Adam Elliot sempre foi um artesão do desconforto cúmplice: suas histórias em stop-motion orbitam personagens marginalizados que se tornam imediatamente simpáticos por causa da sua falha, do seu esgar, da sua tenrura quebrada. Em Memórias de um Caracol essa inclinação autoral permanece intacta; estamos diante de uma fábula adulta em miniatura que busca traduzir uma vida marcada pela solidão em imagens de laboratório — e, nesse esforço, consegue muitas vezes tocar, mas raramente convencer que merecia a consagração formal que recebeu nos circuitos de festival.
O filme narra a vida de Grace Pudel, da infância à idade adulta, com a habitual mistura de melancolia e humor negro que já caracterizou o cinema anterior de Elliot. A voz de Sarah Snook empresta à protagonista uma tessitura íntima e narrativa: Grace nos conta, confessionalmente, as suas feridas, os abandonos, as pequenas perversidades do destino — e o faz com uma cadência que alterna ternura e mordacidade. Junto a Snook, o elenco vocal (Kodi Smit-McPhee, Eric Bana, Jacki Weaver, Magda Szubanski, Nick Cave em participações) funciona como um coro de timbres contrastantes que ajuda a manter o filme ancorado no realismo emocional mesmo quando o visual se entrega ao grotesco encantador.
Tecnicamente, Memórias de um Caracol é uma peça de relojoaria. A produção se apoia no stop-motion tradicional, com materiais palpáveis — argila, arames, papel, tinta — e numa cenografia que privilegia a textura: cada objeto tem pelos, rachaduras, verniz seco ou brilho de saliva, quase como se o olhar de Elliot fosse de microscópio doméstico. Os créditos técnicos (Gerald Thompson na direção de fotografia, Elena Kats-Chernin na trilha, Bill Murphy na montagem) aparecem em cena não apenas como nomes — seus ofícios ficam visíveis: a iluminação micro-teatral de Thompson recorta volumes, a edição de Murphy respira com os suspiros da protagonista, e a música de Kats-Chernin insiste em melodias que oscilam entre o lúdico e o compassivo, fortalecendo o tom de fábula triste.
Algumas cifras ajudam a entender a ambição artesanal: a produção registrou centenas de milhares de fotografias e montou cenários aos montes — um trabalho manual que dá ao filme sua densidade visual, mas que também o prende a um ritmo de contemplação que nem sempre serve à narrativa. Há beleza, há virtuosismo técnico (e isso é inegável), porém o virtuosismo por vezes parece se retroalimentar, no sentido de que a admiração pelo ofício ocupa o espaço que a dramatização poderia preencher com maior concisão. Para quem aprecia a materialidade do cinema-objeto, o resultado é um banquete; para quem busca economia narrativa, há momentos em que a frieza do detalhismo dilui a intensidade dramática.
Narrativamente o filme se apoia em saltos de tempo e em elipses que tentam, com elegância, reproduzir a memória como se fosse uma coleção de caracóis: pequenas conchas ordenadas, cada qual guardando uma experiência — a morte da mãe no parto, o álcool do pai, a separação do irmão gêmeo, o bullying, os pactos de sobrevivência. Essa estrutura episódica cria quadros memoráveis e pequenas parábolas visuais, mas também fragmenta a construção empática; por longos trechos a impressão é de estar observando pequenas peças interconectadas ao invés de um arco orgânico. A escolha de contar tudo como uma espécie de memória oral narrada para o seu caracol de estimação (Sylvia) é poética e coerente com a proposta de introspecção, mas também contribui para um distanciamento: olhamos para Grace através de suas palavras e de miniaturas que contam por si mesmas, o que reduz a possibilidade de uma entrega emocional plena e contínua.
No capítulo das performances (entendendo aqui “performance” num sentido expandido — voz, design de marionetes, micro-expressões modeladas), há verdadeiras felicidades. A equipe de caracterização e o design de produção imprimem personalidade nos rostos esculpidos: uma inclinação da sobrancelha, um endurecimento da boca, um corte de cabelo torto — pequenos detalhes que funcionam como subtítulos emocionais. Quando o filme acerta, é nesses instantes de interação entre voz e plasticidade que o espectador se comove. Quando erra, o problema é a previsibilidade emocional: alguns momentos de lágrima parecem já programados para funcionar à moda de catálogo afetivo, e isso empobrece a surpresa.
Há também uma marcante aposta tonal: Elliot não tem pudor em perverter o estatuto “dessignificado” da animação como território infantil. O filme é claramente adulto — não só pelo conteúdo (temas de depressão, abuso, nudez e violência pontual), mas pela vontade de tratar a experiência humana com aspereza e ironia. Essa escolha o aproxima de outros trabalhos adultos em stop-motion (vale lembrar a comparação inevitável com Anomalisa quando a animação mira o capitalismo da solidão), e, de fato, muitos críticos acolheram essa coragem autoral. Porém, a coragem de temáticas adultas não coincide automaticamente com a excelência narrativa: é possível admirar a audácia temática e, ao mesmo tempo, achar o filme apenas “bonitinho” e certo para um público mais maduro, sem que ele chegue àquele lugar de obra-referência que justifique tantas premiações.
Sobre a recepção crítica e o percurso em festivais: o filme teve destaque em Annecy e foi amplamente exibido em circuitos de festival — com premiações e menções que pavimentaram sua visibilidade internacional — e chegou a figurar em listas e nomeações importantes (incluindo indicação aos prêmios de maior prestígio). Isso explica em parte o coro de vozes que o colocou como candidato a prêmios de animação em 2024/2025. No entanto, o reconhecimento de prêmios não substitui uma leitura crítica que diferencie o que é merecido por inovação real daquilo que é premiação por sensibilidade artesanal e empatia temática.
E aí entramos num ponto importante: Memórias de um Caracol é, sim, uma animação competente — às vezes com lampejos de beleza sincera — mas eu não consigo aceitar sem reservas a ideia de que exista algo formalmente tão revolucionário a ponto de justificar um coro uniforme de prêmios. A escala do elogio parece, em vários veículos, proporcional à afeição pelo ofício do stop-motion e pela história humana que o filme conta; contudo, há uma diferença entre exaltar o método e avaliar a densidade dramática. Em termos práticos: adultos vão apreciar mais — pela temática, pelas referências existenciais e pelo humor negro —, mas o filme permanece, na melhor das hipóteses, “bonitinho e adequado”: cria afeto, às vezes comove, raramente transforma.
Por fim, a questão do tom. A obra navega entre o lirismo e a denúncia, entre o encantamento pela miniatura e a vontade de mostrar uma vida que dói. Isso é mérito. Mas quando o lirismo se torna enfeite sobre um roteiro que, em certo número de momentos, enrola demais, o filme perde a contundência. As escolhas formais — a câmara que pausa em objetos, os cortes que alongam a contemplação, a partitura que insiste no afetado — reforçam a identidade autoral, porém também acentuam a sensação de que o diretor prefere encantar pela técnica a resolver com economia os conflitos dramatúrgicos. Muitos espectadores adultos vão encontrar aqui alimento emocional e intelectual; outros, talvez, se afastem por excesso de contemplação e por um déficit de progresso narrativo.
Memórias de um Caracol é uma obra que merece ser vista por quem admira cinema-objeto e pela coragem de tocar em temas adultos através da animação. Tem momentos sublimes de design, vozes afinadas e uma honestidade melancólica que toca. Ainda assim, aplaudir o filme como uma inevitável obra-prima me parece um passo exagerado: é um filme bem-feito, afetivo e, acima de tudo, artesanal — bonito no seu modo de ser — mas não encontro nele o fôlego narrativo ou a inovação estética que justificassem uma consagração irrestrita. É um petisco emocional para adultos: agradável, às vezes comovente, frequentemente belo — e no entanto, no fim, apenas adequado.
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