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agosto 07, 2025

A Vida de Chuck (2025)

 


Título original: The Life of Chuck
Direção: Mike Flanagan
Sinopse: A história da vida de Charles Krantz ao contrário, começando com sua morte por um tumor cerebral aos 39 anos e terminando com sua infância em uma casa supostamente mal-assombrada.


Há filmes que chegam silenciosos e, sem alarde, abrem uma lacuna nas coisas que acreditávamos saber sobre dor, alegria e o peso do cotidiano. A Vida de Chuck é um desses filmes: singelo nas intenções, potente na execução. Mike Flanagan — diretor que nos habituou ao sobrenatural e ao psicológico em obras como Doutor Sono (2019) e suas séries para a TV — faz aqui um desvio claro do seu território de sustos para firmar uma fábula humana, quase um poema cinematográfico, que pergunta — sem alardes retóricos — o que faz alguém valer a pena existir. A resposta do filme está nas pequenas cenas repetidas, nos olhares, num par de passos de dança e no modo como a câmera escolhe permanecer com as pessoas. 

Estruturalmente, o filme respeita a lógica do conto de Stephen King de onde se origina: três atos dispostos em ordem reversa, como se a narrativa fosse uma constelação de memórias sendo observada do fim para o começo. Essa escolha formal não é mero jogo; é dispositivo dramático que permite que Flanagan e o elenco revelem camadas aos poucos — do apocalipse abstrato à intimidade do baile de escola — e que o espectador sinta, de forma curiosa e às vezes desconcertante, a dilatação do tempo emocional que uma vida carrega. Em vez de confiar apenas no impacto de um clímax, o filme planta pequenas sementes afetivas que germinam depois, à medida que somos autorizados a voltar no próprio tempo do personagem. 

Tecnicamente, A Vida de Chuck merece o elogio repetido que vem recebendo: a fotografia e a edição são, sem medo do rótulo, estupendas. Eben Bolter assina um trabalho de iluminação, composição e linguagem de lentes que muda com cada ato — três “looks” distintos que acompanham a escalada íntima do roteiro: um formato mais amplo e onírico para o momento “fim do mundo”, um tratamento intermédio para a vida adulta e um aspecto mais sóbrio e humano para a infância. Essa variação não é cosmética: comunica o encolhimento do mundo de Chuck, as gradações de intensidade emocional e a memória como campo visual. Bolter e Flanagan brincam com aspecto de tela, lentes e gradações de cor para que a linguagem visual seja parte do argumento — um feito técnico que também é argumento afetivo. 

A edição, assinada pelo próprio Flanagan, é outra peça central. Não se trata apenas de criar transições elegantes entre os três blocos narrativos: trata-se de controlar o ritmo de revelação afetiva. Flanagan monta com paciência, às vezes deixando uma cena respirar até que sua carga sentimental se torne praticamente física; em outras ocasiões, corta com precisão cirúrgica para preservar o mistério. O resultado é uma montagem que evita o sentimentalismo fácil, mesmo quando o filme caminha por trilhas melancólicas — e que, com isso, reforça o tom singelo e verdadeiro do conjunto. 

No coração do filme há interpretações que sustentam a aposta emocional. Tom Hiddleston traz a calma melancolia de um adulto que carrega uma alegria rara: a da dança. Mas é Benjamin Pajak — no papel do Chuck jovem — quem rouba cenas e corações com uma combinação rara de presença e espontaneidade. Pajak não apenas atua: ele dança e conta uma história corporal; transforma uma sequência que poderia ser apenas decorativa numa pequena revelação sobre como a dança salva, conecta e funda identidade. Vários críticos já destacaram essa performance como “star-making” — e não é por acaso: há na atuação de Pajak uma clareza física e uma doçura que tornam críveis as escolhas íntimas do personagem e que, de quebra, dão ao filme seus momentos mais luminosos. 

É preciso falar da dança porque ela funciona como eixo temático e emotivo. A célebre cena — um set-piece de vários minutos que articula movimento, música e montagem — não é apenas espetáculo coreográfico: é revelação de caráter. Nela, Chuck se regenera; a coreografia atua como tradução física de uma necessidade interior. A colaboração entre a câmera que acompanha de perto e os corpos em movimento cria um trecho de cinema onde o corpo diz mais que as palavras. O brilho desse segmento se apoia também na trilha dos Newton Brothers, que acompanha sem invadir, favorecendo o fluir da cena. 

Se o filme tem pontos fortes óbvios, não é isento de pequenas hesitações. Em alguns momentos a narrativa parece patinar entre o desejo de ser fábula e a tentação de explicitar sentido demais — um excesso de zelo que pode reduzir a ambiguidade que a versão literária possuía. Há cortes que apontam para um cinema de grande alcance emocional mas que, por vezes, insistem em arrumar tudo com palavras ou diálogos que poderiam permanecer subentendidos. Ainda assim, essas falhas não chegam a comprometer a experiência; mantêm-se como pequenas nuances num panorama afetivo que, no grosso, funciona. Reviews variados registraram críticas nesse sentido — um lembrete de que a operação estética de Flanagan tende ao melodrama controlado, com riscos e acertos. 

Outro mérito do filme é o elenco de apoio: Chiwetel Ejiofor, Karen Gillan, Jacob Tremblay, Mark Hamill e outros contribuem com camadas de humanidade que enriquecem o mosaico. Cada figura secundária tem um peso específico na memória de Chuck, e o filme não perde tempo em desenhar, com economia, o que cada presença representa: consolo, traição, ternura, perda. Nesse sentido, a adaptação acerta ao transformar personagens menores em portas para a vida interior do protagonista, em vez de mera moldura para seus supostos “grandes” momentos. 

Sobre a recepção: o público de festivais acolheu o filme com entusiasmo — A Vida de Chuck foi premiado com o People’s Choice Award no Festival de Toronto, um reconhecimento que traduziu bem a conexão imediata que o filme consegue estabelecer com platéias. Esse prêmio costuma ser um termômetro de empatia e, no caso de A Vida de Chuck, confirma algo que o filme tenta desde sua primeira cena: a afirmação de que pequenas vidas são, de fato, vastas e comoventes quando filmadas com cuidado e afeição. 

No fechamento, volto àquilo que mais importa em cinema: a experiência subjetiva. A Vida de Chuck é um filme lindíssimo — um trabalho que não se esconde atrás do artifício e que prefere mostrar, com delicadeza, como se constrói uma vida. É singelo sem ser simplista; potente sem gritar sua moral. Para quem busca um filme que valorize o gesto humano — um abraço demorado entre imagem, som e interpretação — aqui está uma obra que acerta a mão. E mais: é um lembrete de que, às vezes, o grande feito do cinema é justamente isso — permitir que olhemos de perto, e com ternura, as pequenas coisas que nos fazem humanos.

Fecho com uma convicção pessoal: A Vida de Chuck é daqueles filmes que não se impõem, mas que permanecem. Quando apagam as luzes da sala e você volta para a rua, ainda carrega um ritmo — de passos, lembranças e muita ternura — que demora um pouco a se acomodar no corpo. E talvez seja esse rastro delicado, mas insistente, a melhor medida do seu valor.