Teerã chega com uma aura de ambição geopolítica: pretende ser um thriller de espionagem que atravessa fronteiras e sensibilidades, ancorado numa figura central feita para o star system de ação de hoje — John Abraham — e sustentado por uma produção que, no papel, tem apelo e recursos suficientes para um cinema de escala.
O roteiro parte de um acontecimento real — ataques a diplomatas — e quer trabalhar esse trauma pessoal (um policial abalado, uma vítima conhecida) transformando-o em uma investigação que escala para um jogo de sombras internacionais. Há mérito nessa concepção: o ponto de partida dramático é direto, humano, e oferece a possibilidade de fundir o íntimo com o geopoliticamente relevante — algo que, quando feito com calma e clareza, gera um thriller memorável. Alguns textos de divulgação e críticas já apontavam a estabilidade desse arco conceitual e a ideia de uma trama que poderia funcionar como um “filme de missão” contemporâneo.
Mas a execução, que é o que realmente define um filme, desmonta essa promessa. E é aqui que preciso ser duro: Teerã naufraga por decisões de ritmo e montagem que transformam material potencialmente interessante numa sucessão de micro-imagens. O grande problema desse filme, que o destrói por completo, é a edição. O filme com 2 horas de duração foi totalmente editado como um trailer, cada plano dura somente alguns segundos e temos que entender o que se passou também em segundos pois o protagonista pula de lugar em lugar e deixa o espectador tonto. Uma edição grotesca. Essa frase não é um exagero retórico: a montagem de Akshara Prabhakar opta por cortes ultra-compactos, travellings interrompidos, e um ritmo que privilegia punchs visuais em detrimento da contiguidade narrativa. O efeito prático é que os elos causais e as transições emocionais desaparecem; tudo vira fragmento. Há momentos em que se tem a sensação de assistir a uma colagem de cenas escolhidas por seu valor de choque, não por sua capacidade de contar uma história.
Unindo a tudo isso, o roteiro. É bem simplório mas a edição o dilacerou por completo. O roteiro — assinado por Ritesh Shah, Ashish P. Verma e Bindni Karia — tem uma espinha dorsal plausível: vingança, traição, alianças voláteis entre serviços secretos. Porém, a estrutura dramática carece de respiradores; o script oferece pistas e arcos que precisariam de desenvolvimento, de momentos de ancoragem emocional, de pequenos intervalos para que o espectador processasse a informação e sentisse o peso das escolhas dos personagens. Em vez disso, a edição trava essas pausas e exige uma atenção quase atlética do espectador para conectar os pontos. O resultado é que a trama — que até poderia ser tensa e pertinente — fica rasa e, em vários trechos, confusa.
Tecnicamente, há coisas a elogiar: a fotografia alterna ambientes sujos e saturados (as ruas ferrugentas de Delhi, por exemplo) com cenários estéreis de salas de interrogatório e, em muitos quadros, há um cuidado com a luz que revela textura, sujeira e contraplanos bem construídos. Alguns críticos destacaram que a filmagem, a direção de arte e o design de produção ajudam a criar uma atmosfera de realismo seco — e, de fato, quando o plano tem espaço para respirar, a câmera faz um bom trabalho no enquadramento e na escala. Mas é doloroso notar que a linguagem visual, por mais competente que seja em certos momentos, é frequentemente sabotada pela montagem. Em outras palavras: a equipe de imagem entrega possibilidades que a edição, por seu próprio ritmo predatório, quase sempre cancela.
As performances ficam em um território ambivalente. John Abraham tenta modular seu carisma de ação para conferir gravidade ao protagonista — há passagens em que sua contenção é eficaz, pequenos gestos que sugerem dor contida. Manushi Chhillar, quando aparece, é subutilizada em boa parte do filme: o roteiro não lhe oferece material suficiente para que sua personagem desabroche. Elnaaz Norouzi e outros coadjuvantes cumprem o papel, às vezes com nuance; porém, o corte frenético prejudica a construção de relações: como confiar em motivações que mal temos tempo de observar? A consequência emocional é que o público não se envolve com o destino dos personagens — algo capital num thriller que quer mexer com lealdades e perdas.
A trilha sonora e o design sonoro tentam compensar, com uma partitura que busca tensão e tema melódico quando convém. Em alguns momentos o som é inteligente, preenchendo lacunas narrativas e sugerindo perigos fora de quadro; em outros, a música tenta preencher os buracos deixados pela própria narrativa, como quem tenta empurrar o público para sentir aquilo que o filme não conseguiu explicar. Isso funciona por vezes, mas torna-se um artifício repetitivo quando usado para mascarar falhas maiores.
Mas não adianta, a Índia não sabe fazer filmes. Ou são os absurdos ridículos de Bollywood ou então uma coisa completamente confusa como esse Teerã. Quando a indústria aposta tudo em efeito e marketing e esquece da arquitetura do tempo dramático, o filme vira espetáculo sem alma. Teerã poderia ter sido um thriller sóbrio, um drama de perda convertido em investigação — mas a opção por cortes que mimetizam clipes e por setpieces fragmentados transforma tudo em algo que parece pensado mais para o algoritmo de trailers do que para a experiência do espectador na sala (ou no sofá).
Há, também, um desconforto na tonalidade: o filme ora quer ser um drama humano, ora quer virar ação de espionagem sem transição plausível. Essa indecisão formal dilui impacto e dilacera o que poderia ser a moral do filme — a ideia de custo humano do conflito internacional. A montagem acelerada tem efeitos práticos: anula a construção de suspense clássico (baseado em antecipação e acumulação), substituindo-o por choques imediatos que raramente se conectam a uma lógica emocional sustentável. O espectador é deixado num terreno de sensação contínua, não de entendimento.
Elogio a honestidade geopolítica e a tentativa de não cair no exibicionismo habitual dos blockbusters; o filme pode até ser “ocasionalmente cativante” se o espectador aceitar saltos narrativos. Essa polissemia de recepção é real — houve críticas locais que enalteceram sequências de ação e a fotografia e classificações variadas entre críticas e público. Mas, para quem procura um thriller coerente, o conjunto da obra falha de modo decisivo: não por falta de intenção, mas por erro de forma e ritmo.
Em termos de gosto pessoal e de crítica final: aprecio quando o cinema arrisca falar de política exterior e das pequenas vítimas do jogo dos grandes; admiro tentativas de construir um cinema de espionagem com verniz local e atores que não sejam caricaturas. No entanto, Teerã fracassa naquilo que considero essencial para um bom thriller moderno: clareza de causa e efeito dramático, ritmo que respeite a inteligência do espectador e edificação emocional dos personagens. A montagem transformou o filme num exercício de fadiga visual — e um roteiro com potencial foi, literalmente, dilacerado pela lâmina do corte.
Para fechar com uma opinião dura, mas sincera: o filme é um exemplo claro de como recursos técnicos e um elenco apto não garantem narrativa — especialmente quando a montagem decide reduzir a durabilidade dos planos ao mínimo, destruindo a continuidade. Se houvesse uma versão alternativa com um ritmo menos obsessivo por dinamismo de superfície, creio que parte do material poderia respirar e entregar algo menos confuso. Assim como está, Teerã é uma promessa desperdiçada: visualmente competente em lampejos, narrativamente desconexo na totalidade. E isso, para um filme que se propõe a falar de consequências reais, é uma derrota estética e ética.