Quando Petra Costa empunha a câmera em Apocalipse nos Trópicos, ela faz o de sempre: qualidade técnica nos mesmos moldes do cinema documental brasileiro contemporâneo. A fotografia é bem cuidada, o drone é usado, a montagem é ágil e a trilha tem clima sóbrio. Mas honestamente? Nada que a gente não tenha visto em documentários brasileiros de qualidade nos últimos dez, quinze anos — um estilo já trivial; competente, mas, sinceramente, sem brilho.
Ao longo do filme, Petra repete a receita que aplicou em Democracia em Vertigem (2019): cortes precisos, imagens aéreas elegantes, voice-over reflexivo. Mas se Democracia já beirava o panfleto velado, aqui em Apocalipse nos Trópicos ela empurra o discurso goela abaixo, sem nenhum esforço para fingir neutralidade. A técnica continua firme — e serve para fazer panfletagem: ela não faz nada mais, nem nada menos do que seus pares fazem.
Aqui, uma das coisas que mais me marcou foram os dois cafés da manhã, construídos como espelho da polarização brasileira para incitar negativamente o espectador. Do lado evangélico - mesa farta, novela das 9, louça de cristal, travessas impecáveis com pães e bolos, bule refinado. Petra dedica um plano fixo, calado, dando tempo para o expectador engolir: “esse é o paraíso da ostentação”. Essa imagem, por si só, já grita “esses cristãos são ricos, poderosos, descaradamente exibidos”. Ao fundo, trilha sutil, mas suficiente para intensificar o contraste moral sugerido. Do outro lado — Lula: café simples, passado na cozinha, pão com manteiga, mesa pequena, casaquinho discreto do Corinthians, clima de singeleza. Lula aparece silencioso, quase sóbrio, critica até mesmo o socialismo. A câmera chega bem perto, mas sem drama, criando identificação. A mensagem óbvia: humilde é bom, poderoso e religioso é vilão.
No mesmo estilo das novelas da Globo, mas com discurso documental, Petra faz do café da manhã um símbolo: Deus está com Lula. Pura montagem emocional com dentes de plasticidade.
O que mais incomoda — e deveria incomodar — é o tom de escárnio dirigido aos evangélicos e demais cristãos. A direção é deliberadamente sarcástica ao apresentar Silas Malafaia. A própria escolha de cena (som de riso cortado bem na fala dele, ritmo de montagem cômica) faz com que qualquer espectador assista à fala do pastor como se fosse piadinha. "Olha esse cara, ridículo. Rindo de Deus!" — parece ser o recado.
Quando a turma entra no campo político, Petra usa imagens de eventos evangélicos recheadas de deboche que lembram o estilo do CQC. A técnica documental se transforma em arsenal de humilhação. A própria Petra não tem qualquer vivência com fé: assumiu que não tinha lido uma linha da Bíblia. E ainda assim se coloca como autoridade para “explicar” o fundamentalismo. Só pode ser prepotência ideológica — tipo “eu vi do alto, agora venho julgar em baixo”.
O filme tem um tom moralizante, como se ela dissesse: “Vocês desavisados, enganados, ignorantes. Fiz esse documentário pra vocês verem como são idiotas”. Sem nenhum recato. Se isso fosse aplicado à fé de matriz africana, seria tratado como xenofobia e teria reação imediata. Mas no caso dos evangélicos, tudo bem, é permitidíssimo zombar — normal, aceitável. Por que essa assimetria moral?
O filme fala de política mas é quase um editorial politico disfarçado de investigação. Critica abertamente pastores que ajudaram Bolsonaro, reforçando a narrativa de apocalipse moral que supostamente os evangélicos teriam causado no país. Isso sem trazer vozes diferentes, sem pluralidade — é apenas coro de reprovação.
Essa postura dá margem para que o filme faça o trabalho contrário ao pretendido: em vez de convencer, ele inflama. Fortalece o discurso de que “a Globo e os intelectuais querem varrer a religião do Brasil”. E fortalece o eleitorado de direita, que se sente agredido. E a diretora usa e abusa do voice over exatamente de diversos telejornais da Rede Globo.
A ligação forçada entre evangélicos e militares, com cortes para imagens de padres apoiando a ditadura, é uma medida desesperada. Fora que petardo já manjado: “militares = religiosos = ditadura = vilões”. Narrativa repetida. Não acrescenta análise histórica, apenas acusação fácil e barata. Sergio Moro é ignorado no nome — “um juiz que depois foi Ministro da Justiça”. É sutil, mas clareia quem é alvo: a direita inteira. Em contrapartida, Lula é elevado como símbolo de redenção — mesmo com sua trajetória tumultuada, aparece apagado, quase ingênuo.
Petra, ao enquadrar e as esquerdas, faz um enquadramento limpo, fotos longas, trilha suave. É gente que sofre, que pensa, que dialoga. Aparece com semblante sério e tom empático. Costuma ser gente “bem-intencionada”, que a diretora quer que nós tenhamos empatia. Já com os cristãos e a direita, cortes secos, sons distorcidos, montagem clássica de comédia pastelão. Imagens de pregações épicas de fake-humor, cenas de pastores gesticulando, vozes pausadas com eco — tudo para gerar vergonha alheia. Não importa a figura, o que importa é ridicularizar.
Petra quer ser crítica, mas fraseia como “olha essa gente confunde política com fé, acha que Deus aprova tudo, ri fácil da guerra cultural”. Quando você zomba da fé dos outros, você gera barricadas de ódio — e eles reagem. Não é desejável. O documentário deveria, ao menos, conscientizar. Mas Petra põe pessoas num pedestal e joga outras no lixo. Em vez de provocar diálogo, provoca discórdia. Os evangélicos atacados vão dizer “vimos que eles querem calar nossa voz”. Isso reforça o sentimento de perseguição, e aí a reação é mais radical ainda. Petra, sem querer, alimenta uma bolha.
E a técnica? Sim, a cara é bonita: câmera limpa, drone, transição bem feita. Roteiro costurado em off, algumas imagens realmente bonitas. Mas é o mínimo exigível hoje. A partir do segundo ato, parece que a técnica serve só pra mostrar cenário da ostentação e enviar estiletes sobre os alvos. Petra passa a explorar para realçar o contraste emocional, e até aí são artifícios já batidos — nada que surpreenda ou renove. No fundo, ela só replica o que muitos documentários "de esquerda" já fizeram para “expor” os cristãos: copiou estética, técnica, pattern narrativo de "inconveniência" moral. O diferencial? Ziriguidum ideológico.
Apocalipse nos Trópicos é um filme que mina sua própria credibilidade ao usar técnica avançada para operar um julgamento moral e ideológico. Petra Costa, que nasceu fora da religião, assume papel de dona da verdade, enquanto faz pouco caso da fé alheia usando montagem agressiva e postura moralista. Círculos mais moderados vão achar o filme óbvio, raso e provocador. A própria diretora entrega panfleto, e isso não está errado por si só — mas se deslegitima como documentário, rompe a fronteira entre questionamento e pedra atirada.
O problema maior: Petra faz um show de escárnio dos cristãos. E isso é imperdoável. O documentário poderia ser um alerta, uma investigação aberta, mas escolhe atacar — com deboche, risinho falso, montagem cortante — aqueles que têm crença religiosa, como se fé fosse justificativa para falácia moral. No fim das contas, ela se contradiz: quer combater uma “farsa política”, mas constrói a sua própria, simplista. Conclui repetindo o medo que pretende combater: “Eles vêm aí. É apocalipse”.
Tudo bem fazer documentário com opinião. Mas se sua intenção é provocar pensamento — ótimo. Não se disfarce de jornalismo. Fazer rir da fé de milhões não é debate, é abuso. E Petra faz disso espetáculo. Quando a técnica é sofisticada, mas só serve para mostrar quem é mocinho e quem é vilão segundo o gosto da diretora, ela se torna mera moeda de transição do ódio — e não instrumento de construção de sociedade.
Petra Costa tem talento técnico — e isso vale uma estrelinha. Mas o resto? É apocalipse moral — trágico, raso e medido pelo cinismo de quem não acredita no diálogo, mas só quer uma plateia que ria junto com ela. Qualquer criança sabe rir sozinho, mas precisamos ter inteligência para aprender a rir — e mais ainda para não rir de um segmento da população. E Petra esqueceu essa parte.
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