Amores Materialistas (Materialists, 2025), de Celine Song, chega carregado de boas intenções: herda a aura sensível e o apuro formal de Vidas Passadas — seu primeiro longa que arrebatou público e crítica — e tenta agora transpor a mesma atenção aos afetos para uma comédia romântica de ideias. O problema é que, em vez de reinventar o gênero, o filme se acomoda em fórmulas e em beats narrativos tão previsíveis que a própria mise-en-scène acaba por amplificar a sensação de déjà-vu. A promessa de uma crítica ao capitalismo sentimental, tão citada em entrevistas da diretora, existe — mas frequentemente serve mais como adereço conceitual do que como motor dramático convincente.
O enredo é simples e, por isso, perigosamente vulnerável ao óbvio: Lucy (Dakota Johnson), uma matchmaker de Manhattan, torna-se ponte entre um casal idealizado e a própria busca por um amor “autêntico”; entre ela, um bilionário perfeito (Pedro Pascal) e o ex-namorado em dificuldades (Chris Evans), desenha-se o triângulo que o público já viu tantas vezes. A partir das primeiras cenas já é possível intuir não só o desfecho, mas também boa parte dos obstáculos impostos à protagonista — e é essa previsibilidade que empurra o filme para uma cadência narrativa onde pouco se descobre, pois tudo já foi anunciado.
Tecnicamente, Amores Materialistas acerta em alguns pontos: a fotografia de Shabier Kirchner oferece planos cuidados e uma paleta urbana que casa com o tema da mercantilização dos afetos; a direção de arte monta ambientes de luxo com um senso de detalhe preciso; e a montagem de Keith Fraase tenta, com cortes limpos e elipses discretas, preservar o ritmo íntimo que Song já demonstrara saber manejar. Entretanto, aqui os acertos estéticos viram coadjuvantes de um roteiro que insiste em alongar situações óbvias por sequências inteiras — e é justamente nesta expansão que o filme se torna arrastado. Há cenas longas que sugerem buscar profundidade, mas que na prática reiteram a mesma ideia em tons diferentes, sem aportar conflito novo ou complexificação emocional. O resultado: sensação de filme mais longo do que precisa ser, porque a duração é usada para repetir aquilo que poderia ser dito com menos temporalidade redundante.
No centro do problema está o roteiro. A escrita de Song, que em Vidas Passadas traduzia mínimos detalhes da intimidade em pequenas revelações que feriam de verdade, aqui cede a convenções românticas (o reencontro culminante, a prova performativa de amor, o gesto público que "resolve'') que enfraquecem a verossimilhança emocional. A grande falha não é a presença de arquétipos — todo filme dialoga com arquétipos —, mas a inércia diante deles: o roteiro não encontra elementos inesperados para subverter a estrutura, nem oferece camadas psicológicas suficientemente densas para justificar o retorno sentimental do arco principal. Em outras palavras: o desfecho, que em outras mãos poderia surpreender por subversão, aqui soa como o cumprimento de um manual prévio. Vários críticos catalogaram essa sensação de perda de ímpeto na metade final, apontando que a ambição teórica do filme (criticar como o mercado trata o amor) se sobrepõe ao trabalho de criar afinidade dramática entre personagens.
As atuações — ponto que poderia salvar a sessão — oferecem momentos riscados: Dakota Johnson tenta imprimir interioridade a Lucy, mas muitas vezes a direção a prende a beats expositivos; Pedro Pascal compõe um bilionário que é, propositalmente, uma caricatura de perfeição artificial; Chris Evans, no papel do ex, tem o carisma habitual, mas recebe poucas oportunidades de densificar o passado que deveria sustentá-lo como escolha moral da protagonista. Em suma: o elenco dá o que o roteiro permite, e o que o roteiro permite não é suficiente para transformar clichês em figuras dramáticas legítimas. Alguns resenhistas elogiaram performances isoladas, porém também ressaltaram que a química entre os pares centrais nem sempre convence — problema fatal para um romance cujo interesse depende, primeiramente, da verossimilhança afetiva.
A música de Daniel Pemberton tem lampejos interessantes — há momentos onde a trilha acentua ironia e melancolia de maneira adequada —, mas ela também contribui para o efeito de “polimento” que o filme exibe: tudo é esteticamente elegante, composto e fotografado, de modo que a polidez formal torna-se máscara que camufla a falta de nervo narrativo. A montagem tenta imprimir ritmo, mas em muitas sequências o ritmo é deliberado demais — deliberado ao ponto de entediar. Para um gênero que exige tensão entre convenção e novidade, a balança pende demasiadamente para o primeiro.
Do ponto de vista temático, a ideia de tensionar amor e mercado é válida e até bem localizada (a relação entre riqueza, imagem corporal e o comércio dos afetos é um campo rico). No entanto, a maneira como o filme “explica” essa tensão — por meio de diálogos expositivos, metáforas óbvias e situações que rimam entre si — transforma a crítica em enfeite. A mensagem aparece mais como conclusão já pronta do que como descoberta dramatúrgica. Quando o cinema transforma argumento social em slogan moral, ele perde a ambiguidade necessária para engajar o espectador em reflexão verdadeira; aqui isso acontece com frequência. Alguns analistas reconheceram a coragem de Song em usar uma comédia romântica para debater capitalismo e estética, e há mérito nisso; mas mérito não basta quando a experiência vivida na sala é a de repetição previsível.
Há também uma questão de ritmo interno: o filme parece dividido entre duas vontades — ser um estudo de caráter íntimo e ser um comentário cultural amplo. Essa tensão poderia gerar dinâmica se o roteiro costurasse com sutileza os dois planos; ao contrário, alterna momentos contemplativos com set pieces de convenção romântica que não se casam organicamente. O espectador que busca surpresa narrativa ou risco emocional sai frustrado; aquele que procura apenas aplacar as expectativas da comédia romântica pode até encontrar conforto, mas provavelmente sentirá que está assistindo a uma versão muito polida e pouco imaginativa do gênero. As reações do público e das bilheterias mostram um recepção mista: críticas positivas coexistem com vozes que apontam problemas de ritmo e coerência emocional — uma divisão que traduz, exatamente, o centro do impasse do filme.
Em termos de linguagem cinematográfica, não há como não reconhecer o refinamento visual: enquadramentos cuidadosos, uma atenção aos objetos que se inscrevem no tema (presentes, listagens, imagens de consumo), e a gestão de tempo diegético em vários flashbacks e micro-memórias. Mas aqui o “arranjo” vence a invenção: há competência técnica abundante, falta ousadia dramática. É como se todo o elenco e equipe técnica tivessem sido instruídos a construir uma vitrine impecável, porém vazia de risco narrativo. Quando a forma não dialoga produtivamente com a substância, o filme vira exercício de estilo mais que acontecimento emocional.
Conclusão: Amores Materialistas é um filme de intenções claras e execução tecnicamente polida que, infelizmente, não consegue transformar sua tese em história envolvente. O grande pecado aqui não é o tema — esse é atual e fascinante — mas o uso previsível de dispositivos dramáticos que prometem subversão e, no fim, apenas reproduzem o gosto do lugar-comum. O espectador atento perceberá o final muito antes que a narrativa lá chegue; por isso a experiência se alonga em vez de se aprofundar. É um trabalho que dá mostras de autoralidade e sensibilidade, mas que sucumbe ao clichê e à extensa exposição, tornando-se um romance “sem sentido” no sentido de não acrescentar nada novo ao panorama do gênero. Em vez de ser a resposta vigorosa que renovaria a comédia romântica contemporânea, acaba por ser mais uma peça bem acabada na vitrine — bonita de ver, vazia de surpresa.
Fecho com um aviso direto ao leitor: há no filme — como sempre há em trabalhos de cineastas promissores — sinais de uma criadora em evolução; porém esperança não substitui trama. Quando a sala murmura de tédio nas cenas finais, não é apenas pela duração: é porque, depois de tanto cuidado técnico, esperávamos que a obra nos pegasse pelo inesperado. Aqui, infelizmente, tudo já estava escrito nas primeiras cenas.
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