialidade do navio sustenta o interesse: há sempre um canto novo a explorar, um mecanismo a acionar, uma peça móvel que, como um instrumento musical, pede um toque diferente. Não é a comédia mais densa do diretor, mas é uma das mais “tocáveis”, no sentido quase tátil do termo.
O contexto de bastidores adiciona camadas ao mito. A compra/locação do Buford, a presença de um capitão veterano supervisionando operações durante a filmagem, a convivência da equipe no casco metálico por semanas — tudo isso reforça a imagem de Keaton como artesão obcecado por verossimilhança mecânica. Nada é substituído por pintura de estúdio quando o real pode ser domado; e quando o real resiste — como na água gelada do Tahoe —, o filme incorpora essa resistência como parte do humor. É a filosofia keatoniana em estado puro: a realidade é um sistema a ser compreendido e “hackeado”, mesmo que o hack termine, invariavelmente, em desastre (engraçadíssimo).
Recepção crítica da época, como a de Variety, já apontava essa combinação curiosa de “comum e novo”: há números de rotina, mas também invenções de fôlego, especialmente debaixo d’água. O tempo cuidou de revalorizar a obra, que muitos veem como ápice comercial do período de longas de Keaton — ele mesmo teria declarado, em algum momento, que era seu preferido. A consagração institucional posterior (AFI, National Film Registry) só consolida o que o corpo sabe desde 1924: rir aqui é efeito de arquitetura e de risco calculado.
E por que, afinal, ainda funciona tão bem? Porque Keaton não pede cumplicidade; ele oferece demonstrações. Não há excesso de explicação, nem sublinhado sentimental. O riso nasce da descoberta compartilhada: quando Rollo e Betsy inventam uma solução, nós descobrimos com eles; quando a solução colapsa, a câmera, imóvel, nos deixa observar o colapso inteiro. Um século depois, essa ética da clareza — que trata o espectador como parceiro inteligente, e não como plateia à espera de “graça” — continua fresca. Marinheiro Por Descuido pode não ter a majestade absoluta dos picos da filmografia, mas é um oceano de ideias em mar calmo, navegável do primeiro ao último rolo. E, em cada ondinha, há um susto feliz à espreita — a prova de que a comédia, quando construída com madeira boa e parafusos justos, permanece à tona por 100 anos e segue surpreendendo como se fosse, gloriosamente, a primeira vez.
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