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julho 16, 2025

Sovereign (2025)

 


Título original: Sovereign
Direção: Christian Swegal
Sinopse: Pai e filho, que se identificam como Cidadãos Soberanos, um grupo de extremistas antigovernamentais, se veem em um impasse com um chefe de polícia, o que dá início a uma caçada humana.


Christian Swegal já impressiona logo em sua estreia com Sovereign, um thriller criminal profundamente perturbador que reverbera como uma distopia familiar ambientada no coração da América contemporânea. Baseado nos eventos reais que levaram ao tiroteio no Arkansas em 2010 envolvendo Jerry e Joe Kane, o filme mergulha na ideologia dos “sovereign citizens” — indivíduos que acreditam ter renunciado sua cidadania, negando a legitimidade do Estado e suas leis.

A ideia central do filme — de que nascemos livres e nunca assinamos contrato algum com o Estado para que ele governe nossas vidas — transforma-se em premissa basal da narrativa. É curioso, quase coincidência, que seja a mesma noção que eu mesmo compartilhe. Contudo, Sovereign vai além: Jerry Kane (Nick Offerman) leva esse princípio ao extremo. Ele deseja “catequizar” o filho Joe (Jacob Tremblay) num estilo de vida que se revela progressivamente destrutivo. A radicalização paterna — a crença de que o Estado é ilegítimo, de que a liberdade se conquista pela recusa total — atinge níveis que escalonam emocionalmente até o confronto violento final.

O longa deixa claro que, ironica­­mente, não há soberania individual: nascemos presos dentro de um Estado — um cárcere a céu aberto onde as únicas opções são: baixar a cabeça ou morrer. A atmosfera cinzenta, os motéis baratos, as estradas sombrias captadas pela câmera de Dustin Lane são metáforas visuais eficazes para essa prisão sutil e onipresente . Não há, de fato, soberania do indivíduo — e o título do filme serve como ironia amarga: o soberano não é livre.

O roteiro estabelece desde o início uma narrativa paralela poderosa entre dois conjuntos familiares - a família Kane, onde Jerry e Joe vivem em isolamento, viajando pelos EUA dando seminários sobre como driblar a autoridade e escapar de hipotecas — uma forma perversa de evangelho soberano. Joe, em estado de transição entre o cativeiro ideológico do pai e seu próprio desejo de vida autônoma, é o centro emocional da trama.

E temos a família Bouchart, onde Dennis Quaid interpreta o chefe de polícia Jim Bouchart, cujo filho Adam (Thomas Mann) recém-graduado da academia de polícia traz à tona um modelo de relação paternal rígido, mas institucionalmente legitimado — o oposto dos Kanes. É um contraponto moral que se convergirá com o destino dos protagonistas num clímax inevitável, lembrando estruturas narrativas como Crash: No Limite (2004), embora com uma abordagem mais direta e menos simbólica.

Essa estrutura dual é impecável em seu arco evolutivo, costurando o radicalismo e as falhas de Jerry com a rigidez institucional de Bouchart até convergirem no confronto final.

A cinematografia de Dustin Lane é soberba na escolha da paleta dessaturada e nos enquadramentos amplos que revelam o vazio emocional e físico das cenas. Às vezes, longos planos fixos desafiam o espectador a contornar o tédio — mas esse minimalismo reforça o impacto emocional quando ocorre o clímax.

A trilha sonora de James McAlister é delicada, funcionando como contraponto aos temas violentos do roteiro. Usa silêncio estrategicamente: nas cenas cruciais, a ausência de música permite que o espectador absorva o peso dramático sem manipulação sonora excessiva.

Nick Offerman, como Jerry Kane, brilha na construção de um personagem paradoxal: carismático, fanático, fraturado pelo luto e pela convicção ideológica. Sua performance resgata ecos de Ron Swanson para mostrar um homem dominado pelo próprio discurso, cada vez mais desconectado da realidade — é uma das mais poderosas até agora em sua carreira.

Jacob Tremblay, como Joe Kane, entrega um trabalho verdadeiramente magistral. Adolescente privado de interações sociais comuns — sem escola, sem redes sociais, sem amigos — Joe vive uma melancolia interna palpável; seu desejo de normalidade (de se apaixonar no Facebook, de estudar numa escola pública) contrasta com o mundo imposto por Jerry. Tremblay personifica esse conflito com sutileza e profundidade emocionais, tornando o sofrimento do personagem intensamente real e tocante.

Dennis Quaid, como Jim Bouchart, completa o elenco com uma atuação firme e realista. Sua dinâmica com o filho Adam oferece contraponto ao discurso autoritário dos Kanes, embora o filme não aprofunde tanto essa relação quanto poderia. Mesmo assim, o significado simbólico da dualidade entre essas figuras paternas amplia a tensão moral da trama.

Sovereign pode tocar especialmente minorias e grupos oprimidos, encontrando eco nos temas apresentados: religiões ou seitas que proíbem comportamentos normais (namorar, estudar, socializar) encontram paralelo em como Jerry impõe restrição total sobre Joe. Esse ostracismo ideológico e isolacionismo autoimposto ressalta como certos sistemas – voluntários ou forçados – podem tornar uma vida comum em uma prisão ideológica.

Além disso, a narrativa evidencia como traumas e colapsos sociais podem levar pessoas a movimentos extremos — exatamente o tipo de grupos que usam pseudo-legalismos para fugir de uma sociedade que, na visão dos próprios, os abandonou. Essa ponte entre o arquétipo anárquico de Jerry e religiões ou seitas restritivas torna o filme universalmente afetivo para quem já viveu formas de opressão paternalista ou institucional .

Sovereign me comoveu profundamente. A forma como mistura extremismo, trauma familiar e a busca desesperada por liberdade interior reverbera em camadas pessoais — especialmente para quem já cruzou com figuras parecidas com os Kanes na vida real. A sensação é de ver uma micro‑cinebiografia dessas vidas marcadas por discursos de liberdade que acabam em destruição.

Embora alguns críticos questionem a abordagem “apolítica” de Swegal — que opta por empatia sobre condenação explícita, evitando demonizar completamente Jerry — essa decisão narrativa fortalece o filme como um estudo de caso, não propaganda. Não apresenta respostas fáceis; apresenta esse mundo radical e deixa que cada espectador reflita sobre suas raízes e consequências.

É necessário salientar que Swegal controla com seguridade o tom, mesmo que em alguns momentos o ritmo pareça lento, especialmente na primeira metade. A construção cuidadosa de diálogo, a escolha de planos longos e a restrição emocional provocam uma sensação de claustro ideológico que antecede o desmembramento. Embora isso possa frustrar espectadores mais acostumados a thrillers mais dinâmicos, é uma escolha coerente com o conteúdo introspectivo do filme.

O roteiro não cansa de expor motivações e fraquezas: Jerry como vítima dos bancos e do luto; Joe como a ponte entre o apelo da liberdade e o desejo de pertença. Ao mesmo tempo, as tramas secundárias envolvendo a família Bouchart funcionam como contraponto moral e tensional, mesmo que seu desenvolvimento narrativo seja menos robusto — mas com papel importante para convergir os universos no ato final.

Sovereign é um filme de maturidade rara para uma estreia. Christian Swegal entrelaça elementos técnicos e artísticos — cinematografia sóbria, trilha silente, atuações memoráveis e estrutura narrativa dual — para oferecer uma poderosa reflexão sobre liberdade, controle e a forma como ideologias podem aprisionar indivíduos sob o disfarce de emancipá‑los.

Não é um filme fácil, e nem pretende ser. Mas a clareza com que expõe sua premissa (a liberdade não é real; nascemos presos) e a forma como dramatiza a doutrinação ideológica do pai sobre o filho fazem deste longa um espelho brutal sobre como famílias podem desconectar-se do mundo em nome de uma “soberania individual”.

Para aqueles que viveram proximidades com figuras como Jerry e Joe Kane, é quase como revisitar uma biografia emocional pessoal — uma cinebiografia íntima de tragédia e apego mascara­da de emancipação. Nem todos concordarão com uma avaliação tão elevada, mas é impossível negar o poder evocativo do filme.

Christian Swegal oferece aqui um retrato urgente e doloroso, não de um horror sobrenatural, mas do horror psicológico e social de acreditar que a liberdade vem do isolamento. Sovereign é, sem dúvida, uma das obras mais impactantes dos últimos tempos — tensa, sensível e inesquecível.

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